quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Já não se usa

Nasci, cresci e fui educado numa das mais humildes famílias da aldeia. Os meus pais foram seguramente os melhores do mundo na sua integridade de caráter e total honestidade, o que fez de nós, seus quatro filhos pelo seu permanente exemplo, tudo aquilo que somos. Também os meus avós maternos eram pessoas do campo de uma doçura e seriedade inexplicáveis. Dos meus avós paternos apenas conheci o avô Faustino Coelho, bom homem, cantoneiro de profissão, a quem cedi a minha cama para seu maior conforto ficando eu a dormir no desengonçado divã que ele trouxe consigo e com quem partilhei o quarto nos últimos anos da sua vida. Já a avó Adelina Gargaté faleceu precocemente com pouco mais de cinquenta anos vítima de problema cardíaco, antes de eu poder conhecer o seu colinho e os seus miminhos que não duvido seriam tão carinhosos como os da avó Amélia, se tivesse podido darmos.
Nasci, cresci e fui educado numa época extremamente complicada depois de terminadas a II Guerra Mundial e a Guerra Civil de Espanha onde reside a maior parte da minha família materna. As consequências inevitáveis quer de um, quer do outro conflito, estendiam-se por toda a Europa e a pobreza quase extrema assolava grande parte das suas populações que sobreviviam como podiam das parcas jornas e do que a terra dava. Não sendo já propriamente um moço, recordo perfeitamente o tio Zé da Murta a cavar a enxadão todas as fisgas das pedras onde havia um punhado de terra, por toda a tapada ao lado da nossa casa, para semear centeio para o governo da família. E como ele, muitos mais. Não havia bocadinho de chão que não fosse aproveitado para semear, plantar e colher o que depois se punha na mesa.
Nasci, cresci e fui educado por uma categoria de gente que não sabia ler nem escrever, mas que eram trabalhadores, honestos e íntegros nos seus valores, até à medula. Família, vizinhos e amigos. Desde que me lembro de ser gente e até há bem poucos anos atrás, nunca a porta da casa dos meus pais se fechou à chave. De dia ou de noite, quer a porta de entrada, quer a porta de saída para o quintal. Havia total confiança nos vizinhos e em toda a aldeia. E, ao contrário dos tempos que correm, quando alguém batia à porta era-lhe prontamente respondido de dentro da casa, “entre, quem é”. Parece um conto de fadas, mas não é. É a descrição da mais pura e absoluta verdade. Eu só escrevo o que vivi e vi acontecer. Talvez um pouco poetizado, não sei, mas absolutamente autêntico.
Nasci, cresci e fui educado por essa excecional categoria de pessoas que nos ensinavam desde o berço os seus valores e princípios de forma espontânea e natural, os quais dessa mesmíssima maneira eram por nós absorvidos e depois pela vida fora, imitados. Obviamente, tal como existe terra fértil onde se reproduz e multiplica a boa semente, também existe terra mais débil onde ela cai, mas não consegue enraizar-se para se reproduzir e multiplicar, ainda que a sementeira tenha sido a mesma. Por isso na História da Humanidade sempre houve, há e vai continuar a haver, pessoas que, sendo da mesma geração ou até da mesma família, têm comportamentos completamente opostos. Assim se cumpre inevitavelmente o princípio da diversidade.
Porquê esta prosa?
Estou de luto carregado. Faleceu inesperadamente a minha irmã mais velha. Não escrevo “a minha preferida” porque não há irmãos preferidos, há apenas irmãos. No meu caso, três irmãs. A primogénita Adelina dos Santos que Deus já chamou, a seguir vim eu passados quatro anos e a Maria da Luz seis anos depois de mim. Por fim a Joaquina Maria, a nossa caçula, apresentou-se à família quando eu já tinha dez anos. Estou de luto carregado, dorido e profundo, porque a minha Adelina levou consigo um pedacinho de mim porque a amava, como amo as outras duas, como amei sempre os meus pais e avós, como amo os meus filhos e netas. Porque somos sangue do mesmo sangue e porque é impossível ficar indiferente a tão indesejadas perdas. É a minha história de vida a evaporar-se aos poucos, são as minhas raízes a esfumarem-se inevitavelmente, são mais histórias de dias felizes que terei de arquivar na minha memória já tão cheia e que desaparecerão para sempre no dia que eu for ter com todos eles. É, não sei se comum, se cómodo, dizer como eu ouço vulgarmente por aí, “ah e tal, o luto já não se usa!”
Homessa! Não se usa? Mas para o Amor Fraterno também existem modas e tendências? Que raio se passa na cabeça e no coração das pessoas para banalizarem assim aquilo que temos de mais sagrado e autêntico nesta vida? Jamais eu alinharei por essas cruéis modas e rejeito absolutamente tais tendências. Banalizar a perda dos nossos entes queridos, quem nos deu a vida, nos criou, nos ensinou a sermos gente e por nós fez sabe Deus quantos sacrifícios, ou se privou, só Deus sabe de quantas coisas, para que na medida das suas possibilidades nunca nos faltasse nada. Tratar o falecimento de um pai ou mãe, avô ou avó, irmão ou irmã, como se se tratasse de um desconhecido qualquer, de um estranho de outro planeta, não é, de todo, compreensível para mim.
Por isso continuo e vou continuar a fazer sempre como sinto que devo fazer e me foi ensinado. O meu tio Raimundo, tio materno solteiro de quem eu e a minha irmã Joaquina tomámos conta e cuidámos amorosamente conjunta e simultaneamente com a nossa mãe que dele cuidava desde que a avó Amélia deixou de poder fazê-lo, faleceu inesperadamente também uns dias antes do casamento do meu filho Pedro. Estava tudo tratado e era impossível já desmarcar fosse o que fosse. Nem sequer se equacionou essa hipótese. Porém a minha chorosa mãe logo me fez saber que não iria comparecer no banquete, que iria sim, mas apenas à cerimónia na igreja e dali se recolheria em casa. E eu, longe de ficar surpreendido porque conhecendo os seus princípios já estava a contar com isso, fiquei ainda mais comovido pela enormidade do seu amor e do seu respeito pela memória do irmão que também tinha ajudado a criar. Não foi, não esteve lá, mas não foi esquecida. Viemos nós à vez, ora eu, ora a mana Joaquina trazer-lhe tudo o que lhe era devido, mas respeitando escrupulosamente os seus sentimentos e vontade.
Não me interessa minimamente o que cada um faz, mas fico profundamente surpreendido quando vejo filhos sem luto algum no funeral dos pais, nem nos dias seguintes, netos aperaltados de vermelhas vestes no funeral dos avós, numa absoluta indiferença e desleixo pelo respeito que lhes é devido e eles mereceram toda a sua vida. Não se usa? Uma ova! Moda? Qual quê! Comodismo, indiferença, desrespeito, desamor. Quem assim age, não se identifica, de todo, comigo. Se calhar – com todo o carinho que tenho também pelos animais – se fosse algum gato ou cãozinho de companhia que se finasse por velhice, não faltariam selfies e sofridas declarações de luto dos seus desgostosos donos.
Esta inversão de valores e princípios que inundam a sociedade do nosso tempo, é aflitiva, surpreendente, confrangedora. E a Covid 19 veio dar-lhe uma achega valente quando as autoridades sanitárias decretaram o fim dos funerais com a presença de familiares e amigos. Que jeitão essas regras vieram trazer a quem já não queria saber dos pais, avós ou irmãos idosos quando eles ainda estavam vivos! Desde então acabou-se praticamente com os velórios e todos os defuntos passaram a ser tratados por igual, infetados ou não. Decididamente, vivemos tempos estranhos quando vemos colocadas nas redes sociais inúmeras fotos com laços negros do cãozinho que morreu em sinal de luto e desgosto, mas nem vestimos um polo preto em sinal de luto quando nos falece um dos nossos pais, irmãos ou avós.
Termino meio entristecido este meu “escrito” d’hoje, com o último verso de José Régio no seu belíssimo poema “Cântico Negro”.
“Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
—Sei que não vou por aí!”
José Coelho
03.08.2022