Foto José Coelho
A principal fonte de aquecimento durante o inverno em minha casa é o lume de lenha, no solo de uma bela lareira da nossa sala de estar, situada desde a sua remodelação onde anteriormente se situava a cozinha dos meus pais, quase, quase, no mesmo sítio daquela sua anterior congénere alentejana que tão bem nos aqueceu sempre, nos longos e gelados invernos de antigamente.
Feita por encomenda e medida, de granito branco primorosamente esculpido por sábias mãos de uma célebre família de canteiros de Gáfete, tenha embora um ar algo mais fino e elegante, é tão eficiente como a sua rústica antecessora. E tal como ela nunca expeliu qualquer fumo para fora da sua zona de combustão, por mais insignificante que fosse. Para certificá-lo basta observar as paredes da sala de uma brancura imaculada, o que não seria possível se houvesse fugas indesejadas de fumos, por mínimas que fossem.
Herdei dos meus pais e avós este gosto pelo lume de chão ao vivo e ao natural. E estou convicto que os meus dois filhos o herdaram também, pois, tal como o pai, não o trocam por quaisquer outros aquecimentos mais modernos e menos geradores de cinzas ou sobrantes.
O hábito faz o monge? Talvez. O meu avô José Lourenço (de quem herdei o nome) não dispensava sentar-se ao seu lume durante todo o outono e inverno, entrando até muitas vezes pela primavera dentro. E à minha avó Amélia, nunca lhe conheci qualquer fogão ou fogareiro, fosse a carvão, a petróleo ou a gás. Tudo o que cozinhava (e que comidinhas tão saborosas fazia) fosse inverno ou verão, era sempre em lume de lenha, na sertã ou nas panelas e tachos de barro.
Por seu lado, mal se mudou para a nossa casa aos 80 anos para viver connosco até ao fim da sua vida, o avô Faustino, pai do meu pai (não conheci a minha avó Adelina porque faleceu antes de eu a poder conhecer) imediatamente marcou, como território seu, o canto direito da chaminé com o seu banquinho de madeira, já que o outro, o esquerdo, foi toda a vida o canto do lume do dono da casa e meu saudoso pai.
Um de um lado, outro do outro, não causavam porém qualquer problema, porque o espaço entre os dois era mais que suficiente para lá cabermos ainda todos, já que a chaminé ia quase de canto a canto da cozinha, tendo sido deixado apenas espaço para uma pequena despensa. Era aquela a zona vip da casa. Ali cozinhava a minha mãe todas as nossas refeições e ali se reunia a família todas as noites para se aquecer e confraternizar num harmonioso aconchego, conforto e paz, geradores de uma concórdia e felicidade indescritíveis.
Quando cada um de nós, os quatro irmãos, constituímos as nossas próprias famílias pelo matrimónio, levámos connosco, obviamente, aqueles hábitos simples e saudáveis. E mais tarde, os nossos filhos, também. Eu não troco o lume na lareira por nenhum outro aquecimento. Há lá melhor calorzinho que este? Assim que a gente entra em casa vindo do cortante frio da rua, é como que entra para o céu. Somos acolhidos por um ambiente tão confortável e naturalmente aquecido que é capaz de revigorar qualquer espírito por mais gelado que venha.
Os meus filhos, idem. O Pedro com a esposa e a filha vivem num agradável apartamento de uma grande cidade, mas têm também na sua bonita sala de jantar uma excelente lareira aberta com lume de chão não muito diferente da minha e que acendem diariamente durante todo o inverno. E o filho Manel também, pese embora a dele seja fechada com uma porta de vidro, daquelas que aproveita o calor da combustão ventilando-o simultaneamente para a sala e para os quartos no primeiro andar, aquecendo assim toda a casa.
- Gosto do cheiro...
Comentou, recentemente, uma vizinha e querida amiga, num post que publiquei no facebook no dia 1 de Novembro pp com a imagem da minha chaminé a fumegar ao vento. A mesma que ilustra hoje esta crónica. Entendi imediatamente que aquele "gosto do cheiro", não significava gostar de cheirar o fumo, mas, obviamente, do cheiro a lume e implicitamente a conforto, que o vento espalha sempre pelo ar.
Só poderia ser esse o sentido.
O "gosto do cheiro" que a minha estimada vizinha comentou e eu subscrevi na íntegra é, para além das palavras em meu entender, um sentimento muito mais profundo. Aquele "gosto do cheiro" é algo que habita na nossa memória e refere-se ao odor da lenha a aquecer todos os lares habitados com lareiras acesas que se disseminava pela aldeia inteira quando ela era fervilhante de vida e de gente, noutros tempos.
Refere uma realidade que aos poucos se tem extinguido.
E significa para mim, entre muitas outras coisas, a vida que vivi. A saudade imensa de um tempo que se foi. Os vizinhos, amigos e conterrâneos que fizeram parte do que hoje sou. Finalmente e mais do que qualquer outro sentimento, significa a minha família, e, pelo meio, a que já partiu e não voltarei a ver enquanto viver.
Que ao menos esse fumo branco e sinal de vida que sai da minha chaminé em cada inverno, leve com ele o amor que continuo a sentir por todos eles e suba tão alto, tão alto, que consiga alcançá-los onde eu sinceramente acredito que se encontram e um dia, já não muito longínquo, voltaremos a estar novamente todos juntos. Para sempre.
José Coelho