A melhor medida que a Revolução de Abril de 1974 trouxe a dezenas de
velhotes da minha freguesia foi uma nova lei ou decreto publicada em
substituição do sistema de previdência social que vinha de 1962 – as caixas de
previdência – e tinha um sistema de assistência muito limitado. Essa nova
legislação obrigava as entidades patronais a inscreverem os seus trabalhadores
na segurança social a fim de descontarem para as suas reformas, usufruírem dos
abonos de família dos filhos menores, terem direito a subsídios de doença e
desemprego, e ainda uma cláusula extraordinariamente importante que impunha o
seguinte:
“Qualquer indivíduo que tivesse trabalhado mais de cinco anos para uma
entidade patronal e de onde tivesse saído por motivo de velhice há menos de
cinco anos, tinha direito a ser por lá reformado, bastando para tanto preencher
uns formulários que se iam buscar à Caixa de Previdência de Portalegre sita à
data na Avenida Frei Amador Arrais, arranjar três testemunhas de maior idade
(mais de 21 anos) que atestassem por sua honra terem conhecimento que ele
trabalhara para essa tal entidade patronal mais de cinco anos, para
automaticamente essa entidade ser obrigada a reembolsar a Caixa de Previdência
dos descontos retroativos, podendo, logo a seguir ao reembolso dos descontos, o
trabalhador requerer a sua reforma, bastando para tanto ter mais de 65 anos e
preencher um requerimento em impresso próprio”.
Não sei dizer que lei ou decreto foi, só sei que é de 1974, mas deduzo que
terá sido “mãe ou pai” da legislação que tornou definitivamente obrigatórios os
descontos para a Segurança Social de todos os trabalhadores por conta de outrem
e nessa altura entrou definitivamente em vigor. Não tenho qualquer dúvida em
afirmar que sei ter sido esse o “grave crime” que eu cometi à luz do
entendimento mal-intencionado de algumas entidades patronais que tiveram de
abrir os cordões à bolsa, para que alguns trabalhadores que as serviram uma
vida inteira – muitos deles durante mais de 60 anos consecutivos – tivessem
direito à sua mais que merecida pensão de reforma.
Sendo a minha freguesia eminentemente rural e pese embora nesse tempo, com
a estação da CP ainda a funcionar em pleno, houvesse uma boa parte de pessoas
que sabiam ler e escrever, a grande maioria dos seus habitantes eram camponeses
completamente analfabetos. Por tal facto, assim que a Lei foi publicada no
Diário da República e porque continuava desempregado, foi-me pedido para fazer
um “levantamento” de quantas pessoas haveria naquelas condições para poderem
ser ajudadas.
Dito e feito. Nem pensei duas vezes. Ajudar quem precisa foi sempre uma das
minhas tarefas prediletas. E além disso conhecia as pessoas uma a uma. Sabia
onde moravam, sabia mesmo que muitas delas mais idosas viviam agora apenas do
pouco que tinham conseguido amealhar na sua sacrificada vida de trabalho e de
uma mísera “reforma da Casa do Povo” que nem dava para pagarem a renda, e
ainda, sobretudo, do auxílio dos filhos que tinham por perto.
E contactei-os um a um. E informei-os também um a um dos passos
necessários. E fui depois pedir orientação e ajuda a um grande homem da direção
da Caixa de Previdência de Portalegre – do qual não vou citar o nome – que
sempre se disponibilizou para me ajudar fosse no que fosse. A “cor” política
dele? Não sei. Nunca soube. Nunca quis saber. O que sabia era que na
Beirã, nos Barretos e por todos os lugarejos em redor havia por certo mais de
duas dezenas de idosos que tinham trabalhado em determinada e muito conhecida
herdade não apenas cinco, mas, muitos deles, mais de cinquenta anos.
A sua vida inteira. E viviam agora assim, velhos, incapazes e quase sem
nada por falta do apoio a que tinham merecido direito, depois de uma vida
inteira de trabalho e sacrifícios. Confesso que foi uma das obras que ajudei a
levar por diante que mais me orgulha. E talvez por pensar nela suportei tudo
aquilo que quiseram de mim dizer. Lutei com todo o meu empenho pelo bem-estar
de quem nada tinha e jamais deixarei de fazer o mesmo, sempre ou cada vez que
for necessário.
Andei sim, de porta em porta, a informar os velhotes daquilo a que tinham
direito e o que precisavam fazer. Depois fui a Portalegre buscar os formulários
necessários e aprender a preenchê-los. Em seguida fui eu que os preenchi também
porque nenhum idoso sabia ler nem escrever. A seguir fui ainda eu que tive de
convencer muitas das testemunhas a atestarem por sua honra que haviam visto
aqueles idosos a trabalhar naquele local durante mais de cinco anos, para não
falar dos medos que tive de ajudar a dissipar porque “era o senhor fulano tal,
que depois se podia ofender quando soubesse” ou então porque “o filho, o irmão
ou o primo ainda trabalhavam lá e podiam vir a ter problemas.”
Um a um lá consegui convencê-los que hoje era por aqueles, mas amanhã seria
decerto por eles próprios. E numa atitude de total confiança mostrando-lhes a
minha tranquilidade de consciência e ausência de receio, a primeira assinatura
de muitos desses formulários era a minha. Muitas dessas testemunhas, tenho a
certeza, só perderam o receio de assinar depois de lá verem o meu nome
escarrapachado, preto no branco.
Como consequência desse empenho que, volto a repetir, nada, mas
absolutamente nada teve a ver com partidarismos políticos, soubemos, pouco
depois, que todos tinham sido aceites e deferidos, originando à tal entidade
patronal ter de pagar à então Caixa de Previdência um reembolso na ordem dos
seiscentos contos, quantia algo elevada por de facto serem muitos os
ex-trabalhadores com os seus direitos reconhecidos pela Lei.
Logo que terminou a fase do reembolso pela entidade patronal, dei início à
fase de requerer as respetivas pensões de reforma. E, como não podia deixar de
ser, lá tive de outra vez ser eu a “descalçar a bota” aos velhotes e preencher
os requerimentos a quem me o solicitava, processo que durou três meses. Passado
muito pouco tempo todos os requerimentos foram regularmente deferidos sem
qualquer entrave e logo a seguir informados os interessados dos respetivos
montantes de reforma que lhes seria atribuída a partir da data em que tinham
completado os 65 anos, bem como o valor acumulado que em alguns casos era,
naquele tempo e para eles, uma pequenina fortuna.
Sessenta contos uns, oitenta contos outros, enfim, conforme a soma dos
meses em retroatividade, assim eram os montantes acumulados a receber. Vi
muitas lágrimas furtivas de incredulidade em muitos olhos, vi também gratidão
em muitos outros, mas, sobretudo, adquiri um punhado de amigos a quem nunca
aceitei um centavo sequer pela ajuda desinteressada que voluntariamente lhes
prestei, vendo neles todos a sua humilde condição em tudo semelhante à dos meus
pais. Então, quando nasceu o nosso primeiro filho, encheram-nos a casa de
visitas e presentes de toda espécie, desde mercearias a roupinhas e peluches
para o bebé.
Só não me apercebi das rancorosas inimizades que pela calada tudo aquilo
desencadeou sobre mim já que nunca foram suficientemente valentes para
mostrarem o rosto, preferindo à boa maneira dos cobardes atacar pelas costas e
métodos sujos. Não me apercebi de nada mesmo, porque muito pouco tempo depois e
por continuar a não conseguir trabalho fui-me embora para as Minas da
Panasqueira afastando-me quase definitivamente da aldeia e esquecendo
completamente tudo isso, até ingressar na GNR quase cinco anos depois…
José Coelho