segunda-feira, 3 de abril de 2023

Enquanto há vida, há esperança

Foto Estúdio Cardinho Ramos - Castelo de Vide, Agosto de 1981
Castelo de Vide, ano de 1981. Era quase meio-dia e comandava a patrulha de 24 horas de prevenção (ou piquete) para a qual havia sido escalado com um camarada mais novo. Estávamos já de regresso ao posto para irmos almoçar quando o plantão nos avistou no carreiro do jardim e nos chamou com notória urgência porque tinham acabado de telefonar do Pouso a informar que estavam duas senhoras mortas dentro da casa de uma delas.
Cinco minutos depois estávamos lá.
Ninguém se atrevera ainda a entrar nem a mexer em nada. Viam-se as duas senhoras através da vidraça da janela sentadas num sofá, aparentemente inertes. Não pensei duas vezes e agi em conformidade com o meu raciocínio por tudo o que os meus olhos viam e interpretavam. Forçando a porta entrei e percebi de imediato a tragédia. No instante seguinte corri para a janela que abri de par em par, para o ar puro da rua entrar naquele exíguo espaço saturado de monóxido de carbono.
A televisão continuava ligada mas de emissão apenas o formigueiro cinzento no ecrã. Foi no tempo em que a RTP encerrava à meia-noite e não havia ainda canais privados como hoje. Uma das senhoras aparentava estar morta há algum tempo mas mesmo assim tentei encontrar-lhe qualquer sinal de vida sem resultado.
A outra senhora estava ainda morna e não parecia ter a lividez da morte. Aparentava estar adormecida, ainda com alguma cor nas faces. Auscultei com o ouvido o seu peito e o coração ainda deixava ouvir um fraco e irregular tum-tum. Senti um estertor e pensei que a senhora estava mesmo a ir-se embora mas em simultâneo pensei também que talvez eu fosse capaz de ministrar-lhe os primeiros socorros que me tinham ensinado na vida militar e no alistamento da guarda.
Não perdia nada em tentar.
Pedi ao meu camarada que me ajudasse a carregar a senhora para a rua e estendemo-la no chão sobre uma manta do sofá ao ar frio daquele início de tarde. Desapertei tudo o que a asfixiava em termos de roupa pois pareceu-me que a senhora queria respirar e não conseguia. Nunca tinha feito tal coisa, apenas me tinham ensinado como fazer se um dia fosse necessário. Nem hesitei mais. Tinha mesmo de ser! Ali parado a vê-la morrer é que não me parecia o mais correto porque sou daqueles que acham que enquanto há vida há esperança.
Ajoelhei ao lado da senhora, enchi o peito de ar e insuflei-lho boca a boca. A seguir comprimi-lhe o tórax com a chave das mãos uma sobre a outra, um, dois, três… Voltei a insuflar mais ar e repeti a operação várias vezes. Não sei se foi a minha aflição de não a deixar morrer ou se me pareceu que a senti reagir ligeiramente.
Tudo parece muito fácil quando está a ser ensinado pelos especialistas, mas na prática é muito mais complicado. A senhora tinha o queixo rígido e mal conseguia abrir-lhe a boca. Depois com o volume dos seios, não sabia muito bem onde e como carregar-lhe no peito sem a magoar. Tinha-a descomposto porque lhe havia desapertado a blusa, o soutiã, a saia e as ligas de elástico das meias.
Voltei a repetir a minha inexperiente técnica de boca a boca e mais um, dois, três, sobre o tórax e de repente… aleluia! A senhora deu um ãeee em surdina, tossiu como se estivesse engasgada e começou a resfolegar. Primeiro duma forma entrecortada e com alguma dificuldade, mas pouco a pouco a respiração quase normalizou.
E eu apenas pensei:
- Catano, consegui!
Nunca falei disto a ninguém na minha vida porque entendo que o Bem deve ser feito em silêncio sem exibições bacocas. Porém, passados mais de 40 anos, este episódio é já apenas e só a doce lembrança do meu primeiro desempenho, com a minha também primeira gratificante sensação de realização profissional.
Senti-me tão bem comigo mesmo, que só para o viver valeu a pena tão atribulada integração na GNR.
Entretanto chegaram os bombeiros com a ambulância para levarem “os dois cadáveres" assim que o delegado de saúde e o delegado do ministério público dessem ordem para levantar os corpos, porque a voz que corria na Vila era de que estavam as duas já mortas. Contudo, assim que viram a senhora sentada e a recompor-se, meteram-na imediatamente na ambulância e transportaram-na para o hospital de Santo Amaro para lhe serem ministrados cuidados de saúde mais adequados para ela se recompor completamente.
Enquanto a senhora sobrevivente era transportada para o hospital, eu e o meu camarada de patrulha continuámos lá até à chegada das entidades competentes para se poderem efetuar os trâmites seguintes. E até eles chegarem iniciei o inquérito sumário acerca das causas do funesto acontecimento e concluí que as duas senhoras costumavam passar alguns serões invernais a ver a série Dallas na televisão naquela pequena sala, e que, no anoitecer na véspera, estivera um frio tão cortante que decidiram fazer um braseiro para ficarem mais confortáveis.
Porém, antes de se instalarem no sofá para o seu televisivo serão, fecharam cuidadosamente as portas e janelas para não entrar o gelado ar da noite.
Erro fatal.
Dada a exiguidade da sala, o resto aconteceu sem se aperceberem que se tinham fechado numa armadilha mortal, silenciosa, inodora e que não emite qualquer sinal de aviso. O confortável calorzinho do braseiro foi aquecendo o ambiente mas simultaneamente foi envenenando o oxigénio vital substituindo-o pelo dióxido de carbono que traiçoeiramente as intoxicou.
Inexplicavelmente uma das senhoras deve ter sucumbido logo às primeiras horas, uma vez que estava já em rigidez cadavérica quando eu cheguei e os líquidos que expelira pela boca na sua agonia, já estavam completamente secos e agarrados à pele, enquanto a outra senhora conseguira resistir durante aquelas horas todas, sendo possível reanimá-la e trazê-la de volta.
A anormal ausência das duas só fora detectada porquanto tinham combinado ir à missa do meio dia com as vizinhas do lado, as quais, como elas não apareciam, foram procurá-las a casa e deram o alarme.
Alguns dias depois fui visitar a sobrevivente ao hospital. Sentia uma enorme tranquilidade cada vez que memorizava os meus atabalhoados esforços para a reanimar e como, naqueles aflitivos momentos, a gente é capaz de fazer tudo para tentar salvar uma vida.
A senhora permanecia ainda combalida e confusa não se sabendo até que ponto o seu cérebro teria sido afetado pela falta de oxigénio que ela respirou durante horas. Um dos filhos que estava presente, agradeceu-me encarecidamente, pois os bombeiros haviam-lhe contado tudo. Disse-me que jamais se esqueceria disso e que iria recompensar-me pelo que eu tinha feito pela sua mãe.
Disse-lhe que apenas tinha cumprido o meu dever e que a minha recompensa fora o momento em que a senhora sua mãe se recompusera. Agora só o tempo e os adequados cuidados de saúde a que estava a ser sujeita fariam o resto. O senhor compreendeu. Ficámos amigos e a senhora sobreviveu mais uma dúzia de anos depois daquele sinistro dia.
Passaram mais de quarenta anos. Onde quer que me vê ainda hoje, aquele filho, também já velho como eu, faz sempre questão de me vir cumprimentar e convidar para um cafezinho que eu umas vezes aceito, outras vezes retribuo…

José Coelho in Histórias do Cota