quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Coisas q'escrevi...

Floresta do Maiombe - Cabinda

Inferno verde (1)


É algo ainda complicado para mim apesar de passadas já quatro décadas descrever o que foram dois anos no coração da floresta do Maiombe longe de tudo quanto era civilização. Dizem os livros que é a única floresta que em extensão e densidade se compara à Amazónia sendo por isso o segundo pulmão do mundo. É? Não sei. Mas se os livros o dizem… Contudo, nunca me preocupei em confirmá-lo pois a única coisa com que me preocupei e empenhei com todas as minhas forças depois de lá sair, foi tentar esquecer que aquilo existe.

Mas para ser justo e antes de prosseguir é meu dever de consciência afirmar que Angola é linda. Um sonho de terra. Conheci as cidades de Luanda e Cabinda, depois as vilas do Caxito, Ambriz e Ambrizete. Independentemente da guerra e das suas vicissitudes, África é um continente maravilhoso. O próprio Mayombe, no exotismo da sua diversificada e luxuriante vegetação, tem recantos de sonho. A sua fauna é também muito rica. Abundam as enormes jiboias e muitas outras cobras mais pequenas mais ou menos venenosas mas todas elas muito vistosas. Elefantes, pacaças, gorilas e uma infinidade de raças de outros macacos também de diversos tamanhos, o mais pequeno dos quais é o saguí, além de milhares de outros bichos e aves exóticas. E, nos diversos rios que por ele serpenteiam, abundam ainda os crocodilos.

Também os indígenas locais não são como os caricaturam muitas vezes. São boa gente. Conversávamos muito com eles pelas sanzalas principalmente com os mais idosos que eram iguais aos anciãos das nossas terras, conselheiros sábios, prudentes e experientes. As mulheres meigas e afáveis como as nossas, as crianças irrequietas e curiosas, também. Ali, nós é que éramos os estranhos, os estrangeiros na sua terra, apesar de na instrução militar nos terem feito a lavagem ao cérebro para nos tentarem convencer a vermos em cada um deles o “turra”, o inimigo perigoso. Nos cenários de guerra há, sempre houve e sempre haverá infiltrados, obviamente. Porque tentar conhecer as fraquezas do inimigo é uma das regras do jogo, estrategicamente utilizada sempre por todas as partes em conflito. Nós também tínhamos os nossos espiões infiltrados lá. Só que, convivendo de perto no dia a dia com a população, percebia-se perfeitamente que a esmagadora maioria deles queriam era apenas viver a sua vida em paz. E os habitantes daquelas sanzalas isoladas no interior da floresta eram quase sempre tão vítimas da guerra como nós.

Demasiadas vezes foram tratados pelo homem branco com uma superioridade que na realidade nunca tivemos. São pessoas e a diferença da cor da pele em nada os faz menos merecedores do respeito devido a qualquer ser humano. Deixei algumas amizades por lá, maioritariamente entre as jeitosas moças fiotes, uma das quais aquela que cuidou das minhas roupas durante os dois anos que lá estive, mas não só. A amargura e as marcas irreparáveis que a guerra deixou nada têm a ver com os africanos, nem com a sua gente boa. São marcas que ficam na alma para sempre e foram lá gravadas por uma vida insana, perigosa e injusta vivida em condições extremas, naquele tempo e lugares. Hoje talvez até gostasse de lá voltar e poder ver como está tudo aquilo sem o espectro da maldita guerra com o perigo a espreitar por todos os cantos.

Mas voltemos ao anoitecer tropical do dia 13 de Março de 1972 quando por fim atracámos ao porto de Cabinda na tal barcaça achatada que mais parecia uma ponte flutuante, ensonados e bastante doridos por 60 horas de viagem sentados em cima das bagagens, deficientemente alimentados pela enjoativa ração de combate e suficientemente amedrontados com as notícias pouco tranquilizadoras que nos tinham chegado ao ouvido acerca do inferno que nos esperava naquela terra de ninguém disputada por diversas fações inimigas que tudo fariam para nos dificultarem a estadia que não iria ser nada breve.

Um homem sente medo muitas vezes, por mais que diga que não. E também chora. Por mais valente e audaz que possa ser. E todos nós, os Cavaleiros do Maiombe – cognome atribuído a todos os militares do BCAV 3871 – sentimo-lo profundamente, vezes sem conta. Um medo real e palpável. E outras tantas vezes chorámos. De desespero. De raiva. De frustração e de impotência por nada conseguirmos fazer que pudesse impedir ou evitar tantas mortes e tantos estropiados naquelas malditas  emboscadas e rebentamentos de minas ou outras armadilhas, semeadas profusamente por tudo quanto era chão e tantos danos causavam por mais cautela que todos tivessemos em todas as deslocações pela mata.

A imagem que melhor recordo daquele anoitecer da nossa chegada a Cabinda – em África não há crepúsculo como cá, anoitece ou amanhece quase de repente – é a imagem fantasmagórica das altas chamarelas nos poços de petróleo no meio do mar que salpicavam de altos lumes toda a costa numa extensão a perder de vista, parecendo tochas gigantes refletidas no mar no negrume da noite.

À nossa espera estava uma coluna de várias viaturas conduzidas pelos felizardos “velhinhos” que íamos substituir e que não se coibiam de nos atazanar o juízo com a velha lenga-lenga de “maçaricos” ou “piu-piu pintainhos”, bem como de alardearem profusamente o seu já próximo regresso a casa, vociferando como dementes: “Não se enervem maçaricos! Só já vos faltam 730 dias para voltarem para a mamã…” Era da praxe e não havia que levar a mal. Mas o cansaço, o sono, a angústia do desconhecido e o mais que anunciado perigo que nos aguardava, não nos davam ânimo para celebrar com eles aquela euforia, nem sequer para esboçar algum sorriso às suas felizes piadas, pelo que, a nossa resposta era apenas uma silenciosa indiferença e semblantes cansados.

Escuro como breu poucos quilómetros percorridos e após se extinguirem de vez as últimas luzes da civilização na vila de Lândana, acolheu-nos o imponente Maiombe em toda a sua imensidão. A coluna de viaturas serpenteava atenta e vagarosamente com milhões de sons noturnos provenientes do denso mato a soarem mais alto que o próprio ronronar dos motores dos unimogs que nos transportavam, intercalados  pelas berliets que levavam as nossas bagagens. De longe em longe atravessávamos sanzalas com pequenas casotas redondas de adobe e telhados de colmo, completamente às escuras sem se vislumbrar viv’alma. Para além dos faróis das viaturas tudo o que nos rodeava era uma sinistra e pesada escuridão.

Chegámos por fim ao Belize, mais de 200 km a norte de Cabinda, bem no coração da floresta. Esperavam-nos, mais uma vez e loucos de euforia, os “velhinhos” que íamos render e que nos receberam com mangueiradas de água à medida que as viaturas iam entrando naquele enorme recinto de grandes barracões cobertos com chapas de zinco a que pomposamente chamavam casernas, refeitório, posto de rádio, secretaria… Aquilo era, nem mais nem menos, um acampamento rasca sem um mínimo de condições onde centenas de homens já tinham vivido nos anos transatos e onde nós passaríamos a viver nos dois anos seguintes.

Essa noite – a primeira das tais 730 – foi mesmo para esquecer.

Exaustos porque sem dormir há quase 3 dias tivemos que suportar, perante a passividade indiferente dos oficiais e sargentos responsáveis por aquela turba de insurretos, que eles passassem a noite a apedrejar os telhados de zinco das casernas onde nos tinham enfiado, provocando, como é óbvio, um alarido ensurdecedor. E gritavam, riam, ululavam, como os índios dos filmes de cowbois, tratando-nos como se em vez de sermos os bem-vindos camaradas sucessores que iam pôr fim ao seu longo desterro, fôssemos os turras que lhes haviam tirado o sossego durante a sua estadia naquele fim de mundo.

Dir-se-ia que tínhamos aportado a uma colónia de loucos completamente descontrolados a quem ninguém teve o bom senso de mandar parar aqueles insuportáveis excessos.

Ainda assim o cansaço era tão grande que adormeci vestido e calçado sobre o beliche ao som do estrépido das pedras a caírem consecutivamente no telhado de zinco da caserna e dos autênticos uivos dos camaradas “velhinhos” cuja justificação ou desculpa era somente a de estarem “cacimbados” pelas agruras da guerra e isolamento quase total naquela imensidão de selva…

Continua…

Nota explicativa: Este relato apesar de várias tentativas para o abreviar manteve-se ainda assim demasiado extenso. Para não se tornar tão cansativo e enfadonho, decidi fracioná-lo em 4 textos mas com o mesmo título, referenciado apenas cada um deles com a sequência numérica 1-2-3-4 que os diferenciará entre si.


José Coelho in Histórias do Cota