As fotos que se enviavam à família eram estas. Porque sim.
Regresso a casa - Mãe
O
Boeing 747 descolou do aeroporto de Luanda numa gloriosa manhã de inícios de junho
de 1974. Para trás, o estropiado Batalhão de Cavalaria 3871 – Cavaleiros do
Maiombe - com quase uma Companhia a menos, deixou finalmente o continente africano.
Apesar da barbárie da guerra reafirmo existir por lá muito boa gente, diferente
apenas na cor e nos costumes, igual em tudo o resto. Apesar de os ideais de
cada uma das partes do conflito serem opostos, a esmagadora maioria da
população nada tinha a ver com ele. Pelo contrário, milhares de nativos residentes
nas zonas onde se desenrolavam as frentes de guerra mais não eram também muitas
vezes do que inocentes vítimas encurraladas entre nós e os guerrilheiros, dos
quais nós e eles desconfiávamos, sendo por isso injusta e frequentemente
tratados como espiões e inimigos, por ambas as partes.
É
assim em todas as guerras; o cidadão anónimo é quem acaba por arcar com as piores
consequências. O povo africano queria e tinha o direito de ser livre, independente
para decidir o seu futuro e rumo. Nós éramos o ocupante que em nome de um
colonialismo já então completamente ultrapassado e desajustado da realidade, visava
apenas os seus interesses económicos geridos a partir de Lisboa a oito mil
quilómetros de distância, por uma política ditatorial cega, incapaz de vislumbrar
os sinais do tempo e do resto do mundo, que não só desaprovava a sua política
colonial como, por isso mesmo, apoiava e armava os movimentos independentistas.
É
impossível descrever tudo o que senti quando o avião começou a erguer-se no ar.
Pela expressão dos seus rostos, julgo que na mente e no coração de todos os
meus camaradas deveria passar-se o mesmo. Mas eu tentarei descrever apenas e só
o meu estado de espírito. Fora muito bom começar aquele dia a encontrar no
aeroporto um conterrâneo marinheiro que estava de regresso a Luanda no mesmo
avião que me traria a mim para casa, depois de ter terminado umas férias na
metrópole. O Afonso. O nó que se me tinha cravado na garganta, não desatava.
Gostei de vê-lo por ser da terra, gostei ainda mais por ele me ter informado
que viajara da Beirã para Lisboa no comboio TER com a minha mãe que lá ficara à
minha espera. Foi um olá camarada seguido imediatamente de um até depois e boa
sorte. Não deu para mais, mas foi sem dúvida muito reconfortante.
Durou
oito longas horas o voo entre Luanda e Lisboa. Por mais estranho que pareça,
não se vislumbrava em rosto nenhum, qualquer expressão de exuberante felicidade!
Quanto muito, talvez expressões de alívio, talvez expressões de incredulidade
por ver chegado este dia, talvez ainda também, no mais íntimo dos nossos
corações, a expressão de um sincero obrigado a Deus, a Nossa Senhora, a todos
os Santos do Céu ou à Providência Divina do credo que cada um professasse. Contudo,
apesar dessa enorme gratidão, era impossível não pensar naqueles que haviam
ficado pelo caminho. Todos nós tínhamos perdido algum amigo. Todos. E aquilo
doía cá dentro de uma forma muito viva e intensa. Era tudo muito recente ainda.
Ali, supostamente já em segurança, uma pergunta talvez sacrílega, assolava-me o
espírito:
-
Porquê?
Porque
não foi possível o Céu proteger-nos a todos e a todos trazer de volta aos
braços das suas mães, pais, irmãos, esposas, namoradas, famílias? Ainda hoje
não entendo e me questiono por isso. Ainda hoje dói a perda desses camaradas,
amigos, irmãos, porque, sim… Naquelas
condições extremas os homens são MESMO irmãos. Fossem coronéis, majores, capitães,
tenentes, sargentos, cabos ou soldados, éramos uma enorme família, unidos por
um destino comum e por uma amizade sincera que em nada impedia o respeito que a
cada um era devido. Sempre que morria um camarada chorávamos por igual, sem
disfarce nem pudor, independentemente do posto e da hierarquia. Em nenhum outro
lugar do mundo conheci tal solidariedade humana. Nunca mais vivi no seio de uma
família tão numerosa e unida. Essa foi sem dúvida a maior bênção que obtive da
guerra, uma bênção que se mantém intacta até hoje, porque, tanto tempo depois,
os laços de amizade fraterna pelos que voltaram, e de sentida memória pelos que
tombaram, perduram, perdurarão decerto até ao fim da vida de cada um dos
Cavaleiros do Maiombe.
Eram
cerca das cinco da tarde quando começámos a avistar Portugal lá do alto, muito
alto ainda. A Costa Vicentina primeiro, o Litoral Alentejano a seguir, e, por
fim, estávamos a sobrevoar Lisboa. Aterrámos perto das cinco e meia. Formámos
ordeiramente como nos tinha sido ordenado para as últimas instruções e
recomendações. No aeroporto não havia familiares à nossa espera porque tinham
sido encaminhados para o antigo Regimento de Artilharia Nº 1 em Lisboa - RAL 1 - onde íamos entregar o resto do
fardamento e desmobilizar. Tudo isso demorou apenas mais uma hora e meia. Por
fim, manifestamente comovidos, despedimo-nos uns dos outros e corremos para o
exterior à procura cada um dos seus entes queridos.
E…
Lá
estava ela! A minha saudosa e querida Mãe lavada em lágrimas, ansiosa, muito
mais magra do que eu alguma vez a imaginara e, no seu amado rosto, o mais
evidente eram as profundas olheiras, o sinal mais que revelador da
intranquilidade das suas noites e dos seus dias durante todo o tempo que
durou a minha ausência. Caímos nos braços um do outro soluçando, incapazes de
conter o caudal de ternura e fome de carinho mútuos, porque sempre
fomos e somos hoje ainda, eu e ela, particularmente amigos, cúmplices um do
outro, além de que, por certo, também ambos pensámos intimamente muitas vezes se nos voltaríamos a ver.
Foi o rebentar de uma torrente caudalosa e desenfreada de emoções contidas durante
os últimos longos e sofridos 810 dias que naquele momento se libertaram num
turbilhão impossível de conter. E que palavra alguma poderá, por mais que se
queira, conseguir descrever. Também eu regressava mudado e diferente. Muito
diferente mesmo. Não só com uma pele escura queimada pelo quente clima como
também bastante magro e escanzelado como nunca fora, restando apenas 60 quilos
dos 75 que costumava ter. Mas sobretudo e também, com uma mentalidade amadurecida à força pela adversidade, completamente estranha àquela provinciana ingenuidade que levara ao partir em Março de 1972.
Devo
acrescentar antes de terminar por hoje que nunca, mas nunca mesmo, relatei a
alguém as atrocidades que por lá nos aconteciam. Nem eu nem nenhum camarada o
fazia. Era ponto de honra de todos e de cada um não inquietar ainda mais quem estava
longe e vivia já intranquilo pela nossa ausência, além de que em nada nos poderia ajudar. Na
correspondência com a família e amizades apenas se referia que estava tudo bem,
que aquilo era um mar de rosas. Até as fotos que enviávamos eram cuidadosamente
preparadas, quase sempre em traje civil, como se estivéssemos numa estância
turística. E quando fardados, as fotos mostravam com toda a certeza um feliz sorriso de
orelha a orelha. Truques simples que todos quantos se preocupam com os seus entes queridos saberão decerto compreender…
José Coelho in Histórias do Cota