quarta-feira, 26 de abril de 2017

Coisas q'escrevi...

35 anos depois, em primeiro plano e em minha casa,
a amizade mantém-se. Grande homem, o Marques!


A conversa que tudo mudou 


Conhecem a citação “quando Deus fecha uma porta, abre sempre uma janela”? Eu tenho todas as razões do mundo para acreditar nisso, conforme irão perceber depois de lerem o que vou hoje contar.

No dia seguinte àquela noite, indiferente ao facto de eu mal ter pregado olho, a escala de serviço nomeara-me de patrulha aos campos para sair logo de manhã cedinho com outro grande homem da guarda e também uma extraordinária pessoa: O Marques, do Chão da Velha. Grande amigo desde a primeira hora que pus os pés naquele posto, assim permanece até ao dia de hoje, apesar de ele ser um pouco mais velho do que eu e de se encontrar há anos aposentado e a viver tranquilamente numa bonita vivenda que comprou no novo Bairro da Cevadeira em Nisa.

A minha expressão taciturna devia com certeza mostrar o que me ia na alma. Saímos mudos e continuámos calados em direcção à Fonte da Mealhada, Pouso, Quinta do Pasmar e serra da Penha. Eu caminhava anormalmente silencioso, já que por norma era um tagarela. Ia absorto a pensar em tudo o que a minha mulher me tinha dito ao longo dessa comprida noite e sinceramente sentia alguma relutância em deixar a guarda porque já me tinha adaptado a tudo o que ela significava para mim, quer pessoal quer profissionalmente.

Era inevitável reflectir também no facto de me dar muito bem com quase todos os meus camaradas que eram para mim como que a extensão da minha família. Mas, sobretudo, pensava que desistir agora, faria com que tudo o que eu já tinha suportado para chegar até ali tivesse sido desnecessário, senão completamente inútil. Mais valia ter desistido logo no fim do primeiro mês. Tinha pelo menos evitado todas aquelas chatices.

Por outro lado, invadia-me uma sincera felicidade pelo incontestável apoio que a minha Maria me tinha afirmado. Fora para mim uma enorme surpresa. Uma grata e indescritível surpresa. Quem diria! Grande mulher e amiga, hein? Nesta altura do campeonato eu achava já que com um bocadinho de jeito ela seria até capaz de pôr o dedo no nariz a todos aqueles “burgessos” que me haviam enxovalhado injustamente:

- A guarda é uma carrada de brutos… Repetira ela várias vezes, completamente indignada!

Entretanto o meu camarada também nada dizia enquanto caminhávamos por decerto se ter apercebido que alguma coisa me perturbava e também porque, disse-me depois mais tarde, desconfiava que eu já saberia daquela infeliz conversa havida na véspera no posto e da qual ele próprio fora testemunha.

Subimos assim a serra por carreiros e veredas até alcançarmos mais de uma hora depois a capelinha de Nossa Senhora da Penha. Tal como me acontece sempre em Marvão, quantas mais vezes lá vou mais deslumbrante acho a paisagem que me cerca e mais gosto de tudo aquilo que os meus olhos me oferecem.

Sentámo-nos à sombra da capela naquela espécie de poial de pedra que a rodeia virados para norte e com a verdejante zona da encosta do Martinho bem como as hortas do Brejo a nossos pés, enquanto a vista alcançava mais além a Póvoa e Meadas, Montalvão e as terras da Beira Baixa até aos cumes da Gardunha e da Estrela onde se situam as “minhas” inesquecíveis Minas da Panasqueira, cujos perfis se vislumbravam muito longínquos a quererem tocar o céu daquela ensolarada manhã.

- Pouse a espingarda e sente-se aqui ao pé de mim! Sugeriu algo cansado da subida o meu camarada e comandante de patrulha.

Assim fiz continuando no entanto absorto e pouco comunicativo.

- Coelho, tem alguém da sua família doente? Perguntou ele.

- Não. Graças a Deus está tudo bem! Respondi.

- Então porque vem assim a modos que apoquentado? Volveu ele sem desistir.

Permaneci num silêncio indeciso entre o desabafar ou ficar calado. Gostava dele como pessoa, como amigo, como camarada no serviço e como bom vizinho que era também. Mas da maneira que as coisas estavam eu já não sabia se não seria melhor falar só o necessário.

Porém, eu e a minha Maria, tínhamos para com a esposa deste amigo uma dívida de gratidão imensa porque ao regressar do hospital depois de o Pedro nascer foi essa excelente senhora que durante mais de um mês cuidou das roupas da combalida mãe e do robusto bebé e lhes fez companhia, ajudando em tudo quanto a recém-mamã necessitou como se fossem irmãs.

E se há coisas que não se pagam com dinheiro nenhum, essa era decerto uma delas. A generosidade, a solidariedade, o cuidado e carinho daquela família que mais não eram do que ocasionais e recentes vizinhos, família de camarada de profissão que conhecíamos há pouco mais de dois anos mas que nos tinham tratado melhor do que algumas pessoas da nossa família mais próxima.

Como eu permaneci calado e absorto nos meus pensamentos o camarada rematou:

- Tudo bem! Se não me quer dizer não diga, são coisas da sua vida. Desculpe ter perguntado…

Percebi pelo tom da sua voz que ficara decepcionado com o meu mutismo e aquilo foi como que um abanão na minha consciência. Era um amigo que ali estava a falar comigo. Um amigo generoso, preocupado, que merecia por isso mesmo e não só, uma explicação.

E de repente desatei a falar.

Contei-lhe quase na íntegra a mesma coisa que contara à minha mulher durante toda a anterior madrugada. Desde o alistamento em Portalegre até à sandice da véspera ocorrida no posto pelas minhas costas. E mais lhe disse que quando no fim da patrulha chegássemos ao posto ia meter o requerimento para sair definitivamente da guarda porque estava farto de injustiças e enxovalhos embora tivesse plena consciência que a culpa não era da nobre instituição.

E mais lhe disse também que não me “ensaiava” nada para “enfiar” com a coronha da mauser na cabeça do traste que fora capaz de inventar uma calúnia daquelas. Seria muito difícil mesmo que ele não ficasse a saber com quantos paus se faz uma canoa antes de eu entregar o crachá.

Ele ouviu-me sem nunca me interromper apesar de eu ter estado bem mais de meia hora a falar emocionadamente.

Quando me calei aquela boa pessoa e extraordinário amigo apenas me perguntou tranquilamente e sem qualquer vestígio de surpresa:

- E já pensou bem no que essa sua decisão vai significar para o bem-estar da sua família e futuro dos seus filhos?

Respondi que sim, que tanto eu como a minha mulher tínhamos chegado juntos à conclusão que para sermos uma família feliz e cuidarmos do futuro deles não era necessário que eu tivesse que andar a levar pontapés de todo o fiel farrapo, daquela maneira.

Notei pelo semblante e pela forma como abanava a cabeça em sinal de desaprovação que o meu camarada não concordava nada comigo. Ouvia-me atentamente mas sempre a abanar a cabeça como quem diz não estou de acordo!

Quando por fim me calei começou ele a dizer de sua justiça:

- Coelho! Quando se soube neste posto que você vinha para cá surgiram logo algumas conversas sobre a sua pessoa. Ainda mais porque tem ali três conterrâneos seus que o conhecem desde pequeno a si e à sua família. Depois nas concentrações da reforma agrária quando nos juntávamos com os camaradas dos postos lá da sua zona, mais mexericos havia. Por isso, quando você cá chegou, eu e os outros camaradas já sabíamos de todas essas peripécias que acabou de contar e que lhe fizeram no seu alistamento…

E continuou:

Agora responda-me com franqueza! Alguma vez se sentiu maltratado por nós, desde que aqui chegou?

- Não! Nunca! Pelo contrário. Respondi-lhe.

E ele prosseguiu:

Se você é comunista ou não ninguém tem nada com isso. Em democracia pelo que dizem, tem os mesmos direitos que têm os outros de serem dos partidos que querem. A única coisa que você cá na guarda não pode, é manifestar-se publicamente nem a favor nem contra, seja por que partido for. Porque o nosso dever é sermos isentos. Ensinaram-lhe também isso no alistamento, não ensinaram?

- Sim. E de que maneira! Esclareci eu. E rematei:

- Mas no alistamento só falavam mal dos comunistas. Dos outros nunca ouvi dizer mal!

- Pois! Mas isso são outros quinhentos. Disse.

- Preste atenção ao que eu lhe vou dizer, Coelho. Desde que você para cá entrou que o querem por na rua e se não o conseguiram foi porque você soube defender-se. Se você hoje meter o papel para sair estará a fazer exactamente o que eles querem que você faça e a dar-lhes razão. E mais! Esse nosso camarada que o faz desistir da sua carreira vai ser o herói, porque consegue fazer sozinho aquilo que os graduados todos juntos não foram capazes de fazer.

- Agora diga-me. Acha que vale mesmo a pena? Acha que eles merecem que você sacrifique o seu futuro e a sua família?

Eu ouvia-o fascinado pela clarividência do seu raciocínio. No fundo, muitos dos seus argumentos eram o eco do meu subconsciente. Tinha lutado tão arduamente contra todas as tentações de responder à letra a tantas provocações... E, de facto, tinha levado a melhor protegido apenas pela força da minha razão e tranquilidade de consciência.

Como eu fiquei em silêncio a conjecturar e a assimilar o que ele me tinha dito, aquele amigo continuou.

- Eu até concordo que você deve sair deste posto. Mas não para as Minas da Panasqueira, nem sequer para outro posto qualquer porque em todos você irá encontrar coisas boas mas também as chatices normais de qualquer outra profissão. Por isso, eu se fosse a si, saía sim, mas de cabeça erguida e para melhor! Concorra a cabo. Você é capaz que eu já vi que é. E todos os anos saem convites na ordem de serviço para concorrer quem quiser. Vá-se preparando e quando chegar o momento aceite o convite. Ao menos sai por ter subido de posto e por mérito seu, dando uma valente bofetada de luva branca em todos esses que querem correr consigo!

E quanto ao nosso camarada (…) mais aquilo que ele ontem disse, eu estava lá e também o ouvi, mas ninguém fez caso nem concordou com ele. Foi uma parvoíce dele mal pensada e eu se fosse a si nem fazia caso disso. Faça que nem sabe e pronto. Quem lhe foi a correr contar é que também não procedeu lá muito bem! Às vezes penas que se não sabem, não se sentem. E coisas dessas, olhe, o desprezo é a melhor resposta.

Escusado seria dizer que a minha alma estava parva com semelhante lógica, com tão cristalino ponto de vista, com o inteligente raciocínio e ainda melhores conselhos daquele amigo ímpar, camarada de excepção, experiente e com um coração do tamanho do mundo.

Era como se mais uma vez a providência divina tivesse mandado outro anjo para afastar as pedras do meu caminho e indicar-me o melhor percurso a seguir. Obviamente não fiquei indiferente à lógica absoluta e contundente do discurso do meu camarada. Ali naquele lugar, lá bem no cimo da serra mais perto de Deus por estar tão alto e encostado à casa de Nossa Senhora da Penha, a razão desceu suavemente sobre o meu até então conturbado espírito e senti uma benfazeja serenidade invadir-me.

O meu camarada tinha carradas de razão. Eu estava a ver mal o filme e a deixar-me levar pelo impulso e pela agressividade. Havia de facto melhores formas de tentar sair dali e eu andara a prepará-las desde que lá chegara. Estava, nessa altura, já muito embrenhado em leis, códigos, regulamentos, isto e mais aquilo. Aquele objectivo que o meu camarada apontara era exactamente o que eu me propusera alcançar. Não parar. Não me acomodar. Trabalhar para ir mais além…

E seria isso mesmo que eu iria fazer. Concorrer a cabo assim que pudesse. E estudar mais para conseguir passar nas provas de admissão.

Só de uma coisa eu não ia abdicar de maneira nenhuma. Tinha que ter uma conversa cara a cara com o camaradinha que ousara duvidar da minha honestidade. Fosse como fosse, fosse quando fosse. Não seria capaz de fingir que nada sabia conforme me aconselhava este amigo. Eu precisava esclarecer aquela dúvida, mais que dúvida, aquilo que para mim era um ofensivo e feio insulto.

Porém, quanto a isso, mais nada disse naquela manhã na Senhora da Penha, ao meu camarada.

Quando descemos a serra pelo outro lado em direcção à Senhora da Luz parecia que o sol brilhava ainda mais, que o dia de repente tinha ficado ainda mais luminoso. E eu, de vez em quando, olhava de soslaio e profundamente agradecido o camarada que Deus mandara para me aconselhar melhor depois de uma noite de desgosto e de raiva que tanto havia preocupado a minha adorável e compreensiva companheira.


José Coelho in Histórias do Cota