quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Lugares, usos e costumes, que povoam a minha memória

A casa, o estábulo e a eira da Meirinha 
Foto José Coelho
O lugar da Meirinha fica para lá da Murta, a seguir à Anta e quase encostada à Estrada da Herdade como a gente por aqui lhe chama. Foi moradia de famílias durante décadas. A última, lembro-me bem apesar de ser ainda cachopo, foi a família do Senhor João Alexandre e da Senhora Maria José Viegas mais os seus filhos. O Senhor João trabalhava à jorna na Beirã e a esposa tinha de vir a pé trazer-lhe o almoço todos os dias. Como os filhos eram pequenos, não devia ser fácil para a senhora pois o lugar dista ainda uns bons dois quilómetros. Por isso, assim que arranjaram casa, mudaram-se para a aldeia. E depois que essa família de lá saiu, não me recordo de morar lá mais ninguém.
Já agora um pouco de história social, ainda que reduzida, à dimensão dos meus conhecimentos. Chamava-se "à jorna" o trabalho que era pago ao dia sem qualquer outro vínculo que não fosse apenas os dias e ordenado "ajustados" pelas duas partes, trabalhador e patrão. Tanto podia ser um dia só, como uma semana, ou duas ou três, dependendo do tempo necessário para a execução do serviço. Normalmente eram tarefas exclusivamente agrícolas e sazonais. Cavar ou semear um quintal, uma horta ou uma vinha, arrancar ou colher legumes, sachar um jardim ou uma belga de qualquer coisa, ceifar uma seara, gadanhar feno de alguma tapada.
Por sua vez os trabalhadores com vínculos mais duradouros recebiam ao mês, não só o ordenado combinado com o patrão como também as "comedias" por ambos ajustadas. Não confundir com comédias. Eram mesmo "comedías" porque se tratava de "coisas de comer", géneros alimentares que eram pagos juntamente com o ordenado, do qual faziam parte integrante. A estes assalariados permanentes chamavam-se "os justos" e os ajustes destes trabalhadores eram firmados apenas verbalmente e aceites por ambas as partes, sendo tão ou mais respeitados do que são hoje os contratos de trabalho que se fazem por escrito. Tinham normalmente a duração de um ano que se iniciava e terminava de S. Pedro a S. Pedro, ou seja, de 29 de Junho do ano do ajuste a 29 de Junho do ano seguinte, sendo sucessiva e normalmente renovados por igual período de tempo enquanto as partes assim o quisessem.
O meu avô José Lourenço, bem como os seus filhos e meus tios maternos enquanto solteiros, tiveram sempre esse vínculo de "justos" e assim se mantiveram assalariados por anos sucessivos, décadas até, quase sempre por conta do mesmo patrão. O tio Chico da Silva.
Os ordenados eram pequenos pois cada lavrador pagava o que conseguia. Para compensar depois essas fracas "pagas" e serem capazes de manter por meses ou anos os guardadores dos gados, os ganhões do amanho das terras, os carreteiros das carretas de bois e os carreiros dos carros de bestas, acresciam aos ordenados as tais "comedías" que normalmente se compunham de um saco de centeio em grão para moagem e fabrico do pão - nesse tempo só os patrões comiam pão de farinha de trigo - uma almotolia com azeite, alguns litros de grão de bico ou de feijão frade - um alqueire normalmente - e dois ou três queijos secos. Sei isso, porque eram essas as "comedías" que o meu avô trazia para casa no fim do mês juntamente com a sua mesada em dinheiro, como "justo" na Herdade do Matinho, Beirã.
Logo no dia seguinte lá iam as suas mulheres de "talêgo" de centeio à cabeça a caminho dos moinhos no rio Sever para trazerem a farinha do pão que alimentava a família todo o mês seguinte. Curiosamente, as pessoas eram aparentemente felizes e não faltava trabalho a ninguém, um pouco por toda a parte. Bem diferente dos dias de hoje. Todas as casas em todos os lugares, por mais ermos que fossem, como essa da foto na Meirinha que ilustra esta prosa, eram habitadas. Não se consegue ver na imagem, mas ao lado direito da casa está também anexo um forno a lenha onde era cozido o pão. Poucas são as casas por esses campos que não têm um forno e uma eira ao lado, porque eram essenciais à sobrevivência dos seus moradores. E também uma horta com uma fonte, um tanque ou um poço nas redondezas, para abastecimento de água potável para o seu consumo e regadio dos legumes que metiam na panela para as suas refeições.
Basta-me fechar os olhos e pensar um pouco: na Murta, a eira é também muito perto da estrada antes das casas e o forno era ao lado da casa principal. Um pouco mais acima, na Anta, a eira é no cimo de uma laje e o forno em frente da casa. No Penedo da Rainha a eira faz parede com a estrada e o forno é ao lado da queijeira. Na Tapada do Cabeço a eira fica a dez metros da Estrada do Pereiro e o forno na empena da casa. No Cancho de Ruivo, na Torre, no Pereiro, na Broca, no Maxial, no Vale do Cano, no Cabril, na Bica...
Em tantos outros lugares da minha freguesia existem estas estruturas para um imprescindível apoio doméstico às antigas donas de casa, quase sempre mães de numerosas proles. Jazem hoje por aí abandonadas, quase todas em ruínas, principalmente os fornos de lenha que vão abatendo por força das intempéries e do abandono. Já as circunferenciais eiras, onde, ano após ano, foram sendo amontoados e debulhados searas e grão, porque construídas sobre o imortal granito, ficarão, como as antas ou dólmens milenares que por aí abundam também, a testemunhar pelos séculos fora os usos e costumes das humildes gentes que por estas bandas conseguiram sobreviver do que a terra dava e ser felizes com o que tinham.
Refém de memórias tão queridas, a minha alma só irá deixar de lamentar estas perdas no dia que se fecharem definitivamente os meus olhos.
José Coelho