segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Coisas q'escrevi...

As fotos que se enviavam à família eram estas. Porque sim.


Regresso a casa - Mãe


O Boeing 747 descolou do aeroporto de Luanda numa gloriosa manhã de inícios de junho de 1974. Para trás, o estropiado Batalhão de Cavalaria 3871 – Cavaleiros do Maiombe - com quase uma Companhia a menos, deixou finalmente o continente africano. Apesar da barbárie da guerra reafirmo existir por lá muito boa gente, diferente apenas na cor e nos costumes, igual em tudo o resto. Apesar de os ideais de cada uma das partes do conflito serem opostos, a esmagadora maioria da população nada tinha a ver com ele. Pelo contrário, milhares de nativos residentes nas zonas onde se desenrolavam as frentes de guerra mais não eram também muitas vezes do que inocentes vítimas encurraladas entre nós e os guerrilheiros, dos quais nós e eles desconfiávamos, sendo por isso injusta e frequentemente tratados como espiões e inimigos, por ambas as partes.

É assim em todas as guerras; o cidadão anónimo é quem acaba por arcar com as piores consequências. O povo africano queria e tinha o direito de ser livre, independente para decidir o seu futuro e rumo. Nós éramos o ocupante que em nome de um colonialismo já então completamente ultrapassado e desajustado da realidade, visava apenas os seus interesses económicos geridos a partir de Lisboa a oito mil quilómetros de distância, por uma política ditatorial cega, incapaz de vislumbrar os sinais do tempo e do resto do mundo, que não só desaprovava a sua política colonial como, por isso mesmo, apoiava e armava os movimentos independentistas.

É impossível descrever tudo o que senti quando o avião começou a erguer-se no ar. Pela expressão dos seus rostos, julgo que na mente e no coração de todos os meus camaradas deveria passar-se o mesmo. Mas eu tentarei descrever apenas e só o meu estado de espírito. Fora muito bom começar aquele dia a encontrar no aeroporto um conterrâneo marinheiro que estava de regresso a Luanda no mesmo avião que me traria a mim para casa, depois de ter terminado umas férias na metrópole. O Afonso. O nó que se me tinha cravado na garganta, não desatava. Gostei de vê-lo por ser da terra, gostei ainda mais por ele me ter informado que viajara da Beirã para Lisboa no comboio TER com a minha mãe que lá ficara à minha espera. Foi um olá camarada seguido imediatamente de um até depois e boa sorte. Não deu para mais, mas foi sem dúvida muito reconfortante.

Durou oito longas horas o voo entre Luanda e Lisboa. Por mais estranho que pareça, não se vislumbrava em rosto nenhum, qualquer expressão de exuberante felicidade! Quanto muito, talvez expressões de alívio, talvez expressões de incredulidade por ver chegado este dia, talvez ainda também, no mais íntimo dos nossos corações, a expressão de um sincero obrigado a Deus, a Nossa Senhora, a todos os Santos do Céu ou à Providência Divina do credo que cada um professasse. Contudo, apesar dessa enorme gratidão, era impossível não pensar naqueles que haviam ficado pelo caminho. Todos nós tínhamos perdido algum amigo. Todos. E aquilo doía cá dentro de uma forma muito viva e intensa. Era tudo muito recente ainda. Ali, supostamente já em segurança, uma pergunta talvez sacrílega, assolava-me o espírito:

- Porquê?

Porque não foi possível o Céu proteger-nos a todos e a todos trazer de volta aos braços das suas mães, pais, irmãos, esposas, namoradas, famílias? Ainda hoje não entendo e me questiono por isso. Ainda hoje dói a perda desses camaradas, amigos, irmãos, porque, sim…  Naquelas condições extremas os homens são MESMO irmãos. Fossem coronéis, majores, capitães, tenentes, sargentos, cabos ou soldados, éramos uma enorme família, unidos por um destino comum e por uma amizade sincera que em nada impedia o respeito que a cada um era devido. Sempre que morria um camarada chorávamos por igual, sem disfarce nem pudor, independentemente do posto e da hierarquia. Em nenhum outro lugar do mundo conheci tal solidariedade humana. Nunca mais vivi no seio de uma família tão numerosa e unida. Essa foi sem dúvida a maior bênção que obtive da guerra, uma bênção que se mantém intacta até hoje, porque, tanto tempo depois, os laços de amizade fraterna pelos que voltaram, e de sentida memória pelos que tombaram, perduram, perdurarão decerto até ao fim da vida de cada um dos Cavaleiros do Maiombe.

Eram cerca das cinco da tarde quando começámos a avistar Portugal lá do alto, muito alto ainda. A Costa Vicentina primeiro, o Litoral Alentejano a seguir, e, por fim, estávamos a sobrevoar Lisboa. Aterrámos perto das cinco e meia. Formámos ordeiramente como nos tinha sido ordenado para as últimas instruções e recomendações. No aeroporto não havia familiares à nossa espera porque tinham sido encaminhados para o antigo Regimento de Artilharia Nº 1 em Lisboa  - RAL 1 - onde íamos entregar o resto do fardamento e desmobilizar. Tudo isso demorou apenas mais uma hora e meia. Por fim, manifestamente comovidos, despedimo-nos uns dos outros e corremos para o exterior à procura cada um dos seus entes queridos.

E…

Lá estava ela! A minha saudosa e querida Mãe lavada em lágrimas, ansiosa, muito mais magra do que eu alguma vez a imaginara e, no seu amado rosto, o mais evidente eram as profundas olheiras, o sinal mais que revelador da intranquilidade das suas noites e dos seus dias durante todo o tempo que durou a minha ausência. Caímos nos braços um do outro soluçando, incapazes de conter o caudal de ternura e fome de carinho mútuos, porque sempre fomos e somos hoje ainda, eu e ela, particularmente amigos, cúmplices um do outro, além de que, por certo, também ambos pensámos intimamente muitas vezes se nos voltaríamos a ver.

Foi o rebentar de uma torrente caudalosa e desenfreada de emoções contidas durante os últimos longos e sofridos 810 dias que naquele momento se libertaram num turbilhão impossível de conter. E que palavra alguma poderá, por mais que se queira, conseguir descrever. Também eu regressava mudado e diferente. Muito diferente mesmo. Não só com uma pele escura queimada pelo quente clima como também bastante magro e escanzelado como nunca fora, restando apenas 60 quilos dos 75 que costumava ter. Mas sobretudo e também, com uma mentalidade amadurecida à força pela adversidade, completamente estranha àquela provinciana ingenuidade que levara ao partir em Março de 1972.

Devo acrescentar antes de terminar por hoje que nunca, mas nunca mesmo, relatei a alguém as atrocidades que por lá nos aconteciam. Nem eu nem nenhum camarada o fazia. Era ponto de honra de todos e de cada um não inquietar ainda mais quem estava longe e vivia já intranquilo pela nossa ausência, além de que em nada nos poderia ajudar. Na correspondência com a família e amizades apenas se referia que estava tudo bem, que aquilo era um mar de rosas. Até as fotos que enviávamos eram cuidadosamente preparadas, quase sempre em traje civil, como se estivéssemos numa estância turística. E quando fardados, as fotos mostravam com toda a certeza um feliz sorriso de orelha a orelha. Truques simples que todos quantos se preocupam com os seus entes queridos saberão decerto compreender…


José Coelho in Histórias do Cota