Foto by José Coelho
Já sabia que se aproximava a "tormenta" como lhe chamava a minha avó Amélia. Quem nasceu e viveu sempre no campo sabe interpretar os inconfundíveis sinais da natureza. Aprendi com o meu avô Zé Lourenço exímio mestre, mas também com o meu pai, outro mestre não menos exímio que o seu bondoso sogro. Qual dos dois amei mais e de qual dos dois tenho mais saudades, nem eu sei. Espero bem voltar a encontrá-los um dia e que seja para nunca mais nos separarmos.
A manhã de hoje até começou cálida e serena. Mas com o aproximar do meio dia grossos limbos negros de nuvens começaram a surgir na linha do horizonte vindos do lado da Lagem Alta. E em surdina, ainda longínquo, o resmungar de trovões. Sempre tive um profundo respeito (mais medo que respeito) por essa manifestação tonitroante dos fenómenos elétricos que depois de se degladiarem nos céus se precipitam sobre a terra na forma de potentes e destruidores raios.
O sinal mais evidente da sua aproximação é o silêncio que se instala repentinamente ao nosso redor. Só se ouve o murmúrio do vento nos ramos das árvores porque até os melros e a outra passarada se calam subitamente, buscando cada um, cautelosos, o abrigo das copas mais densas de folhas. É espantoso como todos os seres vivos pressentem o perigo e tentam proteger-se. Não é para menos, porque além dos relâmpagos e trovões, estas tempestades trazem no seu ventre muitas vezes o pedrisco que tudo "esnoca" e derruba.
Coitada da mãe verdelhão que fez ninho na nossa latada e tenho tentado ajudar como posso. Primeiro foi a pedriscada que caiu na outra semana e quase "despiu" de parras os renovos que cobriam o ninho. Depois, a semana passada, um pé de vento que tombou a parreira e quase despejou os ovos para o canteiro. Só não se concretizou o colapso porque eu vi na hora e corri em busca de ráfia para a endireitar e prender, o que safou o ninho.
Por isso hoje, mal começou a dita-cuja, assentei arraial na varanda qual bombeiro pronto a acudir àqueles fragilizados amigos em caso de necessidade. Aproveitei para ir batendo umas fotos entre as quais escolhi a que ilustra este escrito. Do abrigado alpendre avista-se toda a região norte e nordeste da freguesia, aquela onde nasceu a minha mãe e todos os seus sete irmãos e irmãs, meus tios. E a Cavalinha, onde era (e ainda é) a casa dos meus avós.
É um privilégio sem tamanho avistar tudo o que foi o chão dos meus entes queridos, os lugares onde cresci e fui muito amado por todos eles. Sem querer veio-me à lembrança a trovoada que me fez perder o meu primeiro emprego de pastor do rebanho de ovelhas do tio José Maroco, que Deus tem. Era Maio, duas da tarde, estava sozinho com o rebanho no Monte Velho quando se desencadeou uma pavorosa trovoada bem mais assustadora que a de hoje.
Tentei dominar o medo e afastei-me dos altos sobreiros como me aconselhou sempre o meu avô. Começou a chover a cântaros e as ovelhas abrigaram-se em redor de um pedregulho côncavo. E eu, à falta de melhor companhia, fui para junto delas. Subitamente o estampido ensurdecedor de uma faísca a cair num velho sobreiro do caminho a poucos metros de mim seguido de um portentoso trovão. Foi demais para a minha ousadia. Ainda o sobreiro fumegava e já eu tocava o rebanho caminho abaixo em direção à Beirã.
Cheguei ao bardo e fechei as ovelhas lá dentro, antes das três da tarde. A seguir corri apavorado para casa, de onde não mais saí esse dia. Os meus pais não deram por nada porque estavam a trabalhar também no campo e só regressaram à noite. A trovoada passou e o sol da tarde voltou. E o tio José Maroco foi dar com as ovelhas fechadas no bardo a meio da tarde. No dia seguinte quando manhã cedo me apresentei no posto de trabalho, lá estava ele à minha espera:
- Então Zé Manel, o que se passou ontem para "ensarrares" as ovelhas quase ao meio dia? Perguntou-me.
- Tive medo da trovoada e fugi. Respondi-lhe com verdade.
- Ai sim? Então e fugiste para onde? Voltou a perguntar o tio José Maroco com cara de poucos amigos.
- Fugi para a minha casa!
- Ai fugiste? Então é para a tua casa que vais voltar agora mesmo porque já não te quero para pastor das minhas ovelhas.
- E diz ao teu pai que eu depois falo com ele.
A trovoada de hoje também já passou e sem grande alarido. Mas serviu ao menos para trazer-me de volta grandes lembranças. Muito maiores que o medo...
PS
Esqueci-me de vos dizer: Foi em Maio de 1963 e tinha só 11 anos!