Nada fazia mais feliz o senhor meu pai do que ter em seu redor todos os seus.
Mulher, filhas, filho, genros e nora, netas e netos, cunhadas e cunhados,
sobrinhas e sobrinhos, sogros ou mesmo até alguns primos mais chegados ou mais
afastados. Para todos havia um lugarzinho no seu coração. Para todos havia
sempre também um lugar na sua casa, à sua volta, à sua - nem sempre farta -
mesa ou ao redor do lume na espaçosa lareira alentejana que
tinha a nossa cozinha para os serões frios do inverno.
Já no verão, era na varanda do
quintal que tinham lugar as tertúlias familiares, porque o calor convidava a
procurar-se ali o fresquinho da noite. Não muito dado a grandes conversas,
mimos ou sorrisos, era o senhor meu pai quase sempre portador de um semblante
sério, sisudo - como o meu - a dar assim para o mal encarado às vezes.
Mas isso nunca o impediu de ter bom íntimo e de ser capaz de dar a camisa que
trazia vestida a quem dela necessitasse mais do que ele.
Recordo particularmente, como se tivessem acontecido ontem, muitos dos seus hábitos de líder da família. Por exemplo a infalível hora de ir deitar-se, fosse noite de natal, fosse outra noite qualquer de qualquer dia da semana e estivesse quem estivesse cá em casa. Nove horas dadas no sino da torre da igreja, verão ou inverno, lá ia ele pra cama com o seu "té amanhã".
Mas no hábito de sair da cama era também pontual mal rompia o dia. Certinho como um relógio. Obviamente nós ficávamos a pé até às tantas porque quando nos juntávamos todos a euforia era tanta que o sono tardava e a pressa de nos irmos deitar era nenhuma. Tantas vezes, depois de ter dormido o primeiro sono da noite completamente indiferente ao reboliço que nós fazíamos na cozinha, o meu pai aparecia a espreitar à porta para nos perguntar naquela sua pronúncia da "terra do bonaco" que nunca perdeu:
- Mas vocês ind'aí tã?
Herdei dele a apetência para reunir a família regularmente à minha volta cá em casa. Quantos mais, melhor. Nada me dá mais prazer, apesar de os meus mais de setenta anos já me irem retirando alguma da antiga ligeireza. Filhos, noras, netas, irmãs ou sobrinhos e algumas vezes também um ou outro bom amigo com a sua respetiva família, embora sejamos por estas bandas cada vez menos, quer da hoste familiar, quer das amizades.
Continua contudo a ser uma satisfação quando na agenda de compromissos dos poucos que ainda restamos, fica marcado o "tal dia" em que vai sair um arroz de pato, uma favada com chouriço, umas sopas de cachola, um pernil assado no forno de lenha, umas migas com toucinho frito ou apenas uma sopa caseira de couves do nosso quintal com suã curtida em sal à moda da Mãe Florinda.
Normalmente esses "petiscos" mais não são do que um repescar de memórias e sabores que nos ajudam a viajar no tempo e irmos ao encontro daquele passado em que éramos tão felizes e não sabíamos.
Com os filhos casados, cada um na sua casa longe de nós, com o falecimento inesperado da irmã e cunhado mais velhos e a debandada da irmã do meio para Inglaterra com os filhos e netos, restamos por aqui só já eu e a minha companheira de quase uma vida inteira a morarmos cá "ao cimo da aldeia" e a irmã caçula Joaquina a morar "na parte de baixo da linha" com o marido, as filhas e um netinho.
Não é por isso já nada fácil conseguir reunir o nosso clã, o que por vezes me deixa melancólico. Mas tal como diz a Mariza na sua canção "o tempo não para e a gente só repara quando ele já passou". Eu reparo particularmente que a última década da minha vida não passou apenas. Voou. Literalmente. E tantas, mas tantas coisas boas e menos boas aconteceram que definitivamente não sou nem voltarei a ser mais a pessoa que fui.
Vivo hoje sem grandes projetos porque os sonhos também já estão todos sonhados. Um dia de cada vez é quanto me basta, tentando adaptar-me a este tempo, que de tão esquisito se tornou infindável. Na passada Semana Santa e fim de semana de Páscoa reuni à volta de alguns almoços e jantares cá em casa doze adultos e duas crianças. Foi muito bom mesmo. Nos tempos que correm reunir catorze almas em convívio é quase reunir uma multidão.
As duas crianças eram obviamente as minhas netas Francisca e Mariana, porque a Filipa, estando prestes a atingir a idade adulta, já a conto nesse grupo. Lindas como só elas. E parecem gostar de mim quase tanto como eu gosto delas.
Digo quase, porque eu gosto muito mais delas. Mas muito mais. Avô babado apontam algumas pessoas! E se for? São os meus tesourinhos e o melhor antídoto do meu envelhecer. Serão elas também a continuação desta geração num horizonte que não se augura fácil, nem feliz. Pode até ser que melhore, mas tenho algum receio pelo seu futuro, tão grandes e perigosas são as ameaças globais que estamos deixar-lhes de herança.
Mas...
É melhor deixar-me de coisas tristes e pensar uma vez mais nos excelentes dias que passei com a minha gente. Foi tão bom! E cumprimos uma vez mais este nosso culto sagrado da Família. Não foi muita mas foi a possível. A que por aqui vai ainda aparecendo e conseguimos reunir de vez em quando...
José Coelho
NOTA: A imagem que ilustra este texto já não é recente.