quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Segredos do sol poente



Aproxima-se, a passos largos, aquela que é a minha estação do ano preferida. O outono. Se calhar pela melancolia que lhe está normalmente associada, e porque eu sou também, por natureza, um pouco melancólico. Faltam ainda duas ou três semanas para o termos por cá, mas os dias já estão a encurtar a passos largos, as folhas nos ramos dos choupos do ribeiro, dos ulmeiros, dos plátanos, das figueiras e das muitas outras árvores de folha caduca que se avistam do alto do meu quintal até onde o céu e a terra se tocam na linha do horizonte, começam já também aqui e ali a tingirem-se dos vários tons dourados que anunciam o final do seu ciclo de vida. Até as inúmeras parras da nossa latada se lembraram de começar a cair ainda antes de as uvas serem vindimadas, por certo de tão queimadas que ficaram pelo calor de mais um inclemente verão.

Esta tarde, como faço quase todos os dias depois de regar as plantas, sentei-me na varanda do quintal a desfrutar o momento em que o sol se despedia dos cumes graníticos orlados de copas de sobro, carvalho e azinho, além para os lados da Herdade dos Pombais, os mesmos que amanhã serão os primeiros a darem-lhe as boas-vindas logo que ele se eleve para iluminar o novo dia. A traseira e a frontaria da nossa casa foram, pelo seu fundador e arquiteto, o meu saudoso pai, orientadas para nascente e para poente, de modo que uma é banhada pelo astro-rei assim que ele nasce, e a outra despede-se dele ao fim do dia quando o mesmo desaparece no azimute delimitado entre a serra da Senhora da Penha e a várzea do Vale do Cano. Não foi por acaso. Nada era por acaso nos planos daqueles queridos mestres. As empenas ficaram assim viradas aos outros dois pontos cardeais, para suportarem, uma a gélida e invernosa nortada, e a outra, as copiosas chuvadas de sul.

É o por do sol - já o disse inúmeras vezes - o meu momento de eleição de cada dia. Fico enlevado no encanto destas paisagens que me viram nascer e que considero tão únicas quanto irrepetíveis. Estranhamente, a natureza parece parar por completo nos instantes que antecedem o ocaso. E isso acontece mesmo todos os dias. São só uns breves instantes, mas é deveras surpreendente. Hoje a minha companheira sentada ao meu lado na varanda e admirada com tal silêncio, comentou:

- Que sossego Zé! Nem os pássaros se ouvem!

- É verdade! Respondi. E continuei:

- Até o cãozarrão ali em baixo que parece estar sempre zangado com o mundo inteiro porque ladra todo o dia e toda a noite, se calou! 

- Que estranho, não?  Perguntou, antes de se remeter também ao silêncio.

A luz do sol tomara, entretanto, um brilho amarelo-pálido. Os canchos e o montado lá ao longe pareciam iluminados por uma luz artificial semelhante à dos holofotes que iluminam à noite as muralhas de Marvão. E lentamente foi-se extinguindo, até desaparecer por completo. No momento seguinte a barra cinzento-escura da noite começou a aproximar-se e a envolver os mesmos calhaus e montado que minutos antes tinham estado iluminados. Sinceramente, acredito que este deve ser o momento em que Deus desce à terra cada dia e que por isso toda a natureza e criação ficam no mais respeitoso silêncio.

Nesses momentos de tão completa harmonia invade-me uma paz de espírito difícil de explicar. É uma tranquilidade íntima tão doce que instintivamente fecho os olhos e dou graças por ter nascido, por ainda estar vivo e pela minha vida inteira. Pelos pais e avós maravilhosos que tive, pelas irmãs, filhos, netas, esposa, família em geral e amigos que ainda tenho, a reforma que suporta o pão nosso de cada dia, a casa que me acolhe, a saúde, ainda que mais frágil do que quando era novo, enfim, o infinito rol de dádivas com que fui e continuo a ser agraciado pelo Criador, cada dia do meu já longo viver. É instintivamente natural sentir-me grato nesses momentos especiais em que tudo à minha volta permanece na mais absoluta quietude.

Nunca repararam nisso? Então experimentem. Subam a um monte, ou escolham outro local qualquer, sossegado. Quase me atrevo a apostar que irão surpreender-se com a quietude e o silêncio que de súbito parece rodear tudo em redor. São só uns breves instantes. Apenas o tempo que o sol demora entre tocar a linha do horizonte e desaparecer por completo atrás dela. É tão sublime que quase nem nos atrevemos a respirar para que o "barulho" da nossa respiração não perturbe a paz que nos envolve. 

A Vida, a Natureza e o Mundo, são maravilhosos. Às vezes nós é que não olhamos, ou olhamos, mas não vemos. Eu acredito que são obras do Criador. Mas respeito quem não acredita. Cada um sabe de si.

Tenham um excelente final de verão.

José Coelho
Texto e Foto