A vontade de ascender na carreira profissional contagiou
vários camaradas do posto da GNR de Castelo de Vide. Em apenas dois anos,
concorremos ao Curso de Promoção a Cabo, cinco soldados, três dos quais se
catapultaram em seguida para o Curso de Promoção a Sargento.
Um deles fui eu.
A Guarda estava muito deficitária de graduados porque a promoção ao posto imediato implicava sempre transferência de unidade e a colocação em “cascos de rolha” depois de promovidos, com o consequente afastamento da família. Além disso, a diferença de ordenado por motivo da promoção não justificava tais incómodos. Tendo ainda em conta que esses militares demoravam depois dez ou mais anos a regressar novamente para perto das suas famílias, era um risco que muita gente recusava correr.
Por isso mesmo, as vagas para cabo e sargento eram muitas. Então, em 1982, entendeu o Comandante-Geral proporcionar a quem quisesse arriscar, algumas benesses muito razoáveis e aliciantes. E assim foi que, influenciados uns pelos outros, dois dos militares mais antigos - um deles já com quarenta anos - e três dos mais novos, decidimos concorrer.
Tão grande foi o empenho que conseguimos passar todos nas provas de admissão. Meses depois e sendo eu ainda soldado a meio do Curso de Promoção a Cabo, abriu novo concurso para admissão ao 6º Curso de Promoção a Sargento da GNR. E uma das tais benesses que o General Comandante-Geral concedeu foi a de prescindir temporariamente da cláusula que obrigava qualquer candidato a sargento a ter, pelo menos, três anos no posto de cabo.
Era Março de 1982 e faltavam ainda três meses para o terminus do Curso de Cabos. Nem eu, nem nenhum dos meus camaradas, sabíamos se conseguiríamos chegar ao fim com aproveitamento, pois estávamos sujeitos a chumbar em qualquer das disciplinas, etapas ou objetivos, que porventura não fossem alcançados. Essa espada pendia sobre a cabeça de todos os candidatos de todos os cursos, do primeiro ao último dia.
Eis senão quando e por novo despacho com carácter excecional do então Comandante-Geral, o referido Concurso de Admissão ao 6º Curso de Sargentos desse ano foi extensivo aos candidatos que se encontravam ainda na frequência do curso de cabos e se sentissem com capacidade para prestar provas, mesmo sem terem ainda terminado o curso, tendo em conta a possibilidade real de, na data prevista para início do curso de sargentos em Outubro, já todos sermos cabos.
A maioria dos meus camaradas ficaram entusiasmadíssimos com o convite até porque a maior parte deles tinham o 5º ou mesmo o 7º ano liceal que eram as habilitações que nesse tempo antecediam o ingresso no ensino superior e por isso não temiam as provas escritas de admissão.
Já para as provas físicas era mais complicado por terem fama de serem duríssimas e a realizar numa unidade do Exército estranha à Guarda – a Academia Militar – que metiam as costas para dentro a toda a gente pelo seu lendário grau de dificuldade. Era mesmo lá que tinham chumbado sempre a maior parte dos candidatos aos cursos anteriores.
Eu ouvia-os mas nem ousava alimentar ilusões. Só tinha a quarta classe do ensino primário, a escolaridade mínima obrigatória. Apesar de ter alguma facilidade em assimilar as coisas e não estar muito mal posicionado em termos de notas na classificação geral do Curso de Cabos dado que entre os 94 instruendos eu estava em 48º lugar o que não era nada mau, tendo em conta que a equivalência do Curso era ao nível do 9º ano de então e tinha áreas que eu desconhecia totalmente e com as quais tive de desenvencilhar-me; português, matemática, história universal, física e química, ciências do ambiente, língua francesa, direito penal, direito civil e administrativo, constituição, a mãe de todas as leis, para além outras mais de que nunca sequer ouvira falar.
Para conseguir aguentar a pedalada estudava todas as noites duramente. Sete dias por semana até às duas ou três da manhã, enquanto aqueles que tinham mais habilitações literárias arrumavam os livros às cinco da tarde quando terminavam as aulas, tomavam o duchezinho da ordem, jantavam tranquilamente, vestiam “à civil” e punham-se a milhas a caminho da baixa lisboeta para irem divertir-se.
Ao contrário deles, eu nem sequer aos fins-de-semana podia pousar os livros! Nas viagens de comboio entre Santa Apolónia e Castelo de Vide ou vice-versa, sentava-me a ler e a fazer apontamentos todo o tempo que a viagem durava. Aos sábados e domingos, em vez de dormir a manhã na cama, como como tinha os filhos pequenos, levantava-me às seis da manhã – a minha Maria é testemunha – para me fechar na sala a estudar sossegado e poder concentrar-me, antes de os miúdos acordarem para lhes depois lhes dar algum mimo e atenção.
Porém, mesmo com tantos obstáculos pela frente, a tentação de me aventurar a concorrer a sargento começou a minar o meu espírito. Se por um lado pensava que era areia demais para a minha camioneta, logo a seguir o meu subconsciente respondia que nada perdia em tentar. Se conseguisse, conseguia, se não conseguisse, pelo menos tinha tentado. E se não aceitasse o desafio, jamais poderia saber o resultado.
Porque coragem e resiliência foram atributos que nunca me faltaram, decidi, fui-me a ele, e… Venci-o.
Antes de terminar por hoje e por uma questão da mais elementar justiça, devo referir ainda a impagável ajuda de alguns daqueles meus camaradas de curso que tinham mais habilitações e que tão generosa como pacientemente me explicavam, ensinavam e com isso muito ajudaram inúmeras vezes nos intervalos das aulas ou quando regressavam da borga à noite e me encontravam a “marrar” ainda na sala de aula, noite adentro.
Foi imprescindível essa sua generosa e louvável ajuda a todos os níveis, se analisarmos que naturalmente eles teriam muito mais vantagem em evitá-la por serem candidatos como eu, e, por isso mesmo, quantas mais negativas eu tivesse mais se consolidaria a sua posição na classificação geral para efeitos de promoção.
Bons tempo, no início da década de 80, em que a camaradagem e a solidariedade entre camaradas d’armas não eram apenas retórica…
José Coelho in Histórias do Cota
Foto - Cortesia de um camarada Sargento