domingo, 6 de novembro de 2022

Divagando...

A Murta, ao longe, na solitária imensidão da raia

Sentado no alto de um cancho sobranceiro à imensa raia delimitada pelo vale por onde corre o rio Sever, a circundar toda a minha freguesia da Beirã até ao termo de Castelo de Vide lá para os lados da Defesa, conheço tudo quanto a minha vista alcança. Cada canchal, cada fisga no meio deles, cada volta dos regatos e ribeiros, cada barroca e cada fonte, cada palheiro ou antiga casa de habitação. Até do outro lado do rio, em Espanha, conheço aquele casario branco lá ao longe. São as Gagas, onde o tio Joaquim - irmão mais novo do avô materno - guardava as cabras, naquela "finca" para onde eu ia passar as férias grandes com os primos António e Joaquim, ambos quase da minha idade, mas que infelizmente não poderei nunca mais voltar a abraçar.

Detenho o olhar na casinha em ruínas da avó Amélia e do avô-padrinho José Lourenço, do qual herdei o nome, ali juntinho ao ribeiro da Cavalinha. E basta-me cerrar as pálpebras para reconstruir em pensamento os dias maravilhosos que lá vivi com aquelas duas santas criaturas. Éramos tão felizes e não sabíamos! Consolava mais aquela sopinha de batatas feita ao lume na sertã e no refogado de pingo do toucinho, propositadamente frito para dele se aproveitar o unto, do que consolam os manjares modernos que hoje são tão fáceis de degustar em qualquer mesa de qualquer casa, até mesmo das mais modestas.

É tão fácil “ver” mentalmente a avó Amélia a dar os seus pontinhos nas roupas coçadas sempre a precisarem de amanho, sentada num "tropeço" de cortiça ao sol da tarde, na empena da casa, enquanto o avô Zé se afadigava nas suas artes de construir uns lindos pássaros de cortiça que moviam a cabeça e o rabo ao ritmo do pêndulo de chumbo que ele habilmente inventara para lhes dar vida e movimento… E a cerejeira enorme, carregada de cerejas pretas e doces como açúcar! E a sua vizinhança tão boa. A guarda da passagem de nível mais a família, a ti Ana do Galacho mais o filho Zé Jaquim, e um bocadinho mais à frente o ti Zé Tomé, que Deus os tenha a todos na sua glória.

Entre o matagal que agora cerca a casa, nuns restos do antigo jardim, as flores de noiva e as açucenas da avó Amélia continuam teimosamente até hoje a romper viçosas e a florir nos finais de cada inverno, indiferentes ao mato que quase as sufoca mas que elas conseguem vencer. E a cancela cor de rosa lá continua de pé. Inútil, mas firme e hirta, no seu posto. O telhado já ruiu em parte, a cozinha da casa foi vandalizada e retiradas as pedras de granito da lareira, não sei se roubadas, se com ordem do dono. Mas também quem é que quer saber de uma casa em ruínas rodeada de mato? Só eu mesmo, porque ali vivi momentos felizes e de profunda paz num tempo de enorme pobreza geral mas de muitos valores que infelizmente hoje já pouco se usam.

Mais para a direita, na solitária paisagem, o Monte da Murta. Lindo e antigo, em boa hora totalmente restaurado por uma família abastada com raízes na Beirã. E canchos, canchos e mais canchos, orlados de sobreiros, azinheiras e carvalhos, até onde a terra toca o céu, na linha do horizonte. Por aqueles canchos caminhei, muitas vezes, com contrabando às costas, a caminho da Loja espanhola do Batão ou do Bravo, do outro lado do rio. Levávamos café em grão, dúzias de ovos e outras coisas, trazíamos no regresso a casa as belíssimas "miganas" (pão espanhol) toucinho salgado, peças de louça de pirex, bombazina a metro e algum chocolatito dos mais baratos, na volta. Algumas vezes fugi na frente dos guardas-fiscais, mas aos carabineiros nunca vi. Eles sabiam que íamos levrr-lhes coisas que por lá eram escassas devido à sua guerra civil e que em troca trazíamos produtos que eles precisavam vender. 

Estou a lembrar-me daquele jarro com seis copos de vidro que era a prenda de anos para a namorada e que atirei para detrás de uma parede mal vi os guardas à nossa espera no caminho. Eram o senhor Gonçalves e o senhor Correia. Só que eles toparam-me a deitar fora o embrulho…

- O que é que deitaste fora meu malandro? Perguntou o senhor Gonçalves com ar zangado.

- Nada, nada! Respondi-lhe aflito.

Mas ele foi ver e encontrou logo o embrulho da prenda de anos já preparada pela tia Joaquina do Bravo, com o laço e tudo.

- Ó senhor Gonçalves, não me tire isso que é um jogo de copos para dar à minha namorada que faz anos amanhã! Supliquei.

E quem não chora, não mama... 

Boa pessoa, o senhor Gonçalves devolveu-me o embrulho dizendo num tom severo:

- Leva lá então isso, mas para a outra vez ficas sem ele, para não te armares em esperto…

Tantas recordações. 

Tantas e tão boas. 

Eram tempos difíceis sim, mas havia trabalho com fartura por todo o lado, toda a gente se governava. Não havia desemprego nem subsídios. Nem eram necessários. Começava-se a trabalhar mal se acabava a quarta classe na escola. Quem diria como isto era e como está hoje. Muita gente que eu ainda conheci cá nasceu, cá viveu e morreu, sem nunca daqui ter saído. Se os nossos pais e avós voltassem hoje, seguramente não iam gostar desta vida moderna, mas vazia de bons princípios e valores, nem iam ser felizes como foram no seu tempo. Como eu já não consigo ser. Este não é, de todo, o meu mundo...

José Coelho