quarta-feira, 31 de julho de 2019

Meu vício de ler...

Por do sol no campo - Beirã - Foto José Coelho

Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei.

José Luís Peixoto, 
in 'Morreste-me'

domingo, 28 de julho de 2019

IN MEMORIAM...

07.10.1926  //  28.07.2014


A Avó Florinda Lourenço

Nasceu no dia 7 de outubro de 1926 num lugar a que chamam" O Muro" algures nas margens do ribeiro da Sapateira já não muito longe da sua foz a nordeste da então freguesia de Santo António das Areias. Contudo e por força da criação da freguesia da Beirã em 24 de junho de 1944, o território geográfico de abrangência da mesma foi desanexado ao de Santo António das Areias pelo que o Muro pertence desde essa data à Beirã.

O pai – o meu avô e grande amigo – de seu nome José Lourenço mas mais conhecido por Zé Cabreiro por ser guardador de rebanhos na Herdade do Matinho que ficava muito próxima do lugar onde morava numa pequena casita que ainda hoje lá existe e na qual nasceram os seus oito filhos.

A mãe – minha avó, confidente e amiga – aquela santa velhinha que ela acolheu em nossa casa e de quem cuidou amorosamente durante os nove anos em que a nossa querida anciã esteve acamada e dela totalmente dependente até ao dia em que faleceu, chamava-se Amélia da Conceição, a qual, entre os nascimentos dos oito filhos que teve, era jornaleira na monda, na sacha ou na rega das searas e das várzeas pertencentes à herdade.

Teve 8 irmãos a Avó Florinda. Ela era a mais velha, seguida pelo Francisco, depois o Joaquim, o Raimundo, a Jacinta, a Maria Francisca, a Júlia e um outro, o mais novo, do qual não sei o nome, porque não sobreviveu. Por ser a primogénita coube à avó Florinda logo a partir dos seus tenros 7 ou 8 anitos ter de cuidar dos irmãos mais novos em casa enquanto o pai e a mãe trabalhavam de manhã à noite para o sustento de todos.

Nesse tempo a família era muita mas o dinheiro pouco e o ordenado do avô Zé Lourenço era, em grande parte, pago em géneros. Chamava-se a esse pagamento mensal de "comedias" e era composto por certa medida em litros de azeite, de centeio, de feijão e grão, alguns queijos e ainda uma “peara” de gado que consistia no direito de pertença e respectiva produção de leite assim como das crias de oito cabeças adultas do rebanho que guardava, para além da mensalidade em dinheiro ajustada ano a ano, mais propriamente de S. Pedro a S. Pedro.

Para fazer o pão, tinha a avó Florinda que, uma vez por um mês, levar à cabeça o taleigo do centeio em grão e caminhar os cerca de cinco quilómetros que separavam o sítio do Muro do moinho do ti Domingos situado na várzea da Herdade dos Pombais no rio Sever para moer o grão mediante o pagamento de uma "maquia" e regressar a casa já com a farinha centeia de novo à cabeça para depois amassar tender e cozer no forno a lenha o pão da semana para toda a família.

Já agora vou explicar também o que era a tal "maquia” muito utilizada como pagamento de certos serviços, em virtude de quase ninguém poder pagar de outra forma. No caso do moleiro e dono do moinho, o ti Domingos tirava para si uma certa quantidade do grão que tinha que moer. Por exemplo, para moer 20 kg de centeio, tirava para si 5 kg. Só os restantes 15 kg iam para a mó para transformar em farinha. Dependendo da qualidade do grão, a "maquia" era maior ou menor. Se, por exemplo, o grão a moer fosse trigo, por ser mais valioso, a maquia era mais pequena. E em vez de 5 ou 6 por cada 20 kg, seria de apenas 3 ou 4.

Não foi ainda há muitos anos que essa forma de pagamento deixou de ser utilizada. Estou a lembrar-me por exemplo que, nos anos em que eu colhia azeitona para o azeite do consumo da nossa casa, a mesma ia depois ser moída nos lagares da região onde o pagamento era feito exactamente por essa "maquia". Imaginando que a nossa azeitona produzia 100 litros de azeite, só trazíamos 80 para casa. Os outros 20 eram pertença do lagar como forma de "pagamento" pela moagem da azeitona.

Feita esta explicação que me pareceu oportuna para melhor entendimento da minha narrativa e porque é bom recordar esses usos e costumes antigos, voltemos à avó Florinda depois de ela estar em casa com o saco da farinha centeia já arrumado na arca do pão. O seu cuidar dos irmãos mais novos não se resumia só a olhar por eles, vesti-los, limpá-los e dar-lhes de comer. Se um deles adoecia lá tinha que ir a magricela Florinda a pé com o irmão/irmã doentinhos escarrapachados na anca a caminho de Santo António das Areias que distava uns bons 9 ou 10 quilómetros do Muro para o ir “amostrar” ao médico. Já agora aproveito para explicar que quando se estava doente por aqui antigamente não se dizia “vou ao médico a uma consulta” mas apenas “vou-me amostrar” e toda a gente entendia que aquele “amostrar” era ir ao médico por se estar doente.

Por tudo quanto dela sei a vossa avó foi toda a sua vida e desde muito menina, uma quase-tudo-em-um. Irmã-mãe de todos os seus irmãos, assim como mais tarde foi também avó-mãe de quase todos os netos a começar logo pelo seu adorado Manel, seguindo-se a Cristina, o Luís, a Carmem e a Ana. O João Manuel e o Pedro, por terem nascido longe dela, foram os menos "apaparicados" mas nem por isso ela os amava com menor intensidade. 

Acolheu também sempre em sua casa os irmãos, quando estes decidiam “juntar-se” com as namoradas e foi como que a segunda mãe das suas cunhadas que muito a estimaram por isso toda a sua vida.

Tão bondosa criatura só não teve mesmo tempo para ser menina. Mal chegou aos 11 anos já com os irmãos mais crescidinhos e autossuficientes, prontamente foi promovida a criada de servir no Monte do Matinho como ajudante na cozinha dos ganhões, na queijeira ou na horta, tendo que contribuir com o seu ganho para as despesas da casa paterna e continuando sempre da mesma maneira a exercer a função de braço direito da sua mãe.

Aos 19 anos conheceu o avô António 16 anos mais velho que ela mas isso não a impediu de gostar tanto dele que um ano depois fugiram os dois para o Vale do Cano onde ele tinha uma várzea de pimentões. Nesse dia se constituiu mais uma família, da qual nós somos a continuação. E ocorre-me, para encerrar este capítulo, uma ternurenta resposta que ela me deu numa conversa que tivemos os dois à porta da igreja quando saíamos da missa. 

Ela ia muito cuidada, como sempre. Mas nesse domingo, além do fato domingueiro, levava um colar de pequenas pérolas negras em volta do pescoço. Achei-a tão bonita que lhe sussurrei ao ouvido: 
- Florindinha! Té lé hein? Se o nosso António Coelho aqui estivesse hoje e te visse…
Resposta pronta de quem estava viúva havia já 15 anos:
 -  Se o António Coelho aqui estivesse hoje filho, era com ele que eu me casava outra vez…

Deste diálogo há uma testemunha que vai com certeza ler o que escrevi e é capaz de se lembrar da cena. Foi a nossa muito estimada vizinha Alzira Sobreiro que se encontrava perto de nós e ao ouvir a pronta resposta da avó, exclamou com genuína admiração:
- É assim mesmo vizinha Florinda. Vocemecê é cá das minhas. Ora dê cá um grande beijinho…
E beijaram-se efectivamente as duas, na mais perfeita harmonia e sincera amizade.

José Coelho in Histórias do Cota

PS.
A este texto que foi escrito há já alguns anos quando ainda tinha o privilégio de a ter comigo, falta agora acrescentar que a nossa querida heroína faleceu às três da tarde do dia 28.07.2014 faz hoje precisamente cinco anos. E acompanhá-mo-la à sua última morada para junto do seu António no dia seguinte 29.07.2014. Que descansem em paz, juntos para todo o sempre.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Meu vício de ler...

Por do sol na Cavalinha - Foto José Coelho

Envelhecer

Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o significado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso também é velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer... Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal... e isso é precisamente a velhice.
Sándor Márai, in 'As Velas Ardem Até ao Fim'

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Nem maestro, nem cantor, apenas Beiranense...

Créditos de imagem - Freguesia Beirã

Por ter visualizado algumas imagens publicadas numa rede social onde apareço, interpelou-me, no seu habitual tom bem disposto, a minha comadre do norte:
- Zé! Mas afinal tu és maestro ou cantor?
E eu respondi, também com intencional humor:
- Dois em um!

Tal não é bem assim, comadre. Não sou dois em um coisíssima nenhuma, muito menos em termos musicais porque em boa verdade não sei ler uma pauta nem conheço uma só nota musical. Mas também é verdade que, quase desde o berço, ando metido em andanças destas. Às vezes de cantor, às vezes de maestro, e até já, vê só, de autor. Mas sem canudo, sem direito a ser tratado por doutor como agora se usa tanto assim que qualquer jovem termina a sua licenciatura. Doutor pra cá, doutor pra lá! E tão orgulhosa fica a família ou os vizinhos, como ficam os "doutorados".

Não, não estou a armar-me aos cucos, nem a querer usurpar categorias que nunca alcancei por falta das competentes e indispensáveis habilitações académicas. Estou só a levar a coisa para a paródia com a minha comadre a quem estimo muito há muitos anos para lhe provar que continuamos a ser capazes de rir como antes, que o passar das décadas nos levou muitas coisas menos a nossa habitual boa disposição. 

E passo a explicar melhor:

Comecei “nestas andanças” aos cinco anos de idade. Estávamos nos finais dos anos 50. Ia ser levado à cena, na Sociedade Recreativa Beiranense, um espectáculo de variedades em que os “artistas” iam ser os miúdos da catequese. Como eu ainda não andava na escola, obviamente não andava na catequese e por isso não fui “contratado” para fazer parte do “elenco artístico”. Pois! Só que o "Caçapinho" – era assim que me chamavam por ser filho do tio Coelho – não se conformou com a rejeição ao seu talento e logo no primeiro dia de ensaios fugiu à mestra e apresentou-se lá. 

Dito e feito…

A “mestra” era naquele tempo um género de infantário onde os nossos pais nos iam deixar manhã cedo antes de irem trabalhar e nos iam buscar à tardinha depois do trabalho. Uma senhora tomava conta de um rancho de gaiatos todo o dia a troco de certa quantia mensal. Mas eu consegui escapulir-me. Com tanta sorte que os “encenadores” acharam graça à minha pequena figura e quiseram experimentar se eu seria capaz de cantar uma cantiga com outra petiza do meu tamanho. E fomos capazes os dois.

Maria da Conxeixão 
Oh que palavra tão doxe 
Dava-te o meu coraxão 
Xe o teu amor leal foxe…

Foi tiro e queda, contrato assinado logo na hora! O pior foi a tia Vicência – a bondosa e querida mestra – que não achou graça nenhuma à minha ousadia e… Mas isso agora não interessa nada… O que importa é situar a minha “estreia” como “cantor”. Aos cinco anos de idade, não é para qualquer um hein? Ah pois não, comadre Adriana! Já vês que vem de longe a veia artística!

Depois, bem mais tarde, veio a estreia como “autor”. E porquê? Porque eu era “festeiro”, ou seja, fazia parte da Comissão de Festas nesse ano. E precisávamos arranjar dinheiro para trazermos artistas e conjuntos musicais para animar as noites da festa. E quisemos fazer um teatro com a “malta” jovem da comissão de festas para angariar fundos. Então escolhemos mas consultámos primeiro a Sociedade Portuguesa de Autores para podermos levar à cena aquilo que queríamos. E... 10.000$00 nos informou a SPA que seria a taxa a pagar. 

Dez contos! Vai lá vai…

Rejeitado tão dispendioso projecto, meti mãos à tarefa de tentar escrever algo em substituição daquilo que tínhamos pensado ensaiar. Foi assim que nasceu o "drama" “Coisas que acontecem". Então, com a imprescindível ajuda de uma senhora maravilhosa que nos ensinou canções antigas e danças folclóricas regionais, nasceu uma memorável noite de teatro e variedades que caiu no goto da gente da aldeia e tivemos que repetir, repetir, repetir. Consequentemente, os lucros a favor da festa, triplicaram também.

Alguns anos depois, mercê das políticas da integração de Portugal na União Europeia, a fronteira deixou de existir, o caminho de ferro deixou de ser necessário também e encerrou, as pessoas que trabalhavam nessas áreas tiveram que buscar outros rumos. Obviamente, a aldeia começou a definhar. Casas vazias em todas as ruas também por isso desertas, ficámos meia dúzia de “carolas”residentes a lutar para que “isto”não morra tudo.  Assim, por não haver rigorosamente mais ninguém que o queira fazer, senti-me no dever de assumir o papel de “maestro” no coro da paróquia para, fazendo uso do pouco que sei, animar, e, sobretudo, dignificar, as celebrações religiosas do ano inteiro.

Não é fácil porque somos cada vez menos. Mas eu sou lá capaz de desistir seja do que for, enquanto puder? Eis porque apareço por aí à frente dessas coisas em algumas fotos que se publicam nas redes sociais, comadre Adriana. Não sou cantor, não sou autor, não sou maestro coisa nenhuma. Sou apenas um Beiranense que não se rende…

José Coelho
22jul’19

domingo, 21 de julho de 2019

Excelente reflexão para esta tarde de domingo...

Foto - José Coelho

A origem de muitas das nossas decepções é pensarmos que os outros farão por nós aquilo que nós fazemos por eles. Esperamos sempre a mesma sinceridade, o mesmo respeito e a mesma reciprocidade. No entanto, isso nem sempre acontece. Os valores que nos definem a nós não são os mesmos que vivem na mente dos outros.

Uma maneira simples de encontrar a felicidade pode residir no acto de minimizar as nossas expectativas. Quanto menos tu esperares, mais poderás receber ou encontrar. É certamente um argumento um tanto controverso, mas não deixa de ter a sua lógica.

"Não esperes nada de ninguém, espera tudo de ti mesmo, desse modo o teu coração irá sofrer menos decepções.”

Todos nós sabemos que no que diz respeito às nossas relações é impossível não ter expectativas. Esperamos que os outros tenham certos comportamentos e desejamos ser respeitados, defendidos e valorizados. Agora isso não impede que, por vezes, estas previsões falhem. 

Quem espera muito dos outros, geralmente acaba ferido.

Ninguém erra ao procurar ver sempre o lado bom das pessoas. Temos o direito de vê-lo, encontrá-lo e até mesmo promovê-lo, mas com alguma cautela. Porque a decepção é a irmã das expectativas elevadas, é mais apropriado não se deslumbrar antes de tempo.

As aparências não nos costumam enganar, o que muitas vezes costuma falhar são as nossas próprias expectativas sobre os outros. Podemos esperar muito dos demais mas o certo é esperar sempre mais de nós mesmos.

Para te ajudar a deixar de esperar muito das pessoas ao teu redor, lembra-te do seguinte: Ninguém é perfeito. Nem sequer nós mesmos. Se fôssemos agradar às expectativas que os outros têm sobre nós, viveríamos stressados e infelizes. Por vezes é impossível, ninguém é um exemplo de perfeição ou de virtude absoluta. Basta respeitar-mo-nos uns aos outros e exercer a reciprocidade da forma mais humilde possível.

Aceita que nem sempre temos que receber algo em troca. Às vezes o melhor é aceitar que os outros são como são e que nem sempre vão fazer por nós aquilo que nós estaríamos dispostos a fazer por eles. E, claro, existem sempre aquelas pessoas que simplesmente não valem a pena. Que não nos respeitam nem nos merecem ter na sua vida.

Nesses casos é necessário desapegar-mo-nos, por mais difícil que possa ser. Para concluir: quanto menos esperamos, mais surpresas podemos ter. Dessa forma seremos um pouco mais livres e a nossa felicidade será menos dependente do comportamento dos outros.

Somos todos falíveis, somos todos seres maravilhosamente imperfeitos que tentam viver num mundo onde, por vezes, decepções caóticas são inevitáveis, mas no qual também habitam o amor sincero e amizades duradouras.

Valeria Sabater

quinta-feira, 18 de julho de 2019

É isto mesmo...

16.07.19


Quantos anos tenho?

Tenho a idade em que as coisas são vistas com mais calma, mas com o interesse de seguir crescendo.
Tenho os anos em que os sonhos se começam a acariciar com os dedos e as ilusões se convertem em esperança.
Tenho os anos em que o amor, às vezes, é uma chama intensa, ansiosa por consumir-se no fogo de uma paixão desejada. E outras vezes é uma ressaca de paz, como o entardecer numa praia.
Quantos anos tenho? Não preciso de um número para marcar, pois os meus anseios alcançados e as lágrimas que derramei pelo caminho ao ver as minhas ilusões despedaçadas… Valem muito mais que isso
O que importa se faço vinte, quarenta ou sessenta?!
O que importa é a idade que sinto.
Tenho os anos que necessito para viver livre e sem medos.
Para seguir sem temor pelo trilho, pois levo comigo a experiência adquirida e a força dos meus anseios.
Quantos anos tenho? Isso a quem importa?
Tenho os anos necessários para perder o medo e fazer o que quero e o que sinto.


José Saramago

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Um dos meus poemas favoritos...

O Ribeiro da Beirã sem pinga d'água - Foto José Coelho

Na ribeira que secou
Bebia o gado que eu tinha;
Quando chegava à noitinha,
A voz das águas chamava,
E o rebanho que pastava
Deixava os tojos e vinha.

Eu próprio molhava as mágoas
Na pureza da nascente;
Metia as mãos docemente
Na limpidez da frescura,
E as caricias da corrente
Davam-me paz e ternura.

O gado, farto, bebia;
E eu deixava-me correr
Naquele suave prazer
Que me levava consigo...
Eu não tinha que fazer,
E o gado tinha pescigo.

A noite, então, vinha mansa
Cobrir a lã das ovelhas;
Era um telhado de telhas
Furadas ou embutidas
De luzes muito vermelhas
Por todo o céu repartidas.

E aquela viva irmandade
Do rebanho e do zagal
Era ali tão natural
Que apagava dos sentidos
A saudade do curral
Feita de sono e balidos.

Mas a ribeira secou.
Não sei que praga lhe deu
Que no leito onde correu
Há pedras e maldição...
E o meu rebanho morreu
De sede e de mansidão.

Coimbra, 20 de Maio de 1943
Miguel Torga

O pastor de palmo e meio..

Foto José Coelho


Final do verão de 1963. Terminada a instrução primária e já com o diploma da quarta classe acondicionado na gaveta da cómoda onde a tia Florinda Lourenço guardava numa caixa os papéis importantes da família – a sua cédula de nascimento e a dos filhos, a cédula de nascimento e a caderneta militar do marido, a caderneta predial da casa e mais alguns – não havia vagar para mais brincadeira com a malta da minha idade porque era chegado o tempo de começar a ajudar nas despesas da casa. A vida era dura, o dinheiro escasso, todos os tostões eram por isso bem-vindos.

Nessa altura já a minha irmã Adelina, a mais velha, trabalhava há três anos como aprendiza na Alfaiataria Barradinhas – instalada onde noutro tempo fora a Conservatória do Registo Civil da Beirã e o Conservador era o senhor Graça – a ganhar cento e cinquenta escudos por mês. E eu não era nem mais nem menos que ela. Por isso logo no dia seguinte ao do exame que ditou o fim da minha formação académica, o meu pai “ajustou-me” de pastor na casa do ti Zé Maroco e da ti Olímpia, aquele simpático casal de agricultores que moravam junto à ponte da Beirã onde todas as tardes as senhoras iam buscar leite de vaca acabado de ordenhar.

Cinco mil réis por dia também. Devia ser a tabela para os aprendizes porque foi a jorna mensal combinada entre o patrão e o meu pai. Exactamente a mesma que a mana Adelina ganhava a costurar os fatos de homem no Senhor Barradinhas. Não sendo muito, cinco mil reis por dia dava para comprar um pão e metade de outro pois nessa altura cada um custava três mil réis com trinta centavos que toda a gente abreviava dizendo apenas “três mil e trezentos”. O ti Zé Maroco apascentava as vacas turinas, ordenhava-as e cuidava do asseio do estábulo, a ti Olímpia distribuía o leite e cuidava dos seus muitos afazeres domésticos entre os quais a minha merenda.

Eu passei a ser o aprendiz de pastor. Pacientemente – porque era muitíssimo boa pessoa – o ti Zé Maroco ensinou-me a mudar o bardo logo à primeira hora da manhã assim como todos os caminhos e tapadas por onde eu teria que pastorear o rebanho, que, não sendo muito grande, também não era muito pequeno. Seriam para aí umas trinta cabeças, mais coisa menos coisa. E lá ia eu de bornal às costas aviado com um quarto de pão, uma pequena marmita com toucinho e farinheira fritos, uma fatia de queijo duro e uma córna com azeitonas, para o almoço e para a merenda.

Já nesse tempo gostava muito de ler, por isso à merenda que a ti Olímpia metia no bornal eu juntava sempre algum livrito para ler enquanto as ovelhas pastavam. Uma coboiada emprestada pelo Zé Gonçalves ou por outro amigalhaço qualquer da minha idade, às vezes um calhamaço mais avultado dos que me emprestavam na biblioteca itinerante Calouste Gulbenkian que vinha todos os meses à Beirã para esse efeito. Tudo corria muito bem até um final de tarde em que estávamos, rebanho e pastor, nos confins do isolado Monte Velho, bastante longe da aldeia.

Ao início da tarde começaram a surgir no céu vindos dos lados dos Carvalhos de Roque uns limbos negros e ameaçadores de trovoada que depressa cobriram todo o céu.  Não sei porquê sempre tive – e tenho ainda – pavor das trovoadas. Bem comecei logo a rezar a“santa Bárbara bendita que no céu estás escrita com papel e água benta livra-me Senhor desta tormenta...” ensinada pela minha avó Amélia, mas não me sossegou nada. Normalmente eu ficava sentado no cimo de uma pedra a ler enquanto ia vigiando o rebanho mas naquela tarde fugi imediatamente para perto das ovelhas para me sentir um pouco mais acompanhado.

Não tardou que os relâmpagos começassem a cruzar ininterruptamente as negras nuvens com o consequente ribombar dos trovões. E eu já quase a chorar aterrorizado sem saber o que fazer. De repente um clarão enorme, um zumbido arrepiante e um raio atingiu um grande sobreiro a uns duzentos ou trezentos metros do local onde eu estava mais as ovelhas, queimando-o de cima a baixo. O estrondo do impacto na árvore e o trovão ensurdecedor que se seguiu foram medonhos. Mijei-me de medo. Não havia mais que pensar. Reuni atabalhoadamente as ovelhas e obriguei-as a fazer correndo todo o percurso do Monte Velho até ao bardo que estava na tapada do ribeiro junto aos Três Castanheiros. Não seriam mais de quatro horas da tarde mas parecia noite.

Fechei o rebanho no bardo e corri para casa onde a essa hora não havia ninguém porque os pais estavam no seu trabalho, a irmã mais velha na alfaiataria e as mais novas na mestra. Escondi-me debaixo da cama e só de lá saí quando deixei de ouvir trovejar. Claro que não contei nada a ninguém. O pior foi que o ti Zé Maroco, o patrão, passou pelo caminho do ribeiro com as vacas turinas a caminho da ordenha e viu o rebanho já fechado no bardo a meio da tarde. A trovoada já soava longe e as ovelhas precisavam de pastar até ao anoitecer como nos outros dias, obviamente.

Na manhã seguinte, muito enxuto e comprometido, apresentei-me ao serviço antes do nascer do sol como era costume. Tinha à minha espera com cara de poucos amigos um ti Zé Maroco que na véspera tivera que deixar a ordenha das vacas a cargo da ti Olímpia para ir soltar e guardar as ovelhas até anoitecer, enquanto eu me escondia da trovoada debaixo da cama. E perguntou-me:

- Aonde foste ontem Zé Manel?
- Tive medo da trovoada e fugi para a minha casa. Respondi com verdade.
- Pois podes voltar para a tua casa que aqui já não tens mais que fazer!

Fui despedido.

Desolado e bastante inquieto com o que ia ser a reacção do ti Pixorra quando soubesse, e, pior um pouco, a da ti Florinda, por que essa então tinha uma mãozinha muito pronta e sempre lampeira para acertos contas. Entreguei o bornal da merenda que com o cagaço que apanhei nem havia comido toda.  Tinha só onze anos feitos em Março mas naquele tempo a tenra idade não era motivo para desculpar o que quer que fosse. 

Deste relato existe até hoje uma testemunha. Lá se encontra ainda, na parede do caminho quase ao pé da cancela de ferro da Tapada do Monte Velho, o toco que resta do sobreiro atingido naquela tarde pelo raio. Já o mostrei aos meus filhos e esposa a quem contei, em primeira mão e há bastante tempo, esta história verídica...

José Coelho
17jul’19

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Lar, doce lar...

Foto - Pedro Coelho

Gosto da minha casa. Mal o dia começa a clarear por volta das cinco e meia, imediatamente ilumina todas as divisões. Estrategicamente concebida pelo senhor meu pai com a frontaria voltada a poente e a traseira a nascente, ficaram por isso as sólidas empenas voltadas uma a norte e a outra a sul para melhor resguardo dos frios de neve ou dos ventos suões. Mais tarde quando a comprei e ampliei, fiz questão de aproveitar ao máximo a luminosidade do dia e planeei amplas janelas que a inundam de luz de ponta a ponta.

Assim, desde que nasce o sol até que o lusco-fusco o apaga, apesar das robustas venezianas, todo este meu reino de harmonia e paz é abençoado pela sua luz bendita, fonte de toda a vida. Nem as persianas internas das enormes vidraças nem os seus cortinados conseguem impedi-lo de entrar. Pelo contrário, a função de todo o conjunto é criar um agradável ambiente de semi-obscuridade, de uma frescura e aconchego inigualaveis. Cada pormenor da pequena casa original foi imaginado e concebido pelo meu pai. Cada pormenor deste casarão em que eu a transformei na sua inevitável ampliação, foi imaginado por mim.

Eis porque lhe assenta tão bem o seu nome próprio inventado por mim em honra do meu Pai e aprovado pelos meus filhos seus legítimos herdeiros. Nada na minha vida foi alguma vez por acaso. Nada. Tudo teve sempre um motivo, uma razão, uma causa, um sentido. É verdade que ficar com esta casa não foi ideia minha. Quando o meu pai se apercebeu que eu andava já em vias de negócio com outra aqui na aldeia, chamou-me à parte para me dizer:

- Mas que andas tu a fazer?

- Ando a ver de casa para comprar! Respondi-lhe.

- A tua casa é esta. Sentenciou peremptório. E prosseguiu.

- O teu cunhado – um deles – já se mostrou interessado em ficar com ela, mas eu disse-lhe logo que não, porque quero que a casa seja para ti.
Fui completamente apanhado de surpresa. Nunca havíamos falado tal coisa e muito menos imaginava que já haveria um candidato à aquisição dos bens porque era suposto os seus e meus queridos proprietários ainda terem muita vida para viver. Jamais fora equacionada sequer tal hipótese. Ainda assim, contestei:

- Pai fico agradecido pela sua vontade mas não posso ficar à espera que o Pai e a Mãe nos deixem para comprar uma casa. Moro actualmente numa do Estado à qual tenho direito pelas funções que desempenho. Mas no dia em que deixar de exercer essas funções dão-me trinta dias para sair. E quando esse dia chegar quero ter já a MINHA casa para nos acolher. A mim, à minha mulher e aos meus filhos. E por isso ando à procura.

Entendeu o meu Pai perfeitamente as minhas razões. Mas não desarmou da sua ideia e no mesmo momento decidiu o que iria imediatamente fazer. E fez. Convocou um jantar de família com os quatro filhos, os três genros, a nora e todos os netos, para literalmente “determinar” o que queria fazer. Vender a casa ao filho pelo – na altura era bastante – valor de 600. 000$00 – seiscentos contos. Eu teria que pagar a cada irmã a quantia de 150. 000$00 – cento e cinquenta contos – ficando, obviamente, com a minha parte. Para ele Pai e para a nossa Mãe, só punha uma condição. Morarem connosco enquanto vivessem. Todas essas condições foram apenas verbais. Na nossa família desde os mais remotos antepassados valeu sempre mais a palavra dada do que qualquer escritura de notário. Assim se disse, assim se cumpriu.

Nenhuma das minhas irmãs e cunhados se opôs às decisões e condições do querido e respeitado patriarca e em poucas semanas foram marcados os actos oficias necessários à compra venda e mudança de proprietário. E foi assim que, sem nunca sequer ter imaginado tal coisa, me tornei no novo dono das paredes que assistiram ao meu nascimento e das minhas duas irmãs Maria da Luz e Joaquina Maria – porque a Adelina já tinha nascido quando a casa ficou pronta – assim como foi também entre as mesmas que o pai do meu pai o Avô Faustino Coelho, ele próprio meu querido Pai, e também a mãe da minha mãe, a Avó Amélia, partiram para a sua última viagem.

Aqui se mantêm por isso guardadas as minhas mais queridas memórias pois tive o cuidado de não tocar em uma só pedra das divisões originais da casa quando se procedeu à sua ampliação. Aqui se escreveu grande parte da minha vida e dos meus entes queridos. Se dependesse de mim, aqui gostava de terminar algum dia o percurso que iniciei na fria madrugada de um já longínquo março. Mas isso é de todo imprevisível nos tempos que correm. Com um bocadinho de sorte talvez não termine sozinho numa maca nos corredores do serviço de urgência do hospital de Portalegre e tenha a sorte de, pelo menos, terminar este meu percurso noutra madrugada de outro frio março ou abril, no conforto de uma cama da Santa Casa da Misericórdia de Marvão…

José Coelho
15jul’19

sexta-feira, 12 de julho de 2019

As “Encelências” que me contou (e cantou) minha Mãe ...

Foto - Maria Coelho

Sentados os dois na varanda do primeiro andar numa manhã de meados de primavera. Eu a ler um dos meus romances, ela com o inseparável Bolinhas sobre o colo. Gostavam imenso um do outro. Toda a sua vida tinha sido amiga dos animais que sempre houve em nossa casa. Cães, gatos, galinhas, patos e até uma cabrinha que morreu afogada pela corda onde ficara presa na horta enquanto o meu pai veio almoçar e cuja morte causou tal desgosto que nunca na minha vida o vi chorar como nesse dia.

Também o inteligente caniche Bolinhas parecia perceber que a sua amiga velhinha era cega e necessitava ser protegida. Cada vez que uma vizinha ou amiga vinha visitá-la, assim que se aproximava dela para lhe dar um beijinho, o Bolinhas rosnava um aviso como que a dizer-lhe “não te aproximes mais”. E quando elas se abraçavam nas suas efusivas e amigas saudações ele desatava a ladrar zangado apesar de eu tentar acalmar a situação dizendo-lhe: - Não faz mal, Bolinhas, é amiga!

Nesse ano a quaresma fora tardia e a Páscoa quase por finais de abril. Toda a natureza brotava pelas redondezas emanando odores balsâmicos. As giestas em flor, as laranjeiras e limoeiros do laranjal em frente da nossa casa, as flores dos canteiros do quintal, a trepadeira e vasos floridos da varanda em nosso redor. Uma suave brisa fazia balançar os cachos em acelerado crescimento na latada e ao longe ouviram-se as badaladas do sino a dar as onze horas.

- Que dia é hoje, filho? Perguntou-me.

Estávamos no final da quaresma desse ano. Tomei nota disso porque escrevi e guardei-o para nunca mais esquecer o que ela me contou e eu escutei nesse dia com a maior atenção. 

Começou assim:

- A gente dantes não ia à missa e não era por falta de fé mas porque o domingo era o único dia de descanso semanal. As mulheres tínham que aproveitar para lavar e remendar a roupa, fazer limpeza e dar uma arrumadela nas casas, enquanto os homens tinham que ir tratar das hortas para preparar as sementeiras das hortaliças que metíamos na panela toda a semana para alimentar a família. Mas nem por isso deixávamos de ser devotos.

Parou um bocadinho absorta nas suas memórias e continuou:

- Quando andávamos a mondar, no Matinho, depois do almoço todos os dias enquanto durava a quaresma tínhamos que cantar as “Encelências”. Antes de começarmos, a primeira coisa que se fazía era benzermo-nos como se estivéssemos numa igreja. Depois do sinal da cruz toda a gente ficava calada. E começava a cantar a mondadeira de um dos extremos do rancho:

1 – Ó Avé Maria, cheia de Acções de Graças
Senhor é convosco, Bendita Sois Vós

E respondia a mondadeira do outro extremo:

2 – Entre  as mulheres, bendito é o fruto
De o Vosso ventre, que nasceu Jesus

Prosseguiam depois, à vez, de um e do outro extremo:

3 – Mas Santa Maria, Santa Mãe de Deus
Rogai Deus por nós, Mãe dos pecadores

4 – Agora e na hora, de a nossa morte
Ó amén Jesus, Maria, José

5 – Maria , José, lindo nome é
Salvai a minh’alma, que ela vossa é

6 – Que ela vossa é, sempre o há-de ser
A Virgem Maria, nos há-de valer

7 – Nos há-de valer, com todo o valor
Rainha dos Anjos, com seu resplendor

Esta sequência de sete versos  era cantada doze vezes seguidas e era um grande pecado se fosse interrompida. Terminada a repetição do sétimo verso pela décima segunda vez, dava-se ínicio a outra sequência das “Encelências” composta só de quatro versos repetidos seis vezes que se chamava:

“A OFERECER”

1 – Uma Encelência que eu tenho rezado
Também a ofereço, a Jesus louvado

2 – Duas Encelências que a Virgem tivesse
Senhora da Graça, que graça nos deste

3 – Ó almas benditas lá no Purgatório
Que estão esperando por este editório

4 – Ó almas benditas que lá estão esperando
Pelas Encelências que estamos rezando

Enquanto durava o cantar e devia ser quase toda a tarde pois feitas as contas, doze vezes sete versos, mais seis vezes quatro versos, dá a soma de – 108 – cento e oito, o  sossego era tão grande que só se ouvia a voz da mondadeira que cantava e o barulho dos sachos a abrirem a terra. Parecia até que os pássaros se calavam também...

Tão enleado fiquei na sua narrativa que quase tive a sensação de estar “a ver” as mondadeiras em linha no meio do trigo e “a ouvir” o som dos sachos que me é tão familiar pelas minhas sachadelas pelo quintal. O Grupo de Cantares da Beirã que fundei em 1994 e se extinguiu por falta de “quorun” – uns faleceram, outros foram embora para outras paragens  quando a estação fechou – ainda cantou estas “Encelências” que encantavam os nossos ouvintes mais idosos porque naturalmente lhes fazíamos recordar a sua idade de ouro. Conheço muito bem a nossa fala raiana e sei que "Encelências" quer com toda a certeza dizer "Excelências" ou o modo como a gente simples destas terras trata as pessoas importantes. 

Como Jesus, Maria e José, por exemplo!

Obrigado Mãe Florinda pelo muito que me ensinaste. Aqui transcrevo um pouquinho hoje e publico em tua memória.

José Coelho
12jul’19