terça-feira, 16 de agosto de 2022

O Rex e a mãe-javali




Era lindo o Rex. Em casa dos meus pais, como já por aqui afirmei, sempre houve bicharada. Cães, cabras, gatos, galinhas, patos e até pintassilgos numa gaiola, coisa que eu sinceramente não achava graça nenhuma porquanto entendo que os pássaros, tal como nós, foram criados para viverem felizes em liberdade.

Muitas vezes algumas pessoas chegadas apercebendo-se da apetência da passarada para fazerem os seus ninhos nas árvores e latadas do meu quintal – na primavera passada, por exemplo, tínhamos um ninho de pintassilgo na roseira-que-trepa, outro no abrunheiro, mais um de verdelhão na latada ao lado da casa e finalmente outro de carriça na trepadeira da varanda – pediam-me para lhes “apanhar” um pintassilgo ou um verdelhão, o que sempre recusei, costumando perguntar-lhes meio a rir e meio a sério:  - Também gostavas que te metessem numa gaiola?

Mas hoje quero contar-vos uma divertida história do nosso Rex. Era um cãozarrão enorme, todo negro com um pelo brilhante como verniz, nascido do cruzamento do cão labrador pisteiro do destacamento da GNR de Almada, com a cadela pastor alemão do então comandante daquela sub-unidade, o capitão Ochôa, posteriormente colocado em Nisa onde eu prestava também serviço.

A Lai, assim se chamava a cadela mãe do Rex, vinha prenha e deu à luz, algum tempo depois, uma bela ninhada de cachorros. Saíram todos da raça da mãe pastor alemão, à exceção do Rex que nasceu assim negro como uma amora madura, da raça do pai. Enquanto os outros cachorros espetavam as orelhas, o Rex tinha-as caídas. Por isso ninguém o quis, apesar de, para mim, ser de todos o mais bonito.

Como a mais ninguém interessou fiquei eu com ele para o oferecer ao meu filho Pedro que tinha na altura 9 anos – e porque o Manel já tinha a gata siamesa Princesa que lhe tinham oferecido no seu aniversário – o qual não só ficou encantado com o seu novo amigo, como lhe dedicou uma amizade sem paralelo, digna de se ver. De tal modo que, ainda hoje, mais de duas décadas depois de já não estar connosco, o Rex é recordado com frequência como um velho e querido amigo que deixou muitas saudades.

Mimado e bem tratado como o são sempre todos os animais na nossa casa, o pequeno cachorro fez-se um gigante. Enorme, dócil e lindo. E valente. Nada lhe metia medo. Corria para o mato todo arrufado assim que sentia qualquer mexida, fosse um saca-rabos, uma raposa, ou mesmo uma corpulenta vaca ou um burro. Ali não havia hesitações! Às vezes arreliava-me bastante com ele porque desatava a correr desatinado atrás de qualquer bicharoco e tanto fazia chamar por ele, como ficar calado. Muitas vezes o perdi de vista e tive que depois andar de cancho em cancho já zangado à sua procura, até que lá me aparecia o gajo com um palmo de língua de fora, esbaforido pela correria!

Até que um dia…

Tínhamos vindo morar definitivamente para a nossa Toca dos Coelhos na Beirã. Todas as tardes, assim que eu chegava de Portalegre saíamos os dois a dar grandes passeios por aí, subindo e descendo canchos a desbravar matagais até às barreiras do rio Sever, coisa que o cão não só adorava como também necessitava para desentorpecer, para dar umas valentes corridas e fazer o exercício indispensável ao seu bem-estar físico.

E foi numa dessas tardes que eu me ri até às lágrimas com o que aconteceu. Caminhávamos os dois pela “carreteira” de terra batida da Tapada dos Carvalhos de Roque quando o Rex pressentiu algo a mexer entre as giestas.

Nem pensou duas vezes.

Atirou-se de cabeça para meio do mato num furioso ladrar, capaz de comer o que quer que fosse que tivesse provocado aquela agitação, para o afugentar e perseguir como tanto o regalava! Porém, se muito depressa o perdi de vista, mais depressa o vi voltar pelo mesmo caminho aflito e a ganir apavorado à frente de uma furibunda mãe-javali que, aos sopros e grunhidos o perseguia sem medo. Atrás dela vinha uma dúzia de bacorinhos-javalis recentemente paridos, motivo pelo qual, com toda a certeza, a zelosa marrã-mamã não achara piada nenhuma à evidente ameaça que aquele cãozarrão representava para os seus meninos. Sem hesitar um segundo, contra-atacou.

E o Rex, ó abre...

Fujam da frente que atrás vem gente!

Patas para que vos quero!

Nunca tinha visto nada assim.

A mãe-javali quando encarou comigo, tacitamente recuou. Deu meia-volta com os bácoros atrás e desapareceu de novo no mato. Mas o Rex, de rabo entre as pernas, o tal matulão valentão, atiradiço e destemido, naquela tarde não mais se atreveu a descolar o focinho dos meus calcanhares, enquanto durou o resto do passeio. 

E eu continuei a rir a bom rir durante o resto da tarde, rio-me ainda algumas vezes, muitos anos depois, cada vez que passo por aquele sítio e me lembro da hilariante cena.

Bons tempos. E Boas recordações.

José Coelho in Histórias do Cota

Foto: O Rex e o Pedro em 1992

Nota Explicativa:

* Em nossa casa os animais nunca viveram presos à corrente porque eu não gosto e porque temos um quintal enorme onde eles sempre puderam circular à sua vontade dia e noite. Nesta foto o Rex estava preso, porque decorriam as obras de remodelação da cozinha-fumeiro e acessos no quintal, tendo o portão que dá para a rua de manter-se aberto para os trabalhadores entrarem e saírem com os materiais de construção, das oito da manhã às cinco da tarde.