quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Coisas q'escrevi...

Imagem do encontro-convívio de 2016


Inferno verde (conclusão)


Vou concluir as memórias desse tempo da minha vida que mais desejaria esquecer para sempre mas que teimam em se fazer presentes todos estes anos depois mesmo sem nunca mais ter visto desabar do céu os tais 180 litros de chuva por cada metro quadrado de chão.

Se pudesse gostava de voltar ao Maiombe para me reconciliar com ele. Precisava ver como é aquilo agora em tempo de paz apesar de a FLEC não conseguir levar avante a sua luta pela autonomia do enclave. Mas ainda assim parece viverem em paz e com normalidade as populações daquelas aldeias de Miconje, Sanga Planície, Caio Guembo, Luáli, Belize, Buco Zau, Ganda Cango e tantas outras que nós percorremos e onde deixámos algumas amizades apesar de tudo.

É pouco provável que consiga lá regressar porquanto não tenho rendimentos suficientes para me permitir tal luxo que sei ter um custo acima de uma dezena de milhares de euros se com tudo incluído. Mas já consegui, através da tecnologia universal que é a internet, viajar até lá e ver cenários bem mais acolhedores do que aqueles que existiam quando por lá andei. Tenho quase a certeza que nenhum Cavaleiro do Maiombe daqueles que como eu tiveram a sorte de regressar a casa esquecerá algum dia o que lá passou.

Cumpridos os 730 dias de degredo, fomos finalmente rendidos por um novo contingente de camaradas na sua maioria madeirenses que nós recebemos com muita dignidade e camaradagem, incapazes de judiar com eles como tinham judiado connosco dois anos antes, por mais “cacimbados” e felizes que nos sentíssemos também.

Estacionámos duas semanas na cidade de Cabinda já afastados da zona de guerra onde aguardámos a evacuação para Luanda, desta vez por via aérea mas não sem termos primeiro que acudir aos camaradas maçaricos que nos tinham ido render, os quais, logo na primeira semana de estreia no Maiombe sofreram ataques do MPLA de tal ordem que “entupiram” o hospital da cidade com feridos graves. Por esse motivo aquela unidade hospitalar difundiu na Rádio Cabinda um apelo urgente a todos os dadores disponíveis que pudessem ir doar sangue para acudir àqueles recém-chegados combatentes.

Assim que foi difundido o apelo todos os generosos Cavaleiros do Maiombe correram céleres e em massa para o hospital a doarem mais um pouco da sua exausta vida àqueles infelizes camaradas que dela estavam a necessitar numa hora de aflição que todos conhecíamos tão bem.

Poucos dias depois o nosso batalhão foi definitivamente evacuado para a Fazenda Tentativa no Caxito, perto de Luanda, onde aguardámos de Março até Junho o regresso a casa, mas, enquanto aguardávamos o tão ansiado avião continuámos a fazer escoltas às colunas civis na estrada que ligava Luanda-Ambriz-Ambrizete onde não havia já aquele perigo eminente de emboscadas mas, ainda assim, nenhuma viatura civil se atrevia a meter à estrada sem escolta militar! Estávamos na primavera de 74. No Puto, diminuitivo de Portugal na gíria militar, decorria entretanto já a Revolução dos cravos e não havia meio de regressarmos a casa. Assim se cumpriram 27 longos meses de comissão. Mais três que os habituais 24 e inicialmente previstos.

Mas será que foi tudo sempre assim tão mau como nas histórias da desgraçadinha?

Claro que não! Também houve muitos e bons momentos. Principalmente na confraternização e na amizade profunda que se desenvolveu entre camaradas de todas as patentes e de todas as partes do nosso país que ali se misturavam. Na comemoração do Dia da Cavalaria que o batalhão celebrou sempre em cada ano, tivémos, num deles, uma surpresa muito especial. A nossa querida Amália Rodrigues foi ao Belize de avioneta com o seu séquito de guitarristas dos quais só me recordo que um deles era o Jorge Fernando e cantou para nós, deu um beijinho a cada um e levou-nos um carinho muito seu que todos agradecemos e tanto estávamos a precisar.

Todos nós tínhamos também uma namorada fiote na sanzala para nos cuidar do arranjo da roupa e de outras coisas pessoais a troco de alguns escudos angolanos. Além disso eu tive ainda a sorte de lá encontrar um conterrâneo da minha freguesia, o António Maroco, da Fadagosa-Beirã, que era agente da Pide em Cabinda e que, informado pela sua família que eu estava no Belize, duas vezes me foi lá visitar. Devo esclarecer que a visita daquele conterrâneo teve o valor da visita de um irmão. Chorei como um desalmado quando o vi pela primeira vez e sem saber porquê. Hoje ele vive no Brasil para onde se retirou e constituiu família quando da queda do regime de Caetano. Onde quer que esteja que Deus o proteja e lhe pague o bem que as suas visitas me fizeram naquele fim de mundo.

Dentro do quartel a vida também era suportável o quanto baste. Cada um entretido nos seus afazeres, cada um a desempenhar as tarefas à sua responsabilidade. Mas também havia os bons momentos de pausa e descontração. A vivência normal de uma grande família, unida por um destino comum. Além disso, o comando não permitia bandalheiras. Por maior que fosse o isolamento, o aquartelamento estava criteriosamente organizado limpo e arrumado diariamente. E lá dentro cada militar tinha que andar barbeado, limpo e convenientemente fardado. Dizia o grande homem que tivemos por comandante, o general Mário Delgado, na altura ainda só coronel: - Estamos no meio da selva, mas não somos selvagens.

Quando cada um regressava da mata molhado, cheio de lama e cansado já sabia que no dia seguinte tinha que providenciar para que roupa e calçado voltassem a ter um aspecto decente. E não, aquilo não era por militarismo absurdo. Nada disso. Era uma inteligente estratégia do comando para que cada militar não se abandalhasse ou perdesse a compostura perante tantas e permanentes dificuldades. Era a forma de cada um não perder a noção da sua condição de homem e da dignidade a que tinha direito, mesmo no meio de tanta adversidade.

Devido às nossas funções, eu e os meus camaradas de transmissões tínhamos contacto diário com toda a cadeia de comando porque era através de nós que tudo lhes chegava via rádio, quer das outras unidades, quer das chefias superiores de Cabinda, de Luanda e mesmo de Lisboa. Por isso, mais que ninguém nos apercebemos da angústia dos oficiais comandantes na hora dos ataques, na hora de dar instruções debaixo de fogo, na hora de transmitir baixas, mortos ou feridos, na hora de pedir reforços e dar coordenadas exactas da posição das forças que estavam no terreno a ser atacadas. Vi chorar, mais do que uma vez, alguns dos oficiais. E com toda a certeza não choravam de medo mas sim de frustração e angústia.

Quando finalmente chegou a hora da despedida e cada um se preparava para regressar definitivamente ao seu seio familiar, houve abraços de profundo respeito e de sentida amizade entre todos nós, praças, sargentos e oficiais, sem qualquer assomo de militarismo. Apenas e tão só como amigos de longa data, quase todos comovidos também até às lágrimas.

Sem grandes discursos.

Um quase ininteligível “boa sorte camarada e bom regresso a casa” porque aquele sacana de nó que nos apertava a garganta, não permitia muito mais…


José Coelho in Histórias do Cota