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Piromania
Ainda
mal tinha começado o Verão de 1986 e já era o terceiro incêndio nas proximidades
de Arêz, uma das freguesias do concelho e área do posto de Nisa. As pessoas
andavam inquietas e murmuravam entre si apontando o dedo a determinado
indivíduo que “por casualidade” era sempre o mesmo a dar o alarme, o que levantava
a suspeita se não seria ele o pirómano criminoso, dado que, em qualquer deles,
as causas eram sempre indeterminadas e muito estranhas, não se coibindo os
bombeiros de afirmar que aquilo era com toda a certeza fogo posto.
Dei
indicações para que o indivíduo fosse discretamente vigiado pelas patrulhas mas
não se vislumbrava nada que pudesse confirmar as nossas suspeitas. Porém não
tardaram muitos dias para que a sirene do quartel dos soldados da paz voltasse
a fazer ouvir o seu apelo aflitivo porque havia novo foco de incêndio em Arêz.
-
Enquanto não engavetarmos o gajo, isto nunca mais tem fim; refilava o cabo que
nesse dia estava de comandante do piquete. Arrancaram ainda primeiro que os
bombeiros com indicação minha de verificarem e se eventualmente o rapaz fosse
visto nas proximidades do sinistro o trouxessem com eles ao posto para eu ter uma
conversa particular com ele.
Dito
e feito.
Como
sempre acontecera, a primeira pessoa que a patrulha encontrou já muito entretido a
combater o fogo com um ramalho verde foi o dito cujo. Cumprindo as
minhas indicações a patrulha logo informou o indivíduo que teria que os
acompanhar depois do fogo extinto pelos bombeiros que entretanto tinham também
chegado e em poucos minutos controlaram a situação, porque naquele, como nos dois focos de incêndio anteriores, os prejuízos se resumiam a
algumas centenas de metros de pasto e umas quantas oliveiras ardidas.
A
patrulha fez, como lhe competia, o inquérito sumário das causas do sinistro,
mas não chegaram a nenhuma conclusão concreta na
medida em que não havia vestígios de ninguém nas proximidades, nem queimadas de
qualquer espécie, pelo que facilmente se concluía que alguém gostava de lume,
ou de fumo, ou de ouvir as sirenes dos bombeiros. E por isso se divertia à
sucapa largando fogo aqui e além em sítios mais ou menos escondidos mas
sempre nas proximidades da povoação. Deduzia-se também que fosse quem
fosse era alguém que se deslocava a pé.
Apesar
de eu ter formada e quase certa a suspeita que seria mesmo o tal energúmeno, a
verdade é que, sem provas concretas, nada feito. Quando
muito poderia apenas ser elaborado auto de notícia contra desconhecidos e invocar o alarme social que a situação provocava na
população.
Assim,
depois de feito mais uma vez o seu trabalho no terreno, a patrulha, fazendo-se acompanhar do
suspeito regressou ao posto. Eu já conhecia bem a peça. De vista. Pela fama de
traste e não só. Assim que ele entrou no meu gabinete exclamei de súbito, para
lhe não dar tempo de raciocinar muito, como se tivesse a certeza absoluta do
que o estava a acusar:
-
Ora cá temos então o homem que anda a deitar fogo aos pastos de Arêz…
O
gajo olhou para mim muito encavacado mas não se desmanchou e logo negou. Qual
quê! Ele até era muito boa pessoa, até era o primeiro sempre a acudir e a
começar a apagar o fogo, e mais isto e mais aquilo.
Como
eu já contava com isso não desarmei e continuando num tom muito seguro,
retorqui-lhe:
-
É verdade sim senhor. Ajuda sempre. Mas acontece sempre também uma coisa estranha!
Você chega sempre primeiro que a patrulha e que os bombeiros e não tinha
tempo de lá chegar, indo a pé como você vai da aldeia!
Ia
sendo!
O tipo empalideceu ligeiramente e baralhou-se um pouco mas de
seguida recompôs-se de novo e respondeu-me com pouca convicção.
-
Sabe, hoje, por exemplo, eu estava a cagar debaixo de uma figueira ali perto
quando vi o fumo e corri logo para lá. Por isso é que cheguei primeiro que a
patrulha e que os bombeiros…
-
Ai sim? Que casualidade! Você vai cagar lá p’ra bem longe da aldeia! É para o fedor não incomodar os seus vizinhos, não é?
E
continuei:
-
Muito bem, então agora vai levar-me lá ao sítio exacto onde cagou porque eu quero ver
com os meus olhos o seu cagalhão debaixo da figueira. Só assim é que você
me convence…
Visivelmente
aflito o gajo não desarmou todavia e com a maior cara de pau afirmou:
-
Não vale a pena lá irmos pois com tanta gente a apagar o fogo já
alguém o deve ter pisado e já lá não deve lá estar…
-
Pois! Já calculava! Observei.
-
Então escolha lá você agora. Quer lá ir mostrar-me o cagalhão se o que me está a
dizer é mesmo verdade, ou quer já confessar sem mais chatices que é
você que tem andado a deitar fogo aos pastos?
O
indivíduo hesitou, pensou um bocado e concluiu:
-
Se eu confessasse uma coisa dessas ia logo parar à cadeia. Isso é que era bom…
De
parvo o tipo não tinha mesmo nada, como aliás quase todos os delinquentes. Vi
que dali não ia conseguir tirar mais e não tinha matéria suficiente para o
constituir arguido. Éramos nós nesse tempo que após reunidas as provas constituíamos
sempre primeiro os arguidos cumprindo todas as formalidades legais para os apresentarmos posteriormente ao Ministério
Público.
Mandei
por isso sair toda a gente do meu gabinete porque, à falta de provas, só me
restava uma solução. Ter uma “conversa” particular com ele, mas a sós.
E
assim aconteceu.
“Conversei”
amigavelmente com ele apenas uns cinco minutos. Depois adverti-o solenemente:
-
Passe muito bem caro amigo! Mas já sabe. Por cada fogo que houver em Arêz, você terá
que vir sempre aqui ter comigo para termos outra “conversa” igual a esta de hoje. Estamos entendidos?
Foi
remédio santo!
Não
voltou a haver fogos em Arêz…
José
Coelho in Histórias do Cota