Esta foto parece desfocada, mas não está. Caía a tarde e a ténue neblina que pairava por todo o vale anunciava a aproximação da noite. Venho muitas vezes a este lugar, o ponto mais elevado da aldeia e meu bairro, para rever a paisagem encantadora que conheço desde que comecei a caminhar pelo meu pé. Bem sei que sou suspeito ao gabá-la porque nasci debaixo de um dos telhados mais próximos desta varanda natural de onde fiz a foto e que considero ser o miradouro panorâmico mais deslumbrante da aldeia.
Quando nasci quase todas as casas destas ruas "do lado de cá da linha" estavam já lá. Talvez com aspeto mais humilde, caiadas apenas de cal branca e com os alisares destacados a ocre amarelo, azul ou cinzento, as portas e janelas manualmente feitas por carpinteiros em vez das atuais pinturas com tinta industrial, ou das portas e janelas em alumínio. O lavadouro público era também a céu aberto todo rodeado por enormes lages e canchos sobre as quais as lavadeiras estendiam as roupas para corarem ao sol, mas que, entretanto, foram sendo cobertos pelo progresso que calcetou também os acessos e criou os atuais muretes em socalco com os modernos estendais de betão armado.
A maior diferença, no entanto, é que naquele tempo as lavadeiras se acotovelavam umas às outras para conseguirem lugar onde coubessem no tanque para lavarem as enormes alguidaradas de roupa que traziam à cabeça, enquanto hoje se contam pelos dedos de uma só mão as lavadeiras que durante a semana inteira dele fazem uso. E não é só pela concorrência feroz das máquinas de lavar. É muito pior que isso. É, infelizmente, porque já não vai havendo quem precise de lavar, pois as casas sucedem-se aos pares, às três e quatro seguidas sem morar já lá alguém.
O que resta de alguma vida e bulício nesta terra e mesmo assim não muito, é, "na parte de baixo da linha", entre o novo bairro da entrada principal da aldeia e a unidade de cuidados continuados, nascida da transformação em hospital do antigo prédio moradia dos funcionários da alfândega. Quem passa a linha férrea para o lado de cá onde eu (ainda) moro, depara-se com... quase ninguém. Meia dúzia de casas habitadas em cada rua e ruas haverá que nem isso. Sossego. Ausência de quase tudo. Portas e janelas fechadas e mudas. É verdade que, por enquanto, não ainda são visíveis sinais de desleixo ou abandono, muito pelo contrário, com exceção da Rua Vivas onde alguns telhados já começaram a desabar, mas ninguém parece importar-se muito com isso.
É verdade que não mora ninguém na sua maior parte e muitas delas são só casas de veraneio ou de férias dos seus donos, mas é verdade também que os mesmos cuidam primorosamente delas e dá gosto vê-las assim arranjadinhas, apesar de vazias quase todo o ano. Jamais na minha vida imaginei que iria assistir a isto. Imaginei isso sim, sonhei durante a maior parte da minha vida, envelhecer e morrer neste lugar que amo, sim, mas a ouvir o bulício normal de gaiatos a correrem e a brincarem pelas ruas ou no recreio da escola aqui tão próxima, a cumprimentar os vizinhos de quem fomos sempre quase família, a ouvir o apito dos comboios desde que assomavam ao alto da Atalaia vindos da Torre das Vargens, ou dos barreirões do Matinho, quando vinham de Valência.
Já perdi a maior parte dos meus entes queridos. Avós, pai e mãe, uma irmã, tios maternos e paternos. Mas essa é a lei natural da vida e embora doa eu consigo entendê-la. Todos nós, quando vimos ao mundo, temos como herança irrevogável num futuro próximo ou longínquo, a certeza de que um dia iremos deixar de lhe pertencer. Só ninguém sabe quando, onde ou como. Por isso, embora me tenha causado sofrimento cada uma dessas perdas, acabei por aceitá-las como naturais e previsíveis. Porém, por mais voltas que dê ao miolo, não consigo entender este fim estranho da minha aldeia, deste meu mundo encantado onde fui tão, mas tão feliz.
Porque quando nasci, a aldeia já cá estava. Pequenina, modesta, mas viva e dinâmica. E, ao mesmo tempo que eu, também ela foi crescendo, evoluindo e modernizando-se. Era um pequeno mundo onde um bom punhado de gente vivia em paz e minimamente feliz. Uma comunidade heterogénea composta por funcionários do estado, agentes da autoridade, ferroviários, despachantes e muitos trabalhadores do campo. Apesar da especificidade de cada função, conviviam todos em pacífica harmonia. Aqui havia de tudo um pouco. Artes e ofícios, comércio e coletividades. De tal modo assim era que "nuestros hermanos" vinham diariamente nos comboios de ida e volta entre Valência de Alcântara e a Beirã ou vice-versa, para fazerem as suas compras e dinamizarem ainda mais quer o comércio local, quer também o intercâmbio cultural entre os dois povos irmãos.
Muitas famílias se formaram por estas bandas com nubentes dos dois lados da fronteira. A minha sogra era de S. Pedro de Alcântara, o meu sogro dos Barretos. A família do meu avô materno é, na sua maior parte, toda espanhola até aos dias de hoje. Uma das minhas cunhadas e irmã da minha mulher cresceu, casou e vive em Espanha onde já se naturalizou. E como nós, dezenas de famílias. Quase todos os Beiranenses falam e entendem o castelhano, assim como em Valência e nos "pueblos" das redondezas falam e entendem o português. Foi sempre um mundo muito nosso e pacífico apesar de todos os condicionalismos de cada época. Curiosamente até os contrabandistas e os guardas fiscais conviviam paredes meias, cada um tentando ludibriar o outro, porque um não existiria sem o outro.
Entretanto, no sossego que tomou conta dos meus dias, venho de quando em vez sentar-me aqui ao cimo da minha aldeia para encher a alma da paisagem que me é tão querida e da qual nunca me canso, com a percetível convicção de estar cada dia mais próximo aquele em que deixarei de poder vê-la. E fico assim, horas a fio a pensar, a recordar, a deixar-me invadir pela nostalgia que com ela traz de volta muito do que vivi neste sagrado chão, este mesmo chão que o "progresso" da integração europeia foi desertificando. Para sempre, não me resta qualquer dúvida, apesar da lufada de "pessoas de fora" que vêm para cá agora passar as suas férias ou fins de semana nas nóveis casas de acolhimento para turistas.
Até que um dia as pessoas se fartem, ou isso deixe de estar na moda.
José Coelho
Texto e foto