quinta-feira, 10 de abril de 2025

Voltaria a fazer o mesmo, quantas vezes fosse preciso

Foto Estúdio Cardinho Ramos em Castelo de Vide - agosto 1974

A melhor medida que a Revolução de Abril de 1974 trouxe a dezenas de velhotes da minha freguesia foi uma nova lei ou decreto publicada em substituição do sistema de previdência social que vinha de 1962 – as caixas de previdência – e tinha um sistema de assistência muito limitado. Essa nova legislação obrigava as entidades patronais a inscreverem os seus trabalhadores na segurança social a fim de descontarem para as suas reformas, usufruírem dos abonos de família dos filhos menores, terem direito a subsídios de doença e desemprego, e ainda uma cláusula extraordinariamente importante que impunha o seguinte:

“Qualquer indivíduo que tivesse trabalhado mais de cinco anos para uma entidade patronal e de onde tivesse saído por motivo de velhice há menos de cinco anos, tinha direito a ser por lá reformado, bastando para tanto preencher uns formulários que se iam buscar à Caixa de Previdência de Portalegre sita à data na Avenida Frei Amador Arrais, arranjar três testemunhas de maior idade (mais de 21 anos) que atestassem por sua honra terem conhecimento que ele trabalhara para essa tal entidade patronal mais de cinco anos, para automaticamente essa entidade ser obrigada a reembolsar a Caixa de Previdência dos descontos retroativos, podendo, logo a seguir ao reembolso dos descontos, o trabalhador requerer a sua reforma, bastando para tanto ter mais de 65 anos e preencher um requerimento em impresso próprio”.

Não sei dizer que lei ou decreto foi, só sei que é de 1974, mas deduzo que terá sido “mãe ou pai” da legislação que tornou definitivamente obrigatórios os descontos para a Segurança Social de todos os trabalhadores por conta de outrem e nessa altura entrou definitivamente em vigor. Não tenho qualquer dúvida em afirmar que sei ter sido esse o “grave crime” que eu cometi à luz do entendimento mal-intencionado de algumas entidades patronais que tiveram de abrir os cordões à bolsa, para que alguns trabalhadores que as serviram uma vida inteira – muitos deles durante mais de 60 anos consecutivos – tivessem direito à sua mais que merecida pensão de reforma.

Sendo a minha freguesia eminentemente rural e pese embora nesse tempo, com a estação da CP ainda a funcionar em pleno, houvesse uma boa parte de pessoas que sabiam ler e escrever, a grande maioria dos seus habitantes eram camponeses completamente analfabetos. Por tal facto, assim que a Lei foi publicada no Diário da República e porque continuava desempregado, foi-me pedido para fazer um “levantamento” de quantas pessoas haveria naquelas condições para poderem ser ajudadas.

Dito e feito. Nem pensei duas vezes. Ajudar quem precisa foi sempre uma das minhas tarefas prediletas. E além disso conhecia as pessoas uma a uma. Sabia onde moravam, sabia mesmo que muitas delas mais idosas viviam agora apenas do pouco que tinham conseguido amealhar na sua sacrificada vida de trabalho e de uma mísera “reforma da Casa do Povo” que nem dava para pagarem a renda, e ainda, sobretudo, do auxílio dos filhos que tinham por perto.

E contactei-os um a um. E informei-os também um a um dos passos necessários. E fui depois pedir orientação e ajuda a um grande homem da direção da Caixa de Previdência de Portalegre – do qual não vou citar o nome – que sempre se disponibilizou para me ajudar fosse no que fosse. A “cor” política dele? Não sei. Nunca soube.  Nunca quis saber. O que sabia era que na Beirã, nos Barretos e por todos os lugarejos em redor havia por certo mais de duas dezenas de idosos que tinham trabalhado em determinada e muito conhecida herdade não apenas cinco, mas, muitos deles, mais de cinquenta anos.

A sua vida inteira. E viviam agora assim, velhos, incapazes e quase sem nada por falta do apoio a que tinham merecido direito, depois de uma vida inteira de trabalho e sacrifícios. Confesso que foi uma das obras que ajudei a levar por diante que mais me orgulha. E talvez por pensar nela suportei tudo aquilo que quiseram de mim dizer. Lutei com todo o meu empenho pelo bem-estar de quem nada tinha e jamais deixarei de fazer o mesmo, sempre ou cada vez que for necessário.

Andei sim, de porta em porta, a informar os velhotes daquilo a que tinham direito e o que precisavam fazer. Depois fui a Portalegre buscar os formulários necessários e aprender a preenchê-los. Em seguida fui eu que os preenchi também porque nenhum idoso sabia ler nem escrever. A seguir fui ainda eu que tive de convencer muitas das testemunhas a atestarem por sua honra que haviam visto aqueles idosos a trabalhar naquele local durante mais de cinco anos, para não falar dos medos que tive de ajudar a dissipar porque “era o senhor fulano tal, que depois se podia ofender quando soubesse” ou então porque “o filho, o irmão ou o primo ainda trabalhavam lá e podiam vir a ter problemas.”

Um a um lá consegui convencê-los que hoje era por aqueles, mas amanhã seria decerto por eles próprios. E numa atitude de total confiança mostrando-lhes a minha tranquilidade de consciência e ausência de receio, a primeira assinatura de muitos desses formulários era a minha. Muitas dessas testemunhas, tenho a certeza, só perderam o receio de assinar depois de lá verem o meu nome escarrapachado, preto no branco.

Como consequência desse empenho que, volto a repetir, nada, mas absolutamente nada teve a ver com partidarismos políticos, soubemos, pouco depois, que todos tinham sido aceites e deferidos, originando à tal entidade patronal ter de pagar à então Caixa de Previdência um reembolso na ordem dos seiscentos contos, quantia algo elevada por de facto serem muitos os ex-trabalhadores com os seus direitos reconhecidos pela Lei.

Logo que terminou a fase do reembolso pela entidade patronal, dei início à fase de requerer as respetivas pensões de reforma. E, como não podia deixar de ser, lá tive de outra vez ser eu a “descalçar a bota” aos velhotes e preencher os requerimentos a quem me o solicitava, processo que durou três meses. Passado muito pouco tempo todos os requerimentos foram regularmente deferidos sem qualquer entrave e logo a seguir informados os interessados dos respetivos montantes de reforma que lhes seria atribuída a partir da data em que tinham completado os 65 anos, bem como o valor acumulado que em alguns casos era, naquele tempo e para eles, uma pequenina fortuna.

Sessenta contos uns, oitenta contos outros, enfim, conforme a soma dos meses em retroatividade, assim eram os montantes acumulados a receber. Vi muitas lágrimas furtivas de incredulidade em muitos olhos, vi também gratidão em muitos outros, mas, sobretudo, adquiri um punhado de amigos a quem nunca aceitei um centavo sequer pela ajuda desinteressada que voluntariamente lhes prestei, vendo neles todos a sua humilde condição em tudo semelhante à dos meus pais. Então, quando nasceu o nosso primeiro filho, encheram-nos a casa de visitas e presentes de toda espécie, desde mercearias a roupinhas e peluches para o bebé.

Só não me apercebi das rancorosas inimizades que pela calada tudo aquilo desencadeou sobre mim já que nunca foram suficientemente valentes para mostrarem o rosto, preferindo à boa maneira dos cobardes atacar pelas costas e métodos sujos. Não me apercebi de nada mesmo, porque muito pouco tempo depois e por continuar a não conseguir trabalho fui-me embora para as Minas da Panasqueira afastando-me quase definitivamente da aldeia e esquecendo completamente tudo isso, até ingressar na GNR quase cinco anos depois…

José Coelho