Comunhão Solene - 1963
Irmãos pequenos do vento
Eu
e os outros fomos protagonistas de um milagre. Ninguém ainda conseguiu explicar
como estamos vivos neste momento… Ninguém encontra uma razão para o facto de
termos ultrapassado as fases da infância e da adolescência.
Fazíamos
coisas disparatadas sem que alguém nos protegesse. Saíamos em grupo para tomar
banho no velho açude, mesmo sem antes termos aprendido a nadar corretamente.
Partíamos de bicicleta, sem capacete, para tão longe quanto aguentassem as
forças ou a fome. Íamos sem destino. Entrávamos em cavernas e perdíamo-nos lá
dentro. Trepávamos muros altos para entrarmos em casas abandonadas, onde
estabelecíamos o nosso refúgio. Fazíamos explorações, rasgávamo-nos,
sujávamo-nos.
Íamos
a pé para a escola, mesmo quando estava a chover, mesmo quando ficava longe.
E
lutávamos uns com os outros. Esmurrávamo-nos. Partíamos, por vezes, ossos e
dentes. Organizávamos, na mata do castelo, grandes combates, nos quais
utilizávamos espadas de madeira que tínhamos construído. Sabíamos bem – por
experiência própria, e não apenas porque nos tivessem dito – que uma ferida
profunda doía e demorava algum tempo a cicatrizar. Viver, para nós, não podia
ser sem correr riscos. Ou éramos de todo inconscientes ou pensávamos que um
anjo cuidava de nós.
Não
havia um animador que viesse ensinar-nos modos corretos de brincar. Nem
organizações que fabricassem para nós formas de ocupação dos tempos livres. Não
tínhamos tempos livres. Não sei, aliás, como pudemos sobreviver a tanta
atividade.
Não
parávamos. Tínhamos apetite: comíamos como cavalos e não ficávamos obesos. O
Sol alojava-se em nós e fazia-se cor e saúde.
Inventávamos
as nossas brincadeiras e nunca precisámos de comprar jogos caros. Usávamos
paus, pedras, velhos pneus, uma corda… Não tivemos jogos electrónicos, 99
canais a cabo, filmes em vídeo, telemóveis, computadores ou internet.
Tivemos amigos.
Passávamos
horas e horas a brincar lá fora com eles. Como não havia os telemóveis, muitas
vezes ninguém sabia exatamente onde estávamos. Resolvíamos os nossos
problemas. Lidávamos sozinhos com um pneu furado na bicicleta, com um dia de
tempestade, com um objeto perdido. Descobríamos a maneira de arranjar uma bola
de futebol, de apanhar um grilo, de fazer uma fogueira. Aprendíamos a lidar com
cada um dos nossos companheiros, com as nossas capacidades, com as
circunstâncias mais variadas.
Crescíamos.
Nem
em casa sossegávamos muito, porque tínhamos irmãos.
Os
nossos pais ainda não conheciam as novas regras sobre o trabalho infantil. Mas
também conseguimos sobreviver ao facto de termos de fazer a cama, cozinhar
algumas das nossas refeições, ajudar a pintar a casa, preparar a roupa para
vestir no dia seguinte, varrer a sala, lavar a louça.
Fazíamos
loucuras. Brincávamos com cães não vacinados, bebíamos todos pela mesma
garrafa, secávamos a roupa no corpo. Dávamo-nos com gente pouco recomendável.
Pedíamos boleias. Entrávamos em acampamentos de ciganos e tínhamos lá amigos.
Aprendíamos coisas com eles.
Mil
vezes podíamos ter morrido, mil vezes podíamos ter sido assaltados, mil vezes
podíamos ter adoecido gravemente. Mas sempre que superávamos uma dificuldade
tornávamo-nos mais fortes, mais capazes de enfrentar o que viesse. Servíamo-nos
dos nossos adversários para crescer. A dor tornava-nos resistentes à dor; a
necessidade de nos esforçarmos aumentava a nossa força; uma derrota levava a
que nos conhecêssemos melhor.
Sobrevivemos.
Éramos os irmãos pequenos do vento. Gostávamos de sentir a chuva a escorrer do
cabelo para a face.
Paulo
Geraldo