Sou, sempre fui, profundamente
arreigado aos afetos. Afeiçoado à família, aos amigos, vizinhos e conterrâneos,
sejam eles de freguesia, de concelho, de distrito, de província ou de nação.
Afeiçoado à minha aldeia como se ela fosse o único lugar no mundo, afeiçoado
também aos animais, às aves, ao vento, à chuva e ao sol, à infinita natureza e
a todo o seu misterioso esplendor. Afeiçoado ao mundo que me rodeia com muito
raras exceções. O berço humilde em que nasci e a família honrada à qual tive a
sorte de pertencer moldaram-me assim, razão pela qual dou graças quase todas as
noites antes de adormecer.
Sim, escrevi quase todas as noites e não todas as noites. Porque há algumas em que não me sinto motivado a agradecer por razão de qualquer coisa que me terá deixado amuado. Por exemplo se estou triste ou desiludido, cansado ou doente, irritado ou indignado. E quando isso acontece costumo amuar como uma criança – que acho nunca deixarei de ser – porque sim, e porque, ao não entender os porquês de algumas coisas, não sou obrigado a concordar com elas. Tenham as mesmas sucedido por suposto desígnio do Criador ou por outro qualquer.
Desde que me conheço tenho seguido e procurado cumprir os preceitos e comportamentos que me foram ensinados. Incansavelmente. Por isso me sinto também no direito de não aceitar ou contestar aquilo que não consigo perceber. Há muito que me esforço por compreender as respostas e sinais de tudo o que me rodeia. E também a ausência deles. Poderia descrever um cento dessas manifestações na primeira pessoa, mas seguramente muitos de vós não as iríeis entender como eu as entendi e provavelmente iríeis entender outra coisa qualquer ditada pelo vosso raciocínio. O que para mim, à luz das minhas crenças, pode ter sido um sinal, para vocês pode ser visto apenas como mera coincidência ou casualidade.
E há que respeitar todas as opiniões.
Sei, tenho plena consciência, de ser a mais imperfeita das criaturas. Mas sei também com toda a certeza que dentro das minhas humanas limitações e inúmeras imperfeições sempre tentei – e acho que conseguido – pautar cada dia da minha vida pelo caminho do bem, da honestidade, da lisura de carácter, do não fazer a ninguém aquilo que não quero que me façam a mim, conforme a formação que me foi ensinada desde tenra idade.
Daí que me desiluda e fique revoltado algumas vezes quando vejo ou sou alvo de injustiças de toda a ordem, faltas de honestidade ou de carácter, de sujos e inexplicáveis esquemas que têm como objetivo único prejudicar, denegrir, enxovalhar ou tirar proveitos indevidos. E é nessas ocasiões que não percebo e questiono zangado:
- Porquê?
- Se eu não o faço essas porcarias a ninguém, porque m'as fazem a mim?
É verdade que frequentemente todos somos postos à prova e temos que ter a capacidade de aceitar seja o que for, mesmo aquilo que nos fere e magoa. Porém, uma coisa é termos que irremediavelmente aceitar aquilo que vem, outra coisa muito diferente é sermos capazes de o entender.
E as perguntas surgem do nosso íntimo aos milhões:
- Porque há tantas coisas ruins neste mundo que se diz que Deus criou? Doenças incuráveis, guerras, atentados, refugiados, fome, sofrimento humano indescritível onde os mais atingidos são sempre os mais frágeis tais como, entre muitos outros, as mulheres, os velhos e as inocentes crianças?
- Porque há milhões de ricos a nadarem na abundância em contraste com outros tantos milhões de infelizes que nada têm, nem sequer o que comer?
- Porque existe tanta corrupção, cobardia, oportunismo, deslealdade e ganância humana?
- Porque...
- Porque... (ad infinitum)
Sofro com o declínio irreversível da minha terra porque nunca imaginei vê-la morrer primeiro que eu, sofro com este ensurdecedor e sepulcral silêncio que se foi instalando por quase todas as ruas, por cada casa vazia, mercê das políticas seguidas – e de progresso – de todos os governos das últimas décadas. Não posso fazer pela Beirã muito mais do que já fiz desde o dia em que, para começar, decidi comprar a casa dos meus pais para a ela regressar e definitivamente viver.
E não só.
Mas isso também são outros quinhentos.
Infelizmente as pessoas têm a memória curta.
Percebo hoje que tomei a decisão mais errada de toda a minha vida. Muitos Beiranenses, tal como eu, tiveram de procurar outros destinos em busca do sustento para si e para os seus. Mas naturalmente por lá foram também ficando e não mais voltaram. Cá deixaram os seus mais idosos e à medida que eles se foram finando as suas casas foram ficando desabitadas. Nem sequer a interesseira "moda" de agora se transformarem algumas delas em Alojamentos Locais, por outras palavras "mini-hotéis" turísticos que a Covid 19 impulsionou, irá trazer o desenvolvimento que definitivamente se perdeu. Tal como todas as outras modas, também esta vai ter prazo curto.
É só uma questão de tempo.
As pragas ruins são normalmente irreversíveis. E não há cura científica para esta variante de cancro que se chama "desertificação" e se propaga por toda a Freguesia da Beirã, prossegue por todo o Concelho de Marvão, continua por todo o Distrito de Portalegre, segue depois pelo Alto e Baixo Alentejo e contamina todo o interior de Portugal de Bragança a Vila Real de Santo António perante a mortífera indiferença dos sucessivos governos que só se preocupam com o bem-estar de quem habita as grandes metrópoles eleitorais.
Porque é lá que se ganham votos.
Cancro. Disse bem. E maligno. Incurável como aquele que levou o querido Amigo e Pároco Luís Ribeiro, uma perda tão inesperada para mim e para todos os seus paroquianos que passados alguns anos ainda não a consegui digerir nem aceitar. Com ele se foi também a Paróquia de Nossa Senhora do Carmo que desde então tem vindo a extinguir-se lentamente. Por isso e por muito mais, tudo aquilo que planeei noutro tempo para a minha reforma e velhice, a qual imaginava muito tranquila e feliz nesta aldeia linda, ficou sem efeito. Vivo hoje um dia de cada vez sem acreditar já em nada, sem esperar também muito mais do que aquilo que me rodeia e entristece. Até mesmo a vigorosa fé que sempre foi a minha principal fonte de força, já perdi.
E aos poucos vou desistindo, deixando cair os braços.
Não há volta a dar.
José Coelho