Inferno verde (2)
O
dia seguinte, aquele em que teoricamente nos faltavam só já 729 para podermos regressar a
casa – e escrevo teoricamente porque muitos de entre nós não voltariam nunca
mais enquanto outros voltaram sim mas involuntariamente antes de tempo – não foi
mais entusiasmante do que aquele que o antecedera. Após a calorosa recepção de
boas-vindas oferecida pelos nossos anfitriões que durara toda a noite, pudemos finalmente conhecer aquela
que iria ser a nossa casa dali em diante. O quartel era composto por um conjunto de barracões retangulares com paredes de tijolo e barrotes de
madeira a segurarem um telhado de chapas de zinco ondulado que para além de
nos proteger das chuvas torrenciais tinha também simultaneamente a função de uma eficiente sauna naqueles dias de mais calor que para não variar durava o
ano inteiro.
O seu perímetro era em toda a volta cercado por uma alta cerca de arame
farpado que lhe dava o aspecto de campo de concentração daqueles que vemos
nos filmes, intercalado nos vértices por 4 pesados canhões obus virados para a
mata, 4 ninhos de morteiros aptos a disparar e 8 guaritas de cimento compactado
à prova de bala para as sentinelas permanentes, além de também 4 valas –
trincheiras – escavadas entre as casernas e o arame farpado para refúgio
coletivo em caso de ataque ao aquartelamento. Tudo aquilo fora projetado e construído
numa previamente desmatada colina sobranceira à povoação e à sanzala do Belize,
da qual distava poucas centenas de metros.
À
direita da cancela da porta de armas e a testemunhar a perigosidade daquela zona,
situava-se o pequeno cemitério do quartel onde repousavam ainda os restos
mortais de alguns dos camaradas primeiras vítimas da guerra por aquelas
paragens e que, à falta de acessos e condições para serem evacuados em tempo
útil na data das suas mortes em combate, ali tiveram que receber sepultura. Em
boa hora o comando do nosso batalhão entendeu, meses mais tarde, exumá-los a
todos – eu assisti à sua exumação – para serem enviados às famílias na
metrópole com a dignidade e as honras de heróis que lhes eram devidas.
Noutro
dos vértices do aramado mas do lado de fora do quartel havia também ainda uma
pista com cerca de mil metros de extensão em terra batida e recentemente rasgada
pela mata adentro à força de retroescavadoras para possibilitar a aterragem de
pequenas aeronaves. Era normalmente utilizada em reabastecimentos diversos,
deslocações de altas patentes militares e evacuação de feridos graves quando necessário, aquela que, infelizmente, viria a ser a sua principal função nos
tempos que se seguiriam.
A
pouco mais de uma centena de metros um rio Luáli de porte médio, talvez uma
espécie de Zêzere do Maiombe, circundava uma parte do morro do aquartelamento e
corria num misterioso silêncio, cúmplice quiçá dos guerrilheiros do MPLA, da
UPA ou da FLEC que se movimentavam tão à vontade no meio daquele emaranhado
verde das suas margens como os peixes nadavam na sua corrente de águas tranquilas.
Olhando
para lá do arame farpado até o alcance visual conseguir chegar e em todas as direções dos pontos cardeais, só se vislumbrava floresta,
floresta, e mais floresta. Até o céu tocar a terra na linha do horizonte tudo
era verde. Mato cerrado e copas de gigantescas
árvores sob as quais mal se vislumbrava o sol lá muito acima. E o calor! Aquele
malvado calor, asfixiante e pegajoso! O clima do enclave de Cabinda e
particularmente no alto Maiombe é muito abafado, por ser, ao longo de todo o ano, extremamente húmido.
Ali
só há duas estações no ano. A estação quente e húmida e a estação do
cacimbo. Na estação quente e húmida, dilúvios torrenciais já cientificamente
aferidos em 180 litros por metro quadrado, desabam do céu. Autênticas cascatas de água que nós logo aproveitávamos saindo das
casernas nus ou só em calções para nos regalarmos na sua frescura. Só não o fazíamos quando,
à mistura com a chuva diluviana, a natureza se lembrava de desenvolver tremendas trovoadas
tropicais de estrondosa espectacularidade com os raios a caírem consecutivamente nas altas
árvores das redondezas seguidos do simultâneo e ensurdecedor estouro dos
trovões. A violência era tal que às vezes o coração parecia querer saltar-nos pela
boca. Sem exagero algum, nunca vi, nem nunca mais voltei a ver, trovoadas tão assustadoras
como aquelas do alto Maiombe.
Logo
a seguir vinha a época do cacimbo. Os dias tornavam-se um tudo nada mais frescos
mas o céu mantinha sempre a mesma cor de chumbo de onde caía o tal cacimbo que
tudo escondia e parecia a chuva miudinha a que nós por cá chamamos de molha-parvos.
Uma neblina espessa e pegajosa, de encharcar tanto ou mais que a chuva e a
transformar da mesma maneira em imensos atoleiros todas as picadas e fiotes por
onde não podíamos deixar de circular nas nossas patrulhas e reconhecimentos diários.
A estação mudava mas a humidade continuava por isso a fazer-nos a vida negra com o recorrente
problema de viaturas constantemente atascadas até à carroçaria e nos locais mais
impróprios para serem socorridas. A duras
penas aprendemos o que é viver no Maiombe onde as amplitudes térmicas anuais
provocam uma sufocante média de 90% de humidade atmosférica. É de facto um
clima impróprio para europeus como nós, habituados a climas temperados, secos e
amenos.
A enfermaria estava por isso frequentemente cheia de camaradas a debaterem-se em febre
porque o paludismo aliado ao microscópico mosquito miruin, são os reis e senhores daquelas condições climatéricas. Pela
parte que me coube, estive oito vezes ali internado com temperaturas corporais
sempre acima dos 40 graus e umas dores nos ossos e nas articulações que não
permitiam que estivesse quieto na cama. É que além de altas temperaturas o paludismo
provoca também umas dores tremendas nos ossos e articulações por todo o corpo. Valeu-me
algumas vezes o amigo que nunca mais vi, o camarada meio-conterrâneo e cabo enfermeiro
Canário de Castelo de Vide que vive
no Barreiro com a família há muitos anos.
Era
rotina diária aqueles trilhos e picadas numa extensão de muitos e penosos
quilómetros terem que ser patrulhados. Para nossa própria segurança e na
tentativa muitas vezes vã de manter o inimigo afastado dos aquartelamentos. As
patrulhas eram normalmente compostas por três ou mais viaturas com um operador
rádio, ladeadas pelas secções apeadas de atiradores mas à frente dos quais,
com os seus detetores metálicos apropriados, caminhavam em primeiro lugar sempre, os sapadores de minas e armadilhas. Regressava-se ao quartel horas depois invariavelmente
cobertos de lama, encharcados, cansados e tensos pelas horas de exposição ao
perigo. De tal modo as condições eram más que o fardamento e o calçado tinham
que ser substituídos a cada 4 meses quando a sua duração em condições normais
era a de 1 ano.
Dos nossos maiores pesadelos eram mesmo aqueles lamaçais permanentes que eram também
o melhor trunfo do inimigo habituado ao clima, conhecedor do meio, das nossas dificuldades
e até mesmo da precaridade no apoio e socorro quando ele se tornasse absolutamente necessário. Por isso se emboscava em sítios
estrategicamente perfeitos para a sua inopinada ofensiva e nos massacrou com emboscadas
traiçoeiras numa rotina tal que não havia semana nem mês sem sobressaltos ou
sem baixas. Porém e por estranha casualidade, a primeira vez que fomos
surpreendidos pela tragédia de camaradas mortos e feridos não foi com pessoal
da nossa unidade. Foi a 8 de Agosto de 1972 numa unidade vizinha sediada uns quilómetros mais a sul, a Companhia de
Caçadores 3408 que se deslocava pela picada do Chimbete em direcção ao Sangamongo quando uns guerrilheiros do MPLA emboscados no mato dispararam um roquete que atingiu uma viatura da coluna militar e matou o capitão Bexiga, o alferes médico Silvério Marques filho do então governador de Moçambique e o furriel Caldeira natural de Portalegre, ficando
ainda também gravemente feridos mais 3 outros militares.
Foi o
primeiro aviso, o prenúncio talvez daquilo que nos esperava a nós, a seguir.
Nem podíamos imaginar o inferno em que o nosso dia a dia se iria transformar
dali em diante, bem como a importância vital de que se reveste o pelotão de
transmissões numa linha da frente como aquela. No “meu”
BCav3871 este excelente pelotão - perdoem-me a vaidade - era composto pelos camaradas
Alferes Amaral Dias natural de Seia onde hoje exerce a profissão de advogado e
foi o nosso comandante de pelotão, pelos furriéis Caetano e Santos naturais da
zona da Nazaré - Atouguia da Baleia, seus adjuntos, por mim o cabo mais antigo
e por isso o responsável pelas escalas, serviços e todo funcionamento do posto
rádio e operadores, pelo cabo Martins, natural de Castelo Branco, pelos
soldados Tibúrcio, natural de Campo Maior, Gomes, natural do Tortosendo,
Fonseca, natural de Alvares, Leonel, natural
de Cucujães, Borges, natural da Afurada, e o baixinho e franzino Santos II que já não recordo de onde era. Havia ainda a equipa de
radiomontadores que faziam parte do nosso pelotão mas dos quais recordo apenas alguns semblantes como o do seu chefe, o furriel André, ou o do soldado Ramalho que também era alentejano como eu. Os outros que me desculpem, mas já não consigo lembrar os
seus nomes.
Em
qualquer quartel de cidade, nas províncias ultramarinas ou nos da
metrópole, ser-se operador de transmissões considerava-se na altura uma
especialidade de luxo. Serviço limpo porque sempre em confortáveis e reservadas
centrais de transmissões e telefónicas com acesso reservado, sem apanhar
frio ou calor. Mas nas frentes de combate, um operador de
transmissões era o alvo a abater mais apetecido pelo inimigo como forma de boicotar qualquer pedido de ajuda. Além disso, um atirador
ou um sapador levavam às costas um cantil com água, uma mochila de lona com a ração de
combate, e a G3. Já o operador de transmissões, levava o cantil com água, a
mochila com a ração de combate e uma pilha
de reserva para o rádio, a G3, e também o emissor-receptor Racal TR28B2 nem muito pesado nem muito leve mas que era a única forma de contacto com a unidade para qualquer
emergência.
Honra
seja feita para todo o sempre aos velhos e grandes camaradas todos sem excepção por ajudarem, em todas as patrulhas, generosa e voluntariamente, a carregar com a mochila que continha a pilha de reserva e a ração de
combate, uma vez que do seu rádio um operador era inseparável fosse a que pretexto
fosse...
(Continua)
José
Coelho in Histórias do Cota