Anta da Granja - Beirã - Foto José Coelho
Nas minhas incursões pelos lugares que me viram crescer gosto de fotografar tudo o que acho que merece a pena. Gosto ainda mais de repartir depois convosco essas imagens que vou recolhendo, das quais possuo já um espólio imenso e vou arquivando num disco externo adquirido expressamente para esse efeito. Antas e menires, lagaretas e povoados, choças e chafurdões. Ou tão só os gigantescos amontoados de canchos que em muitos lugares têm dimensões colossais.
Ninguém imagina a riqueza imensa dos vestígios do passado que se escondem por estes ermos a par da beleza única da paisagem. Costumo sentar-me junto dessas relíquias num quase religioso silêncio para contemplar cada pormenor. Monumentos como o da fotografia que ilustra este escrito que foram há milénios arrancados à natureza com instrumentos rudimentares, levados para ali e postos de pé, apenas com o uso do braço e engenho humano, o que parece tarefa quase impossível.
E mais! O que ali está são só já restos do original. Falta a laje que lhe servia de chapéu, decerto de dimensões ainda maiores das que se mantêm erectas, apesar dos milénios que por elas já passaram. É simplesmente espantoso. Concebidas para o culto dos mortos que nelas eram sepultados, foram-se degradando com o tempo mas também com a ganância humana que nelas imaginou tesouros ocultos e as profanou à sua procura. O homem que tantas vezes prova ser um génio, é também tantas vezes um predador.
Devo o pouco que sei destas maravilhas a um ilustre Marvanense que muito respeito e admiro e tem sido incansável na localização, sinalização e conservação destes monumentos um pouco por todo o país, mas muito particularmente no nosso concelho. Não vou referir o seu nome porque não o devo fazer sem o seu consentimento, mas sei que todos os meus conterrâneos sabem a quem me refiro pela excelência da sua identidade. E como não tive a formação académica que gostaria de ter, é nos seus documentos que bebo avidamente tudo quanto sábia e pacientemente ele explica acerca destas maravilhas.
E de muitas outras.
Não sei quantas vezes fui visitar cada um destes lugares, mas garanto que foram muitas. E nunca me aborreci, nunca achei os passeios repetitivos nem monótonos. Pelo contrário. Trouxe sempre o coração a transbordar de tranquilidade. Aprendi a dar valor ao silêncio que nos rodeia por estes ermos, quando conheci o estrondo infernal da guerra lá tão longe deles. Foi há muitos anos é verdade. Mas é um trauma do qual nunca mais conseguimos libertar-nos. E como se isso não bastasse, tive também depois uma profissão de permanente exposição pública, de contacto com alguma da miséria humana que passa despercebida a muita a gente mas que vive mesmo ali ao seu lado, com a qual tive que lidar algumas vezes.
Parece tão fácil, não parece? Há quem ache que os chuis não fazem nada. Pode não ser uma profissão fisicamente dura, mas é tantas vezes psicológica e tão profundamente desgastante, que mais valia o doer dos braços a cavar de enxada, do que sentirmos as sequelas que se entranham por longas noites de insónia causadas pela visão de uma criança esventrada num acidente de viação, ou de uma mãe enforcada com os filhos pequenitos agarrados às pernas dela a chorarem mãe, mãe, ou ainda a cabeça de um infeliz desfeita a tiro de caçadeira disparado pelo seu próprio pai, sei lá eu quantas mais coisas absurdas e inquietantes que acontecem no sempre imprevisível dia a dia de um agente da autoridade.
Por mais instrução que seja ministrada nos cursos de formação, nunca se está preparado para tais situações. E não se pode dizer que não se vai lá porque não somos capazes. Não foi por acaso que em cada dia longe deste meu pacífico mundo de pedras e de paz se entranhou em mim a certeza de que era para aqui e só para aqui que eu queria voltar assim que pudesse. E foi o que fiz. Também não é novidade que afirme agora que já não sou feliz neste lugar para onde tanto ansiei voltar. E não, não é falta de coerência. Isso é que eu nunca fui. Incoerente. Muito pelo contrário.
Mas há silêncios e silêncios.
Nos campos, por esses canchais, só o vento, a passarada ou os chocalhos dos gados a pastarem, quebravam a monotonia envolvente. Mas esse quebrar de silêncio tornava-o ainda mais doce e meditativo. Tantas vezes, ao sentir a sua espetacular harmonia pensei comigo que se o paraíso existe, ele não deve ser muito diferente disto tudo por aqui. Mas ao regressar à aldeia, cruzava-me com muita gente. Via e cumprimentava os hortelãos como o meu pai, nas suas hortas. Ouvia os pastores a assobiarem aos cães. Sentia a vida em meu redor. E mal apontava ao alto da Murta, ou à Cavalinha, ou ao alto do Cabeço, já começava a perceber a gritaria dos gaiatos nas suas brincadeiras e correrias pelas ruas.
Hoje há mais silêncio na aldeia do que junto de qualquer anta, menir, choça ou chafurdão. E se o vento ao tocar nas folhas dos sobreiros deixa ouvir um reconfortante sussurro, o mesmo vento a entrar pelas frestas das portas e janelas das casas desabitadas da minha aldeia, provoca um vazio que não reconforta ninguém.
Pelo contrário, arrepia...
Os monumentos megalíticos que abundam por aqui estão de pé há já milénios. A minha freguesia em pouco mais de duas décadas esvaziou-se de gente quase por completo. Por enquanto as casas vão-se mantendo de pé. Apenas em duas delas na Rua Vivas, os telhados já desabaram. Pelos campos, também as antigas casas de lavoura assim como as moradas de pastores e ganhões vão ruindo em dominó sem apelo nem agravo.
E o Ramal de Cáceres, coluna vertebral que sustentava toda a vida e economia desta região, jaz moribundo a ser engolido pelo mato.
Não há volta a dar...
José Coelho