No Dia da Guarda 3 de Maio de 1986
num gesto implícito de público agradecimento, organizei no quartel um
almoço-convívio comemorativo da efeméride e para ele convidei de novo todas as
entidades de todos os organismos públicos de Nisa, ao qual todos compareceram.
Foi interessante ver a cara de espanto de alguns daqueles convidados que lá
tinham ido em visita de cortesia oito ou nove meses antes.
O quartel estava um brinco.
Restaurado, pintado de fresco e cheirando a asseio, nada tinha a ver com aquele
outro bafiento e ruinoso que tinham visto antes. Continuava a ser um edifício
velho e a avisar quem de direito que tratasse urgentemente de providenciar um
novo quartel, mas pelo menos agora tinha alguma dignidade.
Os dois comandantes, quer o
oficial, quer o sargento que me antecedeu no comando do posto, não devem ter
gostado da forma como em meia dúzia de meses se requalificara o velho edifício
que pela sua total indiferença eles quase tinham deixado ruir, com o pretexto
de que os responsáveis pelo edifício eram a Guarda ou o Governo e que deviam
esses sim, preocuparem-se com isso, porque não tinham eles de andar a pedir
favores nem à câmara municipal, nem a ninguém.
Nada disso me afetou. Eu previa que
iria ter de passar ali um punhado de anos no comando do posto e resolvi as
coisas à minha maneira, tendo agora os militares umas instalações velhas mas
com um mínimo de dignidade, assim como a residência do comandante do posto, ao
contrário deles que só se tinham preocupado em manter minimamente decentes, os
seus gabinetes.
Fiquei sem querer um dia sabendo
que o meu camarada sargento se referiu a mim, seu substituto, sem imaginar que
o senhor para quem estava a falar era um dos meus tios e lhe disse que eu era “um
comuna”.
Continuava com o preconceito que o
caracterizava, mas que nunca me intimidou. Cada vez que experimentou medir
forças comigo querendo fazer uso da sua patente dois degraus acima da minha –
eu era segundo-sargento e ele sargento-ajudante – teve sempre de recuar na
atitude porque com a maior firmeza lhe fiz notar que tanta obrigação tinha eu
de o respeitar a ele, como tinha ele de me respeitar a mim. Assim acabou por
desistir pura e simplesmente quando percebeu que nunca levaria a
melhor.
Entretanto e infelizmente para ele foi acometido de uma doença incurável que lhe ditou uma aposentação precoce que
não teve tempo de desfrutar, porque faleceu poucos meses depois. Que descanse em
paz e que a terra lhe seja leve.
Encontrei-o casualmente um dia em
Lisboa no Centro Clínico da Guarda já muito debilitado e sinceramente
condoeu-me vê-lo assim, porque apesar de me ter tratado tão injusta e
incorretamente, nunca lhe desejei mal algum. Desejava tão só e apenas que
fizesse a sua vida e me deixasse fazer a minha em paz.
No exato momento em que o vi
dirigi-me imediatamente a ele para saber do seu estado de saúde e pude ver como
os olhos se lhe humedeceram. Não sei se por se sentir doente, se surpreso com o
meu gesto ao qual ele já não pôde responder porque tinha perdido
definitivamente a voz – eu não sabia disso – e por esse motivo limitou-se a
aceitar o meu cumprimento apontando para o enorme penso que lhe cobria na
garganta o local da recente intervenção cirúrgica a que fora submetido para lhe
retirarem um tumor maligno.
Recordo ainda a tristeza que eu
próprio senti por vê-lo assim. Por essas e por outras, nunca deixo de pensar o
quanto é incompreensível que andemos constantemente às turras uns com os outros
quando a vida é tão imprevisível que de um momento para o outro toda a nossa
força e energia, caem por terra. Duras lições que tenho aprendido pelo caminho
da minha já longa vida e por isso procuro viver em paz com toda a gente que
também queira viver em paz comigo. Detesto intrigas, ódios, desavenças e
filha-de-putices.
Em todo o meu percurso profissional
desde o momento que ascendi à classe praças, depois à de Cabos e a seguir à de
Sargentos, fiz sempre questão de pautar a minha conduta pelo respeito
institucional para com toda a gente, quer da minha patente quer superiores
hierárquicos ou subordinados, quer ainda as autoridades civis e
administrativas, exigindo, contudo e do mesmo modo, ver também respeitados os
meus direitos, perante fosse quem fosse.
Na minha função de comandante de
posto nunca me acomodei no conforto do meu gabinete, nele permanecendo apenas
as horas necessárias ao despacho daqueles afazeres que eram de minha exclusiva
responsabilidade. Porém, assim que os terminava, logo estava dentro de um jipe
ou mesmo também a pé para alinhar com os cabos e os guardas no policiamento aos
campos, às estradas, às aldeias e a outros sítios da área do posto que eram
imensos e dispersos.
Nunca me julguei a omnipotente
figura com direito de ficar no bem bom, enquanto os subordinados policiavam ao
calor ou ao frio no exterior. Muito pelo contrário. Senti-me sempre e só apenas
mais um deles, naquela excelente equipa de trinta e seis competentes
profissionais. A única diferença era a de ter de ser apenas eu a assumir a responsabilidade
de planear os giros por forma a termos toda a área do posto vigiada e sob
controlo, mas até nisso fui sempre ajudado pela excecional competência e
lealdade de todo o efetivo que me transmitia as preciosas informações que
discretamente iam recolhendo junto da população e eram meio caminho andado para
um planeamento muito mais eficaz.
Éramos uma equipa e todos nunca fomos demais.
José Coelho in Histórias do Cota