O melhor do ano de 1980 que começara já tão bem, estava ainda para vir. Pouco tempo depois, o quarto elemento da nossa família anunciou que já estava a caminho. Que coisa melhor pode acontecer a um casal do que essa verdadeira bênção? Mais um filho. Que maravilha! Menino ou menina, não fizemos nunca escolhas antecipadas. Viesse o que viesse, seria muito bem-vindo. Que tivesse perfeição e saúde era a única coisa que pedíamos a Deus.
Foi aquele um tempo muito duro para todos os GNR’s. A reforma agrária continuava pelas herdades do distrito com as habituais tensões e conflitos a originarem inimizades com tudo o que era guarda, mas, curiosamente, esse facto era gerador de uma unidade entre os guardas e suas famílias, muito forte. Confiávamos uns nos outros, sentíamo-nos seguros uns com os outros e éramos unidos como uma grande família. Por sua vez as nossas famílias davam-se também todas muito bem, o que gerava de facto à nossa volta um ambiente muito íntimo, coeso e acolhedor.
O serviço era exigente e rigorosíssimo. Não havia facilidades para ninguém. Casa, posto, e posto, casa. Nem vagar havia para se estar doente. Uma folga por semana, se pudesse ser, porque o serviço tinha prioridade. Quem lhe calhasse a folga à terça ficava “ad-eternum” a folgar às terças, enquanto os sortudos que lhes calhava o domingo, idem, idem, aspas, aspas.
Tínhamos de fazer 72 horas consecutivas duas a três vezes por mês, porquanto o plantão eram 24 horas de permanência no posto, seguido do apoio ao plantão, com outras 24. Para rematar, entrava-se a seguir de piquete com outras 24 horas, mas já com a benesse de se poder ir almoçar, jantar e dormir a casa, mantendo-se no entanto atento e pronto para qualquer ocorrência até ao dia seguinte, quando os outros camaradas nos substituíam.
A escala era por isso muito dura. Mas era assim em todo o lado. O serviço era o dono e senhor da vida de cada guarda. A família tinha de se contentar com as sobras de Sua Excelência, o Serviço. Festas e fins de semana eram coisas para civis, porque nós éramos militares. E um militar da guarda tinha de estar sempre pronto fosse para o que fosse, 24 sobre 24 horas. Um militar está sempre de serviço, era o lema, a disciplina de ferro.
E diziam os oficiais rondantes nas suas visitas aos postos, para que ninguém duvidasse:
- Quem não estiver bem, meta o papel e vá-se embora…
A comprovar essa prioridade tão exagerada quanto desumana que era dada ao serviço diário na GNR daquele tempo, vem a propósito referir o facto de o meu segundo filho ter nascido exatamente num dia em que eu estava de plantão ao posto. O parto correra normalmente embora a mãe ficasse bastante combalida porque o gaiato nasceu com mais de quatro quilos e a coitada viu-se e desejou-se para o trazer ao mundo. Em consequência do tamanho e peso anormais, o Pedro teve de ir para a incubadora para ser mantido em vigilância permanente durante alguns dias, afim de ser monitorizado e despistar algum problema cardíaco ou respiratório. Só depois seria entregue à mãe.
Eu estava evidentemente feliz, mas algo preocupado com o facto de o menino ter ido para a incubadora. E naturalmente desejoso de lá ir vê-lo, animar a mãe e falar com o médico pediatra para esclarecer as minhas naturais inquietações. Mas não pude ir. Estava na tal “quarentena” das 72 horas inseparável do posto. O Pedro nasceu no dia 22 de Abril. Para completar a minha sorte, no dia 23 saí do serviço de plantão às nove da manhã e entrei às nove e um minuto para mais 24 horas de serviço no apoio ao plantão que era exatamente a mesma treta e só mudava o nome. Nem dava sequer para ir tomar o pequeno-almoço a casa.
Eram 48 horas batidinhas e seguidas sem tirar aqueles suspensórios pretos horríveis e herdados do III Reich, tal como as espingardas Mauser, de tal modo que ostentavam ainda o monograma da águia alemã sobre a cruz suástica, gravado na zona da culatra. Aliás, todo o nosso uniforme desse tempo era uma inspiração quase fiel do equipamento militar nazi. Felizmente alguém teve o bom senso e ainda o melhor gosto de o mudar e humanizar mais um pouco, porque todo aquele equipamento nos fazia parecer uma Gestapo à portuguesa.
Como consequência do meu azar na maldita escala de serviço, só pude conhecer o meu segundo filho quando ele tinha já três dias. Valeu-me um camarada da Ranginha que sabendo o que se estava a passar se ofereceu para me levar no seu carro ao hospital de Portalegre às escondidas e sem ninguém saber, porque nem sequer podíamos sair da área do Posto sem autorização superior.
Sete anos depois do 25 de Abril de 1974, a GNR continuava parada no tempo e quase
igual ao que era antes dele.
Inacreditável!
Fui encontrar o meu menino ainda dentro da incubadora. Tive de colocar uma touca, calçar pantufas e colocar máscara tudo esterilizado para entrar naquela sala cheia de balões de vidro com bebés lá dentro. E lá estava o meu matulão a chorar que nem um desalmado.
- Deve ter medo do meu traje! Pensava eu, feliz.
Como gritava a plenos pulmões! Não parecia nada um bebé com problemas de saúde. Parecia, isso sim, um refilão de primeira. A enfermeira veio ao meu encontro e disse-me que sim, que ele era muito refilão porque não parava quieto nem calado.
Pouco depois veio também o pediatra ter comigo para me informar o motivo por que o miúdo ali permanecia. Que era apenas mera precaução em virtude de algum excesso de peso, mas não havia qualquer problema e que fosse para baixo para junto da mãe que o bebé já lá iria ter conosco.
E assim foi.
A minha Manuela é que ainda não se tinha recomposto. Parecia que tinha sido atropelada por um trator. Passara mesmo um mau bocado no parto, mas, tal como eu, estava muito mais preocupada por lhe terem levado o seu menino, do que com as suas próprias mazelas. Tranquilizei-a, disse-lhe o que o médico me tinha acabado de dizer e não podendo demorar muito mais porque estava ali “fugido” regressei ao posto mais sereno e feliz.
Garanto-vos uma coisa. Todos as desumanas barbaridades por que passei, formaram no meu carácter uma determinação; sabedor do quanto me custou passar por tudo aquilo, jamais o esqueci. Em consequência disso, agi sempre exatamente ao contrário, e, anos mais tarde, quando já comandante de homens, ajudei quanto pude todos os meus subordinados sempre que eles precisaram, colocando-me muitas vezes no seu lugar, assumindo a responsabilidade de os substituir quando eles tinham problemas inesperados que precisavam ir resolver de imediato, porque sempre pensei para comigo:
- Não farás nunca a ninguém, o que te fizeram a ti…
Era um facto que o serviço era exigente. Mas o cabo comandante do posto podia, se tivesse querido, dar um jeitinho para eu ir numa fugida ver o filho e a mulher mesmo estando de plantão, porque qualquer outro dos meus camaradas me substituiria de boa vontade durante duas ou três horas até eu voltar. Era uma questão de pura consciência e solidariedade humana, porque o serviço não parava...
José Coelho in Histórias do Cota