sábado, 14 de janeiro de 2017

Gosto muito de escrever. Mas gosto ainda mais de ler...

Imagem copiada do Google

Os pais


Com o passar dos anos os pais tornam-se mais presentes, lembramo-nos melhor deles, as saudades aumentam. Há poucos dias o João para mim

– Se os pais cá estivessem

e a certeza irracional que se cá estivessem não deixavam que as coisas más acontecessem. Na altura não dávamos muito por isso mas estavam sempre entre nós e a morte, entre nós e as doenças, entre nós e os tropeços da vida. A sua imagem tão nítida, a sua força tão presente, a saudade tão grande. Até certo ponto se os pais cá estivessem é uma redundância porque nunca se foram embora. O meu amigo Bento Domingues contou-me uma vez que disse a missa de corpo presente da mãe, a acompanhou ao cemitério, a viu sumir-se na terra, essas coisas. E quando, passados tempos, voltou à aldeia e o pai lhe abriu a porta, perguntou logo, embora consciente disto tudo

– A mãe?

e começou a procurá-la pela casa. Quando me descreveu isto a minha mãe estava viva, nem sequer tinha as melhores relações com ela

(muitas vezes, por estupidez e orgulho, não tinha as melhores relações com as pessoas importantes para mim)

e aquilo de que o Bento me falou pareceu-me estranho. Depois a minha mãe morreu e agora compreendo-o que nem ginjas. Às vezes estou para aqui sozinho e a frase

– A mãe?

a pergunta

– A mãe?

aparece com tanta força na cabeça. Não me esquece

(nunca irei esquecer)

a cara dela quando me visitou, estava eu muito doente. O sofrimento dela, a dor dela, a dignidade dela. E de repente compreendi que, se eu quisesse, me receberia inteiro na sua barriga e nada de ruim me aconteceria porque ela não deixava. Compreendi não com a minha cabeça, com a minha carne. É difícil explicar isto mas compreendi com a minha carne conforme senti que, verdadeiramente, nunca de lá tinha saído. Sentada no sofá, pequena, e eu, muito maior que ela, protegido lá dentro, protegido para sempre lá dentro, e então tive uma vontade imensa de tornar para onde vim. E quando nos saem pela boca frases deles que não sabíamos que sabíamos? E quando lhes sentimos o cheiro? E quando temos a certeza que eles ali, a olharem para nós em silêncio? E quando lhes escutamos os passos pela casa? E quando nos vêm com uma espécie de halo de amor que nos protege inteiros? Lembrando-me outra vez do Bento ele declarou- -me um dia

– Não vou aos cemitérios porque não está lá ninguém

e ao perguntar-lhe

– Então estão onde?

o Bento fez aquele sorriso que lhe enche a cara toda, explicou

– Andam por aí.

e, de facto, andam por aí. A minha mãe anda por aí, o meu pai anda por aí e fartamo-nos de nos cruzar com eles, só que às vezes, distraídos, não damos por isso. Eu para o Bento

– O que faço depois de morrer?

o Bento, muito seguro

– Continuas a escrever

eu, sem segurança nenhuma

– E quem me vai ler?

o Bento mais que seguro, certíssimo

– Descansa que lêem

e, como o Bento se entende nessas coisas, calei-me: a gente tem que dar razão a quem se conhece em certos temas, e a palavra de um amigo chega-me. Portanto andam por aí. Portanto estão connosco. Que estão connosco eu sinto. E, vai daí, quando o meu irmão disse

– Se os pais cá estivessem

devia ter-lhe respondido

– Não deves ter reparado bem mas estão. O pai nos seus livros e na sua música, a mãe em tudo o resto porque o tudo o resto, que é tudo, pertence às mulheres. São as mulheres que fazem. Nós, quando muito, acrescentamos os corantes ou endireitamos uma coiseca qualquer, que nem estava torta, mas temos sempre que endireitar uma coiseca qualquer, de acrescentar uma melhoria a maior parte das vezes inútil. Somos tão parvinhos

(só posso falar por mim)

sou tão parvinho em quase tudo. Apresento-vos o António, tão inteligente e tão parvinho. Com os pais por perto fica, talvez, um pouco menos. Olha, ouvi agora mesmo a minha mãe cantar. Tinha alturas em que cantava um bocadito. Uma voz muito feminina, fininha. E o pai também, nalgumas manhãs, enquanto fazia a barba. Gostava de os ouvir cantar. Acho que volta e meia ainda cantam. Nós, os filhos, éramos um bocado mais sérios, claro, porque talvez fôssemos mais velhos do que eles. Só nisso, embora o meu pai gostasse de brincar com automoveizinhos nossos. E os chocolates que estavam no frigorífico com um letreiro em maiúsculas. Estes Chocolates são Do Pai Não Mexer? A gente, que remédio, não mexia. Agora estou a ver

(desculpem interromper a conversa)

o meu irmão Nuno de babete, com um Pluto de borracha na mão. Tenho um fraquinho pelo Nuno. Uma debilidade como dizem os espanhóis, e adoro o sorriso dele. Aos cinco anos, quando estava a morrer de peritonite, lembro-me do meu irmão a chorar

– Eu vou morrer e quero o meu paizinho
 e o paizinho veio, e operaram-no, e o meu mano não morreu. Sempre que me lembro disto fico com os olhos turvos. Não liguem: sou um maricas.

António Lobo Antunes in Para Português Ler