quinta-feira, 20 de abril de 2023

Mentalidades

A Manuela com o bebé Rafael ao colo (primeiro filho do guarda Lino Pereira) a tomarmos 
café após o almoço, na recém inaugurada sala de convívio do velhinho Posto de Nisa.

Ao apresentar-me em Nisa para assumir o comando do posto por motivo da promoção, esperava-me uma tarefa gigantesca para os mais que limitados recursos de qualquer comandante de posto naquele tempo e obviamente ainda mais para um novato como eu. O edifício em plena Praça da República a que pomposamente se chamava Comando da Secção de Nisa era também conjuntamente o posto misto de infantaria/cavalaria com um efetivo de trinta e seis militares a viverem e trabalharem num enorme e velhíssimo casarão com mais de cem anos, praticamente em ruínas.

 

Longe de me intimidar com o panorama geral que fui encontrar, senti-me desafiado a mudar aquele estado de coisas até onde me fosse possível, com plena consciência que estaria a cutucar o ninho de vespas das mentalidades avessas a qualquer mudança no “status quo” e iriam certamente tentar ferroar-me pela ousadia. Sem nada dizer a ninguém porque sabia de antemão que não ia encontrar apoio interno pela parte de quem deixara abandalhar tudo aquilo ao ponto em que se encontrava, tomei iniciativas que me pareciam lógicas e prioritárias.

 

A primeira foi redigir um ofício timbrado e endereçá-lo a todas as entidades locais: Presidente da Câmara Municipal, Juiz de Direito da Comarca, Delegado do Ministério Público, Chefe da Secretaria do Tribunal, Chefe do Serviço de Finanças, Delegado de Saúde, Gerentes das entidades bancárias, Bombeiros Voluntários e demais entidades públicas, a todos me identificando como novo comandante do Posto de Nisa e a solicitar autorização para ir pessoalmente apresentar-me e cumprimentar cada um deles, ao mesmo tempo que manifestava a minha total disponibilidade para uma estreita colaboração institucional, dali em diante.

 

Foi uma pedrada no charco e um sucesso inesperado com o qual nem eu próprio contava. Sucessivamente, umas atrás das outras, todas as entidades me responderam quase no imediato agradadas aparentemente com a minha atitude, abrindo as suas portas para me receberem e conhecerem também. Parecia que todos desejavam restabelecer uma relação amigável e institucional que nunca deveria ter sido posta em causa.

 

E lá eu fui visitá-los a todos, à vez. Sem subserviência e sem nunca deixar de salvaguardar o prestígio da minha nobre Instituição, a todos me apresentei com humildade e dignidade. De todos recebi uma palavra amiga de boas-vindas, de incentivo, de amizade e parabéns pela iniciativa, seguidos de um “conte connosco”.

 

O primeiro e mais importante passo estava dado. Mas muito mais havia para fazer e não cruzei os braços nem me deixei adormecer à sombra dos elogios. Para que pudessem perceber a urgência em se acudir àquele problema bicudo, retribuí a todos com a mesma cordialidade o convite para irem visitar o nosso quartel e assim verificariam com os seus próprios olhos a indignidade a que chegara o velho edifício, bem como as precárias condições que oferecia a quem lá trabalhava 24 sobre 24 horas para manter a ordem e tranquilidade públicas em benefício de toda a comunidade.

 

Mais uma vez o meu convite foi por todos bem acolhido e agendou-se o dia da visita. Uma vez lá chegadas, mostrei-lhes o que era e como estava todo o Quartel da GNR da de Nisa. Toda a gente ficou evidentemente surpreendida com o estado de degradação do edifício que pela sua aparência exterior denunciava velhice, mas não tanto como no seu interior. E estando presente também o senhor Presidente da Câmara Municipal acompanhado de alguns dos senhores Vereadores, imediatamente apelei à sua sensibilidade para que dentro daquilo que lhes fosse possível nos ajudassem na reparação das divisões mais carenciadas que infelizmente eram quase todo o edifício, pois sem a sua ajuda tal não seria possível.

 

Numa resposta quase imediata uma equipa composta por pedreiros, carpinteiros, pintores, eletricistas e canalizadores chefiados pelo encarregado-geral da CMNisa, “assentaram praça” no quartel na semana seguinte para começarem a reparar o mais urgente. No telhado que metia água e em alguns sítios já ameaçava ruir, foram substituídas quase todas as traves e barrotes, bem como centenas de telhas partidas causadoras das infiltrações. Depois foi a cozinha que levou azulejos nas paredes, um armário lavável, um lava-louça inox e um chão de mosaicos, bem com adequada iluminação interior. O velho e sujo buraco escuro e gordurento transformou-se numa higiénica, moderna e funcional cozinha, indispensável aos militares que eram de longe e ali tinham de confecionar as suas refeições diariamente. E como estava ali mesmo ao lado, foi também na mesma leva completamente remodelado o posto de rádio que ficou muito mais digno e funcional.

 

Adaptaram-se a seguir outras divisões dentro do possível. Separou-se o Posto da Secção. Do lado direito da entrada do edifício ficou o gabinete do oficial comandante e a respetiva secretaria daquela sub-secção, do lado esquerdo os gabinetes do plantão e do comandante de posto, mais as restantes dependências afetas. Construiu-se um corredor para se atravessar o edifício sem ter de se passar pelo interior da caserna/dormitório entretanto já também restaurada e com as suas instalações sanitárias equipadas de louças novas, azulejos nas paredes e chuveiros de água quente. O velho piso de tábuas partidas, habitat seguro dos ratos, fora substituído por um bonito e funcional parquet de corticite lavável que deu logo um aspeto mais digno e acolhedor àquele compartimento, local de resguardo e de repouso para quem lá permanecia dia e noite por motivo de as suas residências e famílias viverem afastadas, só podendo lá ir visitá-las nas folgas semanais. Por isso e em nome da dignidade que lhes era devida, o seu comandante direto tinha o dever de lhes assegurar o mínimo de condições de conforto, de privacidade e de higiene.

 

Também a residência que me era destinada teve de levar uma volta completa. A casa de banho era no quintal fora da habitação e apenas tinha uma sanita e um lavatório. Não tinha instalação de água quente, nem chuveiro ou banheira. A instalação elétrica era ainda com aqueles primitivos tubos de chumbo com interruptores e tomadas de louça a despregarem-se das paredes. Uma vez mais a expensas da câmara municipal, tudo foi remodelado para conseguir ao fim três meses e meio ter a casa pronta para poder trazer para junto de mim a minha família.

 

Entretanto o único contributo da Guarda em toda aquela intervenção eram os dois militares que diariamente estavam nomeados de piquete 24 horas consecutivas a despirem a farda para vestirem um fato zuarte e auxiliarem os mestres da câmara municipal naquilo que fosse necessário entre as oito e as dezassete horas, assegurando eu, com o meu motorista, tomar conta de todas as ocorrências que aparecessem durante aquele período de tempo. Era fraco o contributo, mas era o possível e de muito boa vontade. Todo o efetivo se regozijava com as obras que tanto tinham tardado em chegar e por isso voluntariamente cada um se prontificava para fazer ou ajudar naquilo que sabia ou podia.

 

Gastou a Câmara de Nisa, naquelas obras entre 1985 e 1986, cerca de setecentos contos que hoje parecem assim uma pequena quantia em dinheiro mas que naquele tempo davam para pagar um ano de salários a dez funcionários públicos. E não se contabilizaram nesse montante as madeiras do telhado e as telhas, porque foram sendo escolhidas no estaleiro municipal e reaproveitadas de outros restauros de edifícios públicos, bem como muitos outros materiais sobrantes nessas mesmas condições que foram reutilizados no restauro do quartel sem ser necessário adquiri-los.

 

Ao deixar Nisa em finais de 1992 apresentei primeiro por escrito e a seguir pessoalmente, a minha despedida e profunda gratidão pela excelente cooperação a todas a entidades, como havia feito em 1985 à chegada. No dia e hora em que fui pessoalmente despedir-me do Senhor Presidente da Câmara, fez o mesmo questão de me informar que na anterior Reunião de Câmara havia sido deliberada e ficara registada em Acta uma referência elogiosa à minha prestação pessoal, profissional e institucional para com a Comunidade e Instituições de Nisa, da qual podia, se quisesse, requerer cópia. Entendi não necessitar de comprovativo algum, sendo para mim suficiente aquela informação verbal do Exmº Senhor Presidente a quem ficarei grato toda a vida, com plena consciência do dever cumprido...

 

José Coelho in Histórias do Cota