Imagem do encontro-convívio de 2016
Inferno verde (conclusão)
Vou concluir as memórias desse tempo da minha vida que mais desejaria esquecer para sempre mas que teimam em se fazer presentes todos estes anos depois mesmo sem nunca mais ter visto desabar do céu os tais 180 litros de chuva por cada metro quadrado de chão.
Se
pudesse gostava de voltar ao Maiombe para me reconciliar com ele. Precisava
ver como é aquilo agora em tempo de paz apesar de a FLEC não conseguir levar
avante a sua luta pela autonomia do enclave. Mas ainda assim parece viverem em paz e com
normalidade as populações daquelas aldeias de Miconje, Sanga Planície, Caio
Guembo, Luáli, Belize, Buco Zau, Ganda Cango e tantas outras que nós
percorremos e onde deixámos algumas amizades apesar de tudo.
É
pouco provável que consiga lá regressar porquanto não tenho rendimentos
suficientes para me permitir tal luxo que sei ter um custo acima de uma dezena
de milhares de euros se com tudo incluído. Mas já consegui, através da tecnologia
universal que é a internet, viajar até lá e ver cenários bem mais
acolhedores do que aqueles que existiam quando por lá andei. Tenho quase a certeza que nenhum
Cavaleiro do Maiombe daqueles que como eu tiveram a sorte de regressar a casa
esquecerá algum dia o que lá passou.
Cumpridos
os 730 dias de degredo, fomos finalmente rendidos por um novo contingente de
camaradas na sua maioria madeirenses que nós recebemos com muita dignidade e
camaradagem, incapazes de judiar com eles como tinham judiado connosco dois anos
antes, por mais “cacimbados” e felizes que nos sentíssemos também.
Estacionámos
duas semanas na cidade de Cabinda já afastados da zona de guerra onde aguardámos
a evacuação para Luanda, desta vez por via aérea mas não sem termos primeiro
que acudir aos camaradas maçaricos que nos tinham ido render, os quais, logo na
primeira semana de estreia no Maiombe sofreram ataques do MPLA de tal ordem que
“entupiram” o hospital da cidade com feridos graves. Por esse motivo aquela
unidade hospitalar difundiu na Rádio Cabinda um apelo urgente a todos os
dadores disponíveis que pudessem ir doar sangue para acudir àqueles
recém-chegados combatentes.
Assim
que foi difundido o apelo todos os generosos Cavaleiros do Maiombe correram céleres e em
massa para o hospital a doarem mais um pouco da sua exausta vida àqueles
infelizes camaradas que dela estavam a necessitar numa hora de aflição que todos conhecíamos tão bem.
Poucos
dias depois o nosso batalhão foi definitivamente evacuado para a Fazenda
Tentativa no Caxito, perto de Luanda, onde aguardámos de Março até Junho o
regresso a casa, mas, enquanto aguardávamos o tão ansiado avião continuámos a fazer escoltas às colunas civis na estrada que ligava Luanda-Ambriz-Ambrizete onde não havia já aquele
perigo eminente de emboscadas mas, ainda assim, nenhuma viatura civil se
atrevia a meter à estrada sem escolta militar! Estávamos na primavera de 74. No Puto,
diminuitivo de Portugal na gíria militar, decorria entretanto já a Revolução
dos cravos e não havia meio de regressarmos a casa. Assim se cumpriram 27 longos meses de comissão. Mais três que os habituais 24 e inicialmente previstos.
Mas
será que foi tudo sempre assim tão mau como nas histórias da desgraçadinha?
Claro
que não! Também houve muitos e bons momentos. Principalmente na
confraternização e na amizade profunda que se desenvolveu entre camaradas
de todas as patentes e de todas as partes do nosso país que ali se misturavam. Na comemoração do Dia da Cavalaria que o batalhão celebrou sempre em cada ano, tivémos, num deles, uma surpresa muito especial. A nossa querida Amália Rodrigues foi ao Belize de avioneta com o seu séquito
de guitarristas dos quais só me recordo que um deles era o Jorge Fernando e cantou para nós, deu um beijinho a cada um e levou-nos um carinho muito seu que todos
agradecemos e tanto estávamos a precisar.
Todos nós tínhamos também uma namorada fiote na sanzala para nos cuidar do arranjo da roupa e de
outras coisas pessoais a troco de alguns escudos angolanos. Além disso eu tive ainda a sorte de lá encontrar um conterrâneo da minha freguesia, o António
Maroco, da Fadagosa-Beirã, que era agente da Pide em Cabinda e que, informado pela sua
família que eu estava no Belize, duas vezes me foi lá visitar. Devo esclarecer que
a visita daquele conterrâneo teve o valor da visita de um
irmão. Chorei como um desalmado quando o vi pela primeira vez e sem saber porquê. Hoje ele vive
no Brasil para onde se retirou e constituiu família quando da queda do regime
de Caetano. Onde quer que esteja que Deus o proteja e lhe pague o bem que as
suas visitas me fizeram naquele fim de mundo.
Dentro
do quartel a vida também era suportável o quanto baste. Cada um entretido nos seus
afazeres, cada um a desempenhar as tarefas à sua responsabilidade. Mas também havia os bons momentos de pausa e descontração. A vivência normal de uma grande família, unida por um destino comum. Além disso, o comando não permitia bandalheiras. Por
maior que fosse o isolamento, o aquartelamento estava criteriosamente organizado limpo e
arrumado diariamente. E lá dentro cada militar tinha que andar
barbeado, limpo e convenientemente fardado. Dizia o grande homem que tivemos por
comandante, o general Mário Delgado, na altura ainda só coronel: -
Estamos no meio da selva, mas não somos selvagens.
Quando
cada um regressava da mata molhado, cheio de lama e cansado já sabia que no dia
seguinte tinha que providenciar para que roupa e calçado voltassem a ter um
aspecto decente. E não, aquilo não era por militarismo absurdo. Nada disso. Era uma
inteligente estratégia do comando para que cada militar não se abandalhasse ou
perdesse a compostura perante tantas e permanentes dificuldades. Era a forma de
cada um não perder a noção da sua condição de homem e da dignidade a que tinha
direito, mesmo no meio de tanta adversidade.
Devido
às nossas funções, eu e os meus camaradas de transmissões tínhamos contacto
diário com toda a cadeia de comando porque era através de nós que tudo lhes chegava via rádio, quer das outras unidades, quer das chefias superiores de Cabinda, de Luanda e mesmo de Lisboa. Por isso, mais que ninguém nos apercebemos da angústia dos
oficiais comandantes na hora dos ataques, na hora de dar instruções debaixo de
fogo, na hora de transmitir baixas, mortos ou feridos, na hora de pedir
reforços e dar coordenadas exactas da posição das forças que estavam no terreno a ser
atacadas. Vi chorar, mais do que uma vez, alguns dos oficiais. E com toda a certeza não choravam de medo mas sim de frustração e angústia.
Quando
finalmente chegou a hora da despedida e cada um se preparava para regressar definitivamente
ao seu seio familiar, houve abraços de profundo respeito e de sentida amizade
entre todos nós, praças, sargentos e oficiais, sem qualquer assomo de
militarismo. Apenas e tão só como amigos de longa data, quase todos comovidos também até às lágrimas.
Sem
grandes discursos.
Um
quase ininteligível “boa sorte camarada e bom regresso a casa” porque aquele sacana de nó que nos apertava a garganta, não permitia muito mais…
José Coelho in Histórias do Cota