terça-feira, 22 de abril de 2025

Família a crescer (republicação)

* Foto de 1987 na Escola Primária de Nisa *


Foi por meados do verão de 1980 que o quarto elemento da nossa família anunciou que estava a caminho. Que coisa melhor pode acontecer a um casal, do que essa bênção? Mais um filho. Que maravilha! Menino ou menina porque não fizemos nunca escolhas antecipadas. Viesse o que viesse seria muito bem-vindo. Que tivesse perfeição e saúde era a única coisa que nós pedíamos a Deus.
O serviço era exigente e rigorosíssimo. Não havia facilidades para ninguém. Casa, posto, posto, casa. Nem vagar havia para se estar doente. Uma folga por semana, se pudesse ser, porque o serviço tinha sempre prioridade. Quem lhe calhasse a folga à terça ficava “ad-eternum” a folgar às terças, enquanto os sortudos que lhes calhava o domingo, idem, idem, aspas, aspas.
Tínhamos de fazer 72 horas consecutivas duas a três vezes por mês, porquanto o plantão era de 24 horas de permanência no posto, seguido do apoio ao plantão com outras 24. Para rematar, ao sermos rendidos depois das 48 horas de serviço contínuas, entrávamos de piquete com outras 24 horas, mas já com a benesse de podermos ir almoçar, jantar e dormir para casa, mantendo-se a prontidão para resolver qualquer ocorrência até ao dia seguinte, quando os outros camaradas nos substituíssem.
A comprovar a prioridade tão exagerada como desumana que era dada na GNR ao serviço naquele tempo, vem a propósito referir o facto de o meu filho Pedro ter nascido exatamente num desses dias em que eu entrara às nove da manhã de plantão ao Posto. O parto correra normalmente embora a mãe ficasse bastante combalida porque o gaiato nasceu com mais de quatro quilos e a coitada viu-se e desejou-se para o trazer ao mundo. Em consequência do tamanho e peso anormais, teve de ser metido numa incubadora para ser mantido em vigilância permanente durante os dias que fossem necessários afim de ser monitorizado e despistado algum problema cardíaco ou respiratório.
Só depois seria entregue à mãe.
Eu estava evidentemente feliz mas preocupado com o facto de o menino ter ido para a incubadora pois temia que houvesse algum problema com ele que ainda não fora revelado. E naturalmente desejoso de ir vê-lo, animar a mãe e falar com o médico pediatra para esclarecer as minhas naturais inquietações.
Mas não pude ir porque estava na tal “quarentena” das 72 horas inseparável do posto. O Pedro nasceu a 22 de Abril. Para completar a sorte, no dia 23 saí do serviço de plantão às nove da manhã e entrei a seguir para mais 24 horas de serviço no apoio ao plantão que era exatamente a mesma treta e só mudava o nome.
48 horas batidinhas e seguidas sem tirar aqueles suspensórios de couro horríveis e herdados do III Reich, tal como as espingardas Mauser que usávamos nas patrulhas e ostentavam ainda o monograma da águia alemã sobre a cruz suástica gravado na zona da culatra. Todo o nosso uniforme desse tempo era aliás uma inspiração quase fiel do equipamento militar nazi. Felizmente alguém teve o bom senso e ainda o melhor gosto de mudar e humanizar um pouco mais todo o sistema, porque aquele equipamento nos fazia parecer uma gestapo portuguesa.
Em consequência dessa Santa Escala do Serviço só pude conhecer o meu rapagão quando ele ia já fazer três dias. Valeu-me o camarada Zé Santos, da Ranginha – que Deus o tenha na sua paz – o qual, sabendo o que se estava a passar se ofereceu para ir comigo no seu carro ao hospital de Portalegre às escondidas e sem ninguém saber pois nem sequer podíamos sair da área do Posto sem autorização superior.
Sete anos após o 25 de Abril de 1974, a GNR continuava parada no tempo e igual ao que era antes dele. Parece quase inacreditável, mas é a mais absoluta verdade.
Fui encontrar o meu calmeirão de bebé ainda dentro da incubadora. Colocaram-me uma touca, pantufas e máscara esterilizadas para poder entrar naquela sala cheia de balões de vidro com bebés lá dentro.
E lá estava ele, a chorar que nem um desalmado...
- Deve ter-se assustado com o meu ridículo traje! Pensei feliz.
Como ele gritava a plenos pulmões! Não parecia nada um bebé com problemas de saúde. Parecia sim, um refilão de primeira. A enfermeira veio ao meu encontro e disse-me exatamente isso, que ele era muito refilão e não parava quieto nem calado.
Pouco depois veio também o médico pediatra ter comigo para me informar o motivo de o miúdo ali permanecer. Que era apenas mera precaução em virtude de algum excesso de peso, mas não havia qualquer problema e que fosse para junto da mãe que o bebé já iria ter conosco.
E assim foi.
A minha Manuela é que ainda não se tinha recomposto. Parecia ter sido atropelada por um trator. Era evidente que passara um mau bocado no parto mas, tal como eu, estava muito mais preocupada por lhe terem levado o seu menino, do que com as suas mazelas. Tranquilizei-a, disse-lhe o que o médico me tinha acabado de dizer e não podendo demorar muito mais porque estava ali “clandestino” regressei ao posto mais sereno e feliz.
Garanto-vos uma coisa. Todos estas desumanas barbaridades por que passei formaram no meu carácter uma solene determinação. Sabendo do quanto me custou passar por tantas e tão injustas tropelias, jamais o iria esquecer. Em consequência disso agi sempre exatamente ao contrário nos anos seguintes, quando, já então também comandante, ajudei quanto pude todos os meus dignos subordinados sempre que eles precisavam, colocando-me muitas vezes no seu lugar, assumindo a responsabilidade de os substituir quando eles tinham problemas inesperados que precisavam ir resolver de imediato, sempre pensando para comigo:
- Não farás a outros o que te fizeram a ti…