Foto Pedro Coelho
Sabia que se aproximava uma "tormenta" como lhe chamava a Avó Amélia. Quem nasceu e viveu sempre no campo sabe interpretar os inconfundíveis sinais da natureza. Aprendi-os com o meu avô Zé Lourenço exímio mestre, mas também com o meu pai, outro mestre não menos exímio que o seu bondoso sogro. Qual dos dois amei mais e de qual dos dois tenho mais saudades, nem eu sei. Espero voltar a encontrá-los um dia e que seja para nunca mais nos separarmos.
A manhã de hoje até começou cálida e serena. Mas com o aproximar do meio dia, grossas nuvens negras começaram a cobrir o céu, vindas do lado de Marvão. E em surdina, ainda longínquos, o resmungar de trovões. Sempre tive um profundo respeito (mais medo que respeito) por essa manifestação tonitroante dos fenómenos elétricos, que depois de se degladiarem nos céus, se precipitam sobre a terra na forma de quase sempre destruidores raios.
O sinal mais evidente de perigo é o silêncio que se instala repentinamente em nosso redor. Só se ouve o murmúrio do vento nos ramos das árvores porque até os melros e a outra passarada subitamente começam a buscar, cada um, cautelosos, o abrigo das copas mais densas de folhas. É espantoso como todos os seres vivos o pressentem e tentam proteger-se. Não é para menos, porque além dos relâmpagos e trovões, estas tempestades trazem no seu ventre muitas vezes ventos e chuvadas para "esvacar" e derrubar tudo.
Coitada da mãe verdelhão que mais uma vez decidiu construir o seu ninho na nossa latada e tenho tentado ajudar como posso. Primeiro, foi a pedriscada que caiu na outra semana e quase "despiu" de parras os renovos que cobriam o ninho. Depois, a semana passada, um pé de vento tombou a parreira e quase despejou os ovos para o canteiro. Só não se concretizou o colapso do ninho porque eu vi na hora e corri em busca de ráfia para a endireitar e prender as tenras hastes aos esticadores que sustentam a latada, o que o salvou.
Por isso hoje, mal começou a dita-cuja, assentei arraial na varanda qual bombeiro pronto a acudir àqueles fragilizados amigos em caso de necessidade. Do abrigado alpendre avista-se toda a região norte e nordeste da freguesia, aquela onde nasceu a minha mãe e todos os seus sete irmãos e irmãs, meus tios. E a Cavalinha, onde era a casa dos meus avós.
É um privilégio sem tamanho avistar tudo quanto foi chão dos meus entes queridos, os lugares onde cresci e fui muito amado por todos eles. Sem querer veio-me à lembrança aquela outra trovoada que em maio de 1963 me fez perder o meu primeiro emprego de pastor do rebanho de ovelhas do tio José Maroco, que Deus tem. Estava sozinho com o rebanho no isolado Monte Velho, quando se desencadeou essa pavorosa trovoada, bem mais assustadora do que a de hoje.
Tentei dominar o medo e afastei-me dos altos sobreiros como me aconselhou sempre o meu avô. Começou a chover a cântaros e as ovelhas abrigaram-se em redor de um pedregulho côncavo. E eu, à falta de melhor companhia, fui para junto delas. Subitamente o estampido ensurdecedor de uma faísca a cair num velho sobreiro do caminho a uns trinta ou quarenta metros de nós, seguido de um portentoso trovão. Foi demais para a minha ousadia. Ainda o sobreiro fumegava e já eu tocava o rebanho caminho abaixo em direção à Beirã.
Cheguei ao bardo e fechei as ovelhas lá dentro, antes das quatro da tarde. A seguir corri apavorado para casa, de onde não saí mais nesse dia. Os meus pais não deram por nada porque andavam a trabalhar também no campo e só regressaram à noite. A trovoada passou e o sol da tarde voltou. E o tio José Maroco foi encontrar as ovelhas fechadas no bardo a meio da tarde. No dia seguinte quando manhã cedo me apresentei no posto de trabalho, lá estava ele à minha espera:
- Então Zé Manel, o que se passou ontem para "ensarrares" as ovelhas quase ao meio dia? Perguntou-me com cara de poucos amigos.
- Tive medo da trovoada e fugi. Respondi-lhe com verdade.
- Ai sim? Então e fugiste para onde? Voltou ele a perguntar.
- Fugi para a minha casa!
- Ai fugiste? Então é para a tua casa que vais voltar agora outra vez porque já não te quero de pastor para as minhas ovelhas.
- E diz ao teu pai que depois eu falo com ele.
A trovoada de hoje também já passou mas sem grande alarido. Serviu, pelo menos, para me trazer de volta estas memórias.
A trovoada de hoje também já passou mas sem grande alarido. Serviu, pelo menos, para me trazer de volta estas memórias.
José Coelho