segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Faz-me o vento companhia

Sócha do Miradouro - Beirã

Um amigo que nunca vi, mas de quem gosto muito, pese embora seja às vezes mais agreste do que a conta. Há quem ache sinistro o seu uivo quando chega zangado, mas a mim nunca me meteu medo. Nos serões à lareira, ouvi-lo rugir no côncavo chapéu de telhas da chaminé da nossa cozinha, era para mim a glória bendita. Indiferente à fúria com que ele embatia nas tijoleiras em V lá em cima, o lume de lenha crepitava sossegadamente cá em baixo na pedra da lareira, oferecendo o seu calor e conforto a toda a família instalada em seu redor. Em vez de sentirmos medo, o estrondo da invernia fazia com que nos sentíssemos ali abrigados e em segurança. Hoje, a muitas décadas de distância, rodeado de conforto e de mordomias que à época não existiam, sinto infinitas saudades de coisas tão simples como aqueles serões de inverno em redor do lume onde a minha mãe preparava a ceia depois do seu dia de árduo trabalho no campo.

 

À medida que fui adquirindo novos conhecimentos fui em simultâneo, aprendendo a lidar com o meu invisível amigo, de modo a não me deixar vencer por ele. Coisas tão simples e básicas como acender o lume ao relento para me aquecer nos dias mais agrestes, húmidos e frios, sem ter que gastar a “caixa dos palitos” inteira. E acender o lume no pico do verão no meio do restolho das searas para cozinharmos o almoço sem deitar fogo à tapada inteira, também era uma aventura repleta de cuidados e truques. Apesar de os camponeses cozinharem sempre em lume de chão as suas refeições, fosse onde fosse, ou em que época do ano fosse, os cuidados eram tão eficientes que nunca havia os fogos assassinos de pessoas e do ambiente como há agora.

 

A vida revelou-me ainda segredos que o meu invisível amigo até hoje não descobriu, nomeadamente como consegue ele levar quase tudo à sua frente quando vem zangado, excepto as aparentemente frágeis sóchas? Ah pois! Destelha por completo sólidos telhados, leva coberturas inteiras de armazéns, barracas e barracões, mas uma sócha de giestas bem feita, raramente consegue “destelhar”. Deixa-as de pé exatamente como as encontra, seja qual for a sua força. A forma cónica daquelas coberturas não permite que ele lhes pegue ou que as derrube. Não há frinchas ou fraquezas por onde possa entrar ou pegar. Limita-se por isso a seguir o seu caminho depois de inutilmente se enrolar em redor do hirto cone vegetal tão sabiamente inventado pelos nossos ancestrais antepassados para enfrentar a sua impetuosidade e resistir-lhe.

 

Tive a sorte e o privilégio de os meus avós e tios maternos serem quase todos guardadores de rebanhos. E todos eles viviam parte do ano em sóchas e sôchos onde eu dormia quando os ia visitar. Já agora, porque muita gente não saberá qual a diferença entre ambos, explicarei que a sócha é uma construção circular fixa, com vários diâmetros de raio, com uma parede em pedra seca de mais ou menos metro e meio de altura e uma porta de madeira sobre a qual é disposta em cone uma armação de paus compridos direitos e  pouco grossos, afastados entre si vinte ou trinta centímetros, solidamente amarrados uns aos outros desde a base até ao bico da estrutura para serem depois cobertos por camadas sobrepostas de giestas verdes, as quais, à medida que vão secando se vão transformando numa compacta e impermeável cobertura. Quentes no inverno e frescas no verão, de um dos lados do círculo interior ficava normalmente a zona de estar e comer, ao centro e bem por baixo do topo do cone um quadrado no chão feito de lajes para o lume, enquanto do outro lado do círculo interior ficava a zona de dormir quase sempre sobre tarimbas forradas a restolho macio, por baixo das quais se guardavam as roupas e alguns víveres.

 

Capaz de afrontar também qualquer temporal, o sôcho era o primo-irmão da sócha embora muito mais pequeno e desmontável para se poder mudar de sítio sempre que isso se tornava necessário. Todo feito em giesta ou palha de centeio dispostos também em camadas sobre uma armação côncava de varas verdes de vime (ou outra madeira flexível) previamente entrelaçadas e fixadas, era composto por quatro peças amovíveis. O lado côncavo direito, o lado côncavo esquerdo, o centro posterior em semi-arco para unir os dois lados côncavos direito e esquerdo, e, finalmente, o centro frontal amovível que fechava o espaço e simultaneamente fazia de porta para utilização diária. Era montado num cabeço das cercanias do bardo onde o gado pernoitava durante grande parte do ano. Cada vez que o rebanho mudava de um para o outro extremo da herdade, o sôcho era desmontado para voltar a ser montado no novo local de pernoita do pastor e do rebanho.

 

Mas voltemos ao meu fiel e invisível amigo que já vai longa a prosa! Em dias menos bons da minha vida e foram muitos, o sussurro das folhas nos ramos das árvores que ele suavemente balança quando vem calmo, ajudou-me tantas vezes a sossegar inquietações. E há lá coisa mais repousante do que deitar-me sobre a erva dos campos a observar as brancas nuvens de algodão no seu deslizar pelo céu azul, guiadas por ele? É, seguramente, o meu mais antigo e fiel companheiro. Sempre nos respeitámos um ao outro. Se me parece que vem muito zangado, não o afronto. Viro-lhe as costas, abrigo-me e deixo-o passar. Se pelo contrário vem manso em forma de brisa, gosto de o sentir no rosto e de ouvir aquele suave e melodioso murmúrio que nele parece transportar o timbre da voz de pessoas queridas que há muito deixei de ouvir.

 

José Coelho