quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Contos da lua cheia...

A minha lua de barro a esconder-se na trepadeira da varanda.  

Gosto da lua. E a prová-lo, tenho duas réplicas dela cá em casa. A de barro que ilustra este escrito e outra mais sofisticada a sorrir para três estrelas no outro lado do "seu" céu, num espelho dourado pintado à mão que tem por função compor a chaminé da lareira na nossa sala. Nunca tive receio dos lobisomens ou dos vampiros que ressuscitam nas noites de lua cheia e se alimentam de gente. Pelo contrário. Sempre adorei passear à sua límpida e suave luminosidade que faz a noite parecer dia e conseguir vislumbrar-se quase tudo até ao longe. Cresci a saltar pedras e barrancos à sua luz, primeiro na "retouça" quando gaiato, depois a fazer alguns biscates de contrabando já zagal, e, por fim, nas visitas semanais a casa das namoradas antes de ir p'ra tropa. 

Era muito bom poder ver onde punha os pés nessas noites de namorico quando tinha que atravessar tapadas e canchais desde a Beirã até aos Cabeçudos, ou até aos Aires, ou até à Torre para lá do Pereiro. É verdade que já nesse tempo havia as estradas que há hoje embora não tão boas, mas caminhando pelos "atravessos" que havia por toda a parte, tornava os percursos bem mais curtos e menos cansativos, porque a brincar a brincar, eram sempre alguns quilómetros para calcorrear. 

Posso afirmar com quase cem por cento de certeza que o senhor Conde Drácula e a sua Transilvânia não seriam por aqui ainda conhecidos naquele tempo. Já os lobisomens sim. Havia até por cá alguns pobres de cristo que, coitados, por serem feios ou mal encarados, ou por terem mais mau feitio, ganhavam fama de o serem. Eram por isso olhados de lado e esconjurados pelas más línguas, que, essas sim, deviam ter pacto com o demo para lhes infernizarem a vida com a sua coscuvilhice maldosa. Havia também por aqui muitas outras histórias de medos, com ou sem culpas da lua.

Por exemplo aquela da galinha com pintos que "aparecia" nas proximidades do cemitério e que seriam um bando d'almas penadas a pedirem rezas às pessoas que por lá passavam. A propósito disso, uma bela noite, quatro e tal de uma madrugada enluarada na trincheira da estrada depois das Chorilhas, vinha eu de ter ido levar a moça a casa no fim de um baile, quando ouvi um estranho resmalhar. Ressshhhh.... Ressshhhhh... Depois aquilo parava. E eu parava também. Não com medo, mas intrigado, decidido a ver e a entender que raio era aquilo. Uma rabanada de vento e outra vez... Ressshhhh... 
- Mau! Pensei. 
Com alguma ironia (porque sinceramente não acreditava na tal "história") brinquei: 
- Q'ués ver qué a galinha c'os pintos? 
E mentalmente, continuando a brincar com a situação, chamei: 
- Pipi... pipi... pipi... 
Conforme via a minha mãe fazer a chamar as nossas galinhas para lhes dar o milho. 

De súbito e enquanto eu cogitava naquelas parvoíces todas, um novo ressshhh... quase, quase, ao pé de mim. Olhei. Prestei atenção. E vi. E percebi. 
E...

- Eureka! Pensei para comigo.
- Tal é cá o misterioso "resmalhar"?
- Homessa!
- E assim se inventa um medo...

Eram apenas algumas folhas secas dos enormes choupos que ladeavam naquele tempo a estrada. Era outono, as árvores estavam a desfolhar-se. As folhas encarquilhadas, secas e levadas pelo vento, ao serem arrastadas pelo alcatrão, faziam o estranho barulho que o silêncio da madrugada ampliava, tornando-o estranho e de certo modo inexplicável, pelo sossego da hora. Caminhei ao seu encontro e pisei-as, para me certificar. Era mesmo aquilo. Um sopro mais vivo do vento e lá atrás aprontaram-se outras irmãs daquelas que eu tinha pisado para a sua viagem sobre o alcatrão até encontrarem abrigo e se acomodarem nalguma fisga dos canchos. 

Ressshhh... Ressshhh...

Há outras histórias. Tantas histórias mais. Vou contar só mais uma. E desta ainda gosto mais. Nunca me canso de a recordar. 

Eheheh...

Foi com o meu filho caçula, o Pedro, tinha ele a idade que tem agora a sua filhota, a nossa linda Francisca. Era também uma noite de lua cheia. De Julho. E de festa na aldeia. Fomos todos ao baile. Mas às tantas, o João Pestana começou a atormentar o pequenito Pedro. O mano Manel já um homem com sete anitos, a mãe, a avó e as tias obviamente não queriam ir para a cama tão cedo. Era a festa. E só havia uma vez por ano. 

- Sem problema, filho. O pai também já lhe tá a apetecer ir deitar-se... Vamos embora os dois!

E de mãos dadas, lá viemos tagarelando até casa. A porta da frente ficara fechada à chave, mas a porta da cozinha no quintal ficara só ao trinco, já prevendo que alguém precisasse vir fazer alguma coisa. Abrimos a cancela que dava acesso ao quintal, contornámos a casa e...

- Upssss... 

Uma sorrateira visita foi apanhada em flagrante!

Passo a explicar melhor:

Em casa dos meus progenitores sempre houve animais domésticos. Cães, gatos, aves de capoeira, suinos para a matança e até uma cabrita que seguia o meu pai para todo o lado como se fora um cão. Era por isso comum, a nossa convivência com essa bicharada toda. Mas não só. Como o nosso quintal faz a sua divisão com as tapadas cheias de canchos e matos que se estendem por aí fora até Espanha, é normal vermos alguns animais selvagens do outro lado da parede. 

Raposas e saca-rabos, tourões ou texugos, javalis, e até mesmo já uma vez um veado aqui chegou porque deve ter fugido da reserva de caça do Tira-calças do outro lado do rio. Criada e toda a vida mulher do campo, a minha mãe amava e protegia tudo quanto fosse "um ser vivente" como ela lhes chamava. E apercebendo-se certo dia de uma raposita a rondar a parede do quintal cheia de fome, começou por lhe atirar alguns restos de comida e passou pouco depois a deixar-lhe um caneco com o jantarito na varanda do quintal passando a sortuda raposita a fazer parte dos cuidados diários da minha mãe que nunca ia para a cama sem ali deixar o jantar da sua vizinha.

Naquela noite, a da festa, não sabendo nada do baile nem do soninho do Pedro, a raposa degustava tranquilamente o petisco que a amiga Florinda ali lhe tinha deixado. De súbito e inesperadamente surgimos nós na entrada da varanda. Eu vi-a logo, porque o luar banhava por completo todo o quintal. A raposa viu-nos também, mas, apesar de ali ir jantar todas as noites, não era dada a confianças. E não tinha mais por onde fugir senão por onde nós entrávamos. De um pulo atirou-se por entre as nossas pernas provocando-me na pressa um arranhão no tornozelo. O Pedrito deu um grito sem perceber o que era aquilo, nem o que estava a acontecer. 

A raposa saltou lesta para a tapada e desapareceu no mato. Abri a porta de casa e acendi a luz da varanda. O arranhão na minha perna, feito pelas unhas da nervosa vizinha, sangrava ligeiramente. Comentei com o pequenito:
-  Foi a raposa. Arranhou-me, a magana! Viste-a, filho?

Resposta pronta:

- Vi sim, pai. Era branca...
- Branca? Perguntei divertido.
- Branco ficaste tu com o susto, meu tontinho. Vamos mas é para a cama que são horas...

Um dia destes, quando me lembrar, contar-vos-ei mais coisas da lua cheia. Até lá sejam felizes, que a vida é curta. Ah! Faltou dizer apenas que, ainda hoje, já meio gasto pelo passar de tantíssimas luas, continuo a gostar muito de me sentar na varanda a olhar para a tapada quando ela está toda banhada pelo luar. Nas noites geladas do inverno então parece que o seu brilho é ainda mais intenso e quase por magia os cristais da geada refletem-no como se fossem diamantes...

José Coelho