sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Coisas q'escrevi...



Inferno verde (2)


O dia seguinte, aquele em que teoricamente nos faltavam só já 729 para podermos regressar a casa – e escrevo teoricamente porque muitos de entre nós não voltariam nunca mais enquanto outros voltaram sim mas involuntariamente antes de tempo – não foi mais entusiasmante do que aquele que o antecedera. Após a calorosa recepção de boas-vindas oferecida pelos nossos anfitriões que durara toda  a noite, pudemos finalmente conhecer aquela que iria ser a nossa casa dali em diante. O quartel era composto por um conjunto de barracões retangulares com paredes de tijolo e barrotes de madeira a segurarem um telhado de chapas de zinco ondulado que para além de nos proteger das chuvas torrenciais tinha também simultaneamente a função de uma eficiente sauna naqueles dias de mais calor que para não variar durava o ano inteiro.

O seu perímetro era em toda a volta cercado por uma alta cerca de arame farpado que lhe dava o aspecto de campo de concentração daqueles que vemos nos filmes, intercalado nos vértices por 4 pesados canhões obus virados para a mata, 4 ninhos de morteiros aptos a disparar e 8 guaritas de cimento compactado à prova de bala para as sentinelas permanentes, além de também 4 valas – trincheiras – escavadas entre as casernas e o arame farpado para refúgio coletivo em caso de ataque ao aquartelamento. Tudo aquilo fora projetado e construído numa previamente desmatada colina sobranceira à povoação e à sanzala do Belize, da qual distava poucas centenas de metros.

À direita da cancela da porta de armas e a testemunhar a perigosidade daquela zona, situava-se o pequeno cemitério do quartel onde repousavam ainda os restos mortais de alguns dos camaradas primeiras vítimas da guerra por aquelas paragens e que, à falta de acessos e condições para serem evacuados em tempo útil na data das suas mortes em combate, ali tiveram que receber sepultura. Em boa hora o comando do nosso batalhão entendeu, meses mais tarde, exumá-los a todos – eu assisti à sua exumação – para serem enviados às famílias na metrópole com a dignidade e as honras de heróis que lhes eram devidas.

Noutro dos vértices do aramado mas do lado de fora do quartel havia também ainda uma pista com cerca de mil metros de extensão em terra batida e recentemente rasgada pela mata adentro à força de retroescavadoras para possibilitar a aterragem de pequenas aeronaves. Era normalmente utilizada em reabastecimentos diversos, deslocações de altas patentes militares e evacuação de feridos graves quando necessário, aquela que, infelizmente, viria a ser a sua principal função nos tempos que se seguiriam.

A pouco mais de uma centena de metros um rio Luáli de porte médio, talvez uma espécie de Zêzere do Maiombe, circundava uma parte do morro do aquartelamento e corria num misterioso silêncio, cúmplice quiçá dos guerrilheiros do MPLA, da UPA ou da FLEC que se movimentavam tão à vontade no meio daquele emaranhado verde das suas margens como os peixes nadavam na sua corrente de águas tranquilas.

Olhando para lá do arame farpado até o alcance visual conseguir chegar e em todas as direções dos pontos cardeais, só se vislumbrava floresta, floresta, e mais floresta. Até o céu tocar a terra na linha do horizonte tudo era verde. Mato cerrado e copas de gigantescas árvores sob as quais mal se vislumbrava o sol lá muito acima. E o calor! Aquele malvado calor, asfixiante e pegajoso! O clima do enclave de Cabinda e particularmente no alto Maiombe é muito abafado, por ser, ao longo de todo o ano, extremamente húmido.

Ali só há duas estações no ano. A estação quente e húmida e a estação do cacimbo. Na estação quente e húmida, dilúvios torrenciais já cientificamente aferidos em 180 litros por metro quadrado, desabam do céu. Autênticas cascatas de água que nós logo aproveitávamos saindo das casernas nus ou só em calções para nos regalarmos na sua frescura. Só não o fazíamos quando, à mistura com a chuva diluviana, a natureza se lembrava de desenvolver tremendas trovoadas tropicais de estrondosa espectacularidade com os raios a caírem consecutivamente nas altas árvores das redondezas seguidos do simultâneo e ensurdecedor estouro dos trovões. A violência era tal que às vezes o coração parecia querer saltar-nos pela boca. Sem exagero algum, nunca vi, nem nunca mais voltei a ver, trovoadas tão assustadoras como aquelas do alto Maiombe.

Logo a seguir vinha a época do cacimbo. Os dias tornavam-se um tudo nada mais frescos mas o céu mantinha sempre a mesma cor de chumbo de onde caía o tal cacimbo que tudo escondia e parecia a chuva miudinha a que nós por cá chamamos de molha-parvos. Uma neblina espessa e pegajosa, de encharcar tanto ou mais que a chuva e a transformar da mesma maneira em imensos atoleiros todas as picadas e fiotes por onde não podíamos deixar de circular nas nossas patrulhas e reconhecimentos diários. A estação mudava mas a humidade continuava por isso a fazer-nos a vida negra com o recorrente problema de viaturas constantemente atascadas até à carroçaria e nos locais mais impróprios para serem socorridas.  A duras penas aprendemos o que é viver no Maiombe onde as amplitudes térmicas anuais provocam uma sufocante média de 90% de humidade atmosférica. É de facto um clima impróprio para europeus como nós, habituados a climas temperados, secos e amenos. 

A enfermaria estava   por isso frequentemente cheia de camaradas a debaterem-se em febre porque o paludismo aliado ao microscópico mosquito miruin, são os reis e senhores daquelas condições climatéricas. Pela parte que me coube, estive oito vezes ali internado com temperaturas corporais sempre acima dos 40 graus e umas dores nos ossos e nas articulações que não permitiam que estivesse quieto na cama. É que além de altas temperaturas o paludismo provoca também umas dores tremendas nos ossos e articulações por todo o corpo. Valeu-me algumas vezes o amigo que nunca mais vi, o camarada meio-conterrâneo e cabo enfermeiro Canário de Castelo de  Vide que vive no Barreiro com a família há muitos anos.

Era rotina diária aqueles trilhos e picadas numa extensão de muitos e penosos quilómetros terem que ser patrulhados. Para nossa própria segurança e na tentativa muitas vezes vã de manter o inimigo afastado dos aquartelamentos. As patrulhas eram normalmente compostas por três ou mais viaturas com um operador rádio, ladeadas pelas secções apeadas de atiradores mas à frente dos quais, com os seus detetores metálicos apropriados, caminhavam em primeiro lugar sempre, os sapadores de minas e armadilhas. Regressava-se ao quartel horas depois invariavelmente cobertos de lama, encharcados, cansados e tensos pelas horas de exposição ao perigo. De tal modo as condições eram más que o fardamento e o calçado tinham que ser substituídos a cada 4 meses quando a sua duração em condições normais era a de 1 ano.

Dos nossos maiores pesadelos eram mesmo aqueles lamaçais permanentes que eram também o melhor trunfo do inimigo habituado ao clima, conhecedor do meio, das nossas dificuldades e até mesmo da precaridade no apoio e socorro quando ele se tornasse absolutamente necessário. Por isso se emboscava em sítios estrategicamente perfeitos para a sua inopinada ofensiva e nos massacrou com emboscadas traiçoeiras numa rotina tal que não havia semana nem mês sem sobressaltos ou sem baixas. Porém e por estranha casualidade, a primeira vez que fomos surpreendidos pela tragédia de camaradas mortos e feridos não foi com pessoal da nossa unidade. Foi a 8 de Agosto de 1972 numa unidade vizinha  sediada uns quilómetros mais a sul, a Companhia de Caçadores 3408 que se deslocava pela picada do Chimbete em direcção ao Sangamongo quando uns guerrilheiros do MPLA emboscados no mato dispararam um roquete que atingiu uma viatura da coluna militar e matou o capitão Bexiga, o alferes médico Silvério Marques filho do então governador de Moçambique e o furriel Caldeira natural de Portalegre, ficando ainda também gravemente feridos mais 3 outros militares.

Foi o primeiro aviso, o prenúncio talvez daquilo que nos esperava a nós, a seguir. Nem podíamos imaginar o inferno em que o nosso dia a dia se iria transformar dali em diante, bem como a importância vital de que se reveste o pelotão de transmissões numa linha da frente como aquela. No “meu” BCav3871  este excelente pelotão - perdoem-me a vaidade - era composto pelos camaradas Alferes Amaral Dias natural de Seia onde hoje exerce a profissão de advogado e foi o nosso comandante de pelotão, pelos furriéis Caetano e Santos naturais da zona da Nazaré - Atouguia da Baleia, seus adjuntos, por mim o cabo mais antigo e por isso o responsável pelas escalas, serviços e todo funcionamento do posto rádio e operadores, pelo cabo Martins, natural de Castelo Branco, pelos soldados Tibúrcio, natural de Campo Maior, Gomes, natural do Tortosendo, Fonseca, natural de Alvares,  Leonel, natural de Cucujães, Borges, natural da Afurada, e o baixinho e franzino Santos II que já não recordo de onde era. Havia ainda a equipa de radiomontadores que faziam parte do nosso pelotão mas dos quais recordo apenas alguns semblantes como o do seu chefe, o furriel André, ou o do soldado Ramalho que também era alentejano como eu. Os outros que me desculpem, mas já não consigo lembrar os seus nomes.

Em qualquer quartel de cidade, nas províncias ultramarinas ou nos da metrópole, ser-se operador de transmissões considerava-se na altura uma especialidade de luxo. Serviço limpo porque sempre em confortáveis e reservadas centrais de transmissões e telefónicas com acesso reservado, sem apanhar frio ou calor. Mas nas frentes de combate, um operador de transmissões era o alvo a abater mais apetecido pelo inimigo como forma de boicotar qualquer pedido de ajuda. Além disso, um atirador ou um sapador levavam às costas um cantil com água, uma mochila de lona com a ração de combate, e a G3. Já o operador de transmissões, levava o cantil com água, a mochila com a ração de combate e uma pilha de reserva para o rádio, a G3, e também o emissor-receptor Racal TR28B2 nem muito pesado nem muito leve mas que era a única forma de contacto com a unidade para qualquer emergência.

Honra seja feita para todo o sempre aos velhos e grandes camaradas todos sem excepção por ajudarem, em todas as patrulhas, generosa e voluntariamente, a carregar com a mochila que continha a pilha de reserva e a ração de combate, uma vez que do seu rádio um operador era inseparável fosse a que pretexto fosse...


(Continua)


José Coelho in Histórias do Cota