segunda-feira, 29 de maio de 2017

Coisas q'escrevi...

Imagem copiada do Google


Piromania


Ainda mal tinha começado o Verão de 1986 e já era o terceiro incêndio nas proximidades de Arêz, uma das freguesias do concelho e área do posto de Nisa. As pessoas andavam inquietas e murmuravam entre si apontando o dedo a determinado indivíduo que “por casualidade” era sempre o mesmo a dar o alarme, o que levantava a suspeita se não seria ele o pirómano criminoso, dado que, em qualquer deles, as causas eram sempre indeterminadas e muito estranhas, não se coibindo os bombeiros de afirmar que aquilo era com toda a certeza fogo posto.

Dei indicações para que o indivíduo fosse discretamente vigiado pelas patrulhas mas não se vislumbrava nada que pudesse confirmar as nossas suspeitas. Porém não tardaram muitos dias para que a sirene do quartel dos soldados da paz voltasse a fazer ouvir o seu apelo aflitivo porque havia novo foco de incêndio em Arêz.

- Enquanto não engavetarmos o gajo, isto nunca mais tem fim; refilava o cabo que nesse dia estava de comandante do piquete. Arrancaram ainda primeiro que os bombeiros com indicação minha de verificarem e se eventualmente o rapaz fosse visto nas proximidades do sinistro o trouxessem com eles ao posto para eu ter uma conversa particular com ele.

Dito e feito.

Como sempre acontecera, a primeira pessoa que a patrulha encontrou já muito entretido a combater o fogo com um ramalho verde foi o dito cujo. Cumprindo as minhas indicações a patrulha logo informou o indivíduo que teria que os acompanhar depois do fogo extinto pelos bombeiros que entretanto tinham também chegado e em poucos minutos controlaram a situação, porque naquele, como nos dois focos de incêndio anteriores, os prejuízos se resumiam a algumas centenas de metros de pasto e umas quantas oliveiras ardidas.

A patrulha fez, como lhe competia, o inquérito sumário das causas do sinistro, mas não chegaram a nenhuma conclusão concreta na medida em que não havia vestígios de ninguém nas proximidades, nem queimadas de qualquer espécie, pelo que facilmente se concluía que alguém gostava de lume, ou de fumo, ou de ouvir as sirenes dos bombeiros. E por isso se divertia à sucapa largando fogo aqui e além em sítios mais ou menos escondidos mas sempre nas proximidades da povoação. Deduzia-se também que fosse quem fosse era alguém que se deslocava a pé.

Apesar de eu ter formada e quase certa a suspeita que seria mesmo o tal energúmeno, a verdade é que, sem provas concretas, nada feito. Quando muito poderia apenas ser elaborado auto de notícia contra desconhecidos e invocar o alarme social que a situação provocava na população.

Assim, depois de feito mais uma vez o seu trabalho no terreno, a patrulha, fazendo-se acompanhar do suspeito regressou ao posto. Eu já conhecia bem a peça. De vista. Pela fama de traste e não só. Assim que ele entrou no meu gabinete exclamei de súbito, para lhe não dar tempo de raciocinar muito, como se tivesse a certeza absoluta do que o estava a acusar:

- Ora cá temos então o homem que anda a deitar fogo aos pastos de Arêz…

O gajo olhou para mim muito encavacado mas não se desmanchou e logo negou. Qual quê! Ele até era muito boa pessoa, até era o primeiro sempre a acudir e a começar a apagar o fogo, e mais isto e mais aquilo.

Como eu já contava com isso não desarmei e continuando num tom muito seguro, retorqui-lhe:

- É verdade sim senhor. Ajuda sempre. Mas acontece sempre também uma coisa estranha! Você chega sempre primeiro que a patrulha e que os bombeiros e não tinha tempo de lá chegar, indo a pé como você vai  da aldeia!

Ia sendo! 

O tipo empalideceu ligeiramente e baralhou-se um pouco mas de seguida recompôs-se de novo e respondeu-me com pouca convicção.

- Sabe, hoje, por exemplo, eu estava a cagar debaixo de uma figueira ali perto quando vi o fumo e corri logo para lá. Por isso é que cheguei primeiro que a patrulha e que os bombeiros…

- Ai sim? Que casualidade! Você vai cagar lá p’ra bem longe da aldeia! É para o fedor não incomodar os seus vizinhos, não é?

E continuei:

- Muito bem, então agora vai levar-me lá ao sítio exacto onde cagou porque eu quero ver com os meus olhos o seu cagalhão debaixo da figueira. Só assim é que você me convence…

Visivelmente aflito o gajo não desarmou todavia e com a maior cara de pau afirmou:

- Não vale a pena lá irmos pois com tanta gente a apagar o fogo já alguém o deve ter pisado e já lá não deve lá estar…

- Pois! Já calculava! Observei.

- Então escolha lá você agora. Quer lá ir mostrar-me o cagalhão se o que me está a dizer é mesmo verdade, ou quer já confessar sem mais chatices que é você que tem andado a deitar fogo aos pastos?

O indivíduo hesitou, pensou um bocado e concluiu:

- Se eu confessasse uma coisa dessas ia logo parar à cadeia. Isso é que era bom…

De parvo o tipo não tinha mesmo nada, como aliás quase todos os delinquentes. Vi que dali não ia conseguir tirar mais e não tinha matéria suficiente para o constituir arguido. Éramos nós nesse tempo que após reunidas as provas constituíamos sempre primeiro os arguidos cumprindo todas as formalidades legais para os apresentarmos posteriormente ao Ministério Público.

Mandei por isso sair toda a gente do meu gabinete porque, à falta de provas, só me restava uma solução. Ter uma “conversa” particular com ele, mas a sós.

E assim aconteceu.

“Conversei” amigavelmente com ele apenas uns cinco minutos. Depois adverti-o solenemente:

- Passe muito bem caro amigo! Mas já sabe.  Por cada fogo que houver em Arêz, você terá que vir sempre aqui ter comigo para termos outra “conversa” igual a esta de hoje. Estamos entendidos?

Foi remédio santo!

Não voltou a haver fogos em Arêz…



José Coelho in Histórias do Cota

Eu creio...

Primavera em flor 2017 - Foto by José Coelho


Creio em mim.

Creio na minha família.

Creio nos meus amigos.

Creio nos que vivem e trabalham comigo.

Creio em Deus que me dá tudo o que necessito para triunfar naquilo que eu me esforço por alcançar por meios lícitos e honestos.

Creio nas orações e nunca fecho os meus olhos para dormir sem pedir antes a devida orientação a fim de ser paciente com os outros e tolerante com os que não acreditam no que eu acredito.

Creio que o triunfo é resultado do esforço inteligente e não depende da sorte, de amigos, ou do chefe.

Creio que colherei da vida exactamente o que nela plantar e por isso sou cauteloso tratando os outros como quero que eles me tratem a mim.

Para isso…

Não calunio aqueles de quem não gosto.

Não diminuo o meu trabalho por ver que outros o fazem.

Presto o melhor serviço de que sou capaz porque sei que o sucesso é sempre resultado do esforço consciente e eficaz.

Perdoo aqueles que me ofendem porque compreendo que às vezes também ofendo os outros e necessito de perdão.


Autor desconhecido

domingo, 28 de maio de 2017

Coisas q'escrevi...

No meu canto a recordar e escrever esta e outras histórias


A despromoção dos generais
(de-província)


No momento em que assumi o comando do posto de Nisa dei início ao cumprimento dessa missão de uma forma totalmente diferente daquela que conhecera e me fora imposta pelos comandantes que tivera até ali. Assumi de imediato a responsabilidade de mudar radicalmente a arcaica e desumana escala do serviço diário que continuava a ser imposta em todos os postos da secção, decisão controversa que inevitavelmente motivou reparos de desagrado e manifesto escândalo contra mim nas reuniões mensais de comando que se seguiram, principalmente daqueles comandantes-caciques que não queriam perder o seu estatuto e privilégios de generais-de-província.

Sabia por experiência própria o que era sair às dezoito horas para a patrulha mas ter de comparecer no posto logo às nove da manhã, acabando por fazer nas 24 horas de cada um desses dias e foram muitos, 15 injustas e desnecessárias horas consecutivas só porque sua excelência o cabo comandante do posto assim o entendia. Mais injusto era ainda porque tais determinações não emanavam de cima por via da cadeia de comando e eram pura e simplesmente impostas por cada comandante de posto a seu bel-prazer. Lixavam, alguns deles, muitas vezes, despudorada e impunemente, os militares com quem simpatizavam menos para concederem benesses àqueles que mais lhes lambiam as botas. 

Há que dizê-lo com agrado e justiça que muito me valeu o incondicional apoio do meu comandante directo, um excelente senhor oficial sensivelmente da minha idade que tornou ainda mais aliciante tomar as iniciativas que imediatamente ele homologava por comungar das minhas ideias em agilizar e humanizar os horários e consequente desempenho do serviço. Pude por isso colocar em marcha uma completa e irreversível mudança nos horários das patrulhas, escala de serviço e administração do posto.

A mais radical medida indiscutivelmente, foi a de acabar definitivamente com a concentração do efectivo no posto entre as 9 e as 17. Cada militar passou a comparecer nele todos os dias apenas a horas de se preparar para sair para o serviço que tivesse escalado. Não foi um feito extraordinário mas foi o primeiro passo para erradicar aquele injusto, faccioso e incompreensível caciquismo há décadas instalado. Consequência imediata, as coisas mudaram para melhor a nível de toda a secção, porque as alterações que eu implementei em Nisa começaram a ter eco nos outros postos e os seus militares, obviamente, pressionaram os seus comandantes para as obterem também. E num curto espaço de tempo foi naturalmente sendo implementada a sua generalização.

Embora houvesse as NEP – Normas de Execução Permanente – e um Regulamento Geral do Serviço da Guarda que determinava e agilizava procedimentos, a verdade era que em cada unidade ou subunidade as coisas se processavam de forma diversa. Quando alguém era colocado por transferência de um posto para outro, trazia sempre consigo hábitos de serviço completamente distintos que tinha que colocar de parte para reaprender novos procedimentos.

E para tornar as coisas mais confusas também os tribunais nos complicavam muito a vida. A título de exemplo a Secção de Nisa trabalhava com quatro comarcas diferentes: A comarca de Castelo de Vide que abrangia a área do seu concelho, o de Marvão e o posto de Santo António das Areias; depois a comarca de Nisa que englobava os postos da sede de concelho, Tolosa, Alpalhão e Montalvão; por sua vez o Posto de Gavião tinha uma parte que pertencia à comarca de Ponte de Sor e a outra parte pertencia à comarca de Mação. Era um pandemónio autêntico. Para a mesma situação, crime ou outra démarche qualquer, os magistrados de Castelo de Vide exigiam um procedimento, os de Nisa outro, os de Ponte de Sor outro, e os de Mação, um outro ainda! E a Guarda que remédio tinha senão fazer como lhe era por eles superiormente determinado.

Por sua vez os comandos das secções procediam em muitas situações de forma idêntica à dos tribunais. Na resolução de um mesmo problema, em Portalegre fazia-se assim, em Ponte de Sor fazia-se assado, em Nisa era frito, e em Elvas cozido. Quando os militares dos postos se encontravam nas concentrações de instrução, era um autêntico quebra-cabeças, porquanto, ao conversarem sobre o seu dia-a-dia, ninguém fazia igual ao outro e todos achavam que a sua era a melhor forma de proceder.

Quando dizíamos aos nossos instrutores de Direito Penal nos cursos de formação a forma como se resolviam as coisas no serviço territorial, eles ficavam boquiabertos. E incentivaram-nos sempre a não continuarmos tal filosofia por ser absolutamente errada. A guarda tinha que evoluir, adaptar-se às mudanças e cumprir as novas normas sob pena de algum dia alguém vir a ter problemas sérios e depois não poder invocar as  determinações superiores na medida em que ordens mal dadas não devem ser cumpridas. Está escrito.

Tudo isso me dava uma enorme segurança. Mas não só. O facto de ter por superior directo aquele senhor oficial da minha idade já formado também na mesma doutrina que me fora ministrada a mim, não tenho quaisquer dúvidas que terá sido meio caminho andado para a implementação daquelas mudanças de que muito me orgulho até hoje por terem constituído o passo decisivo que tornou menos penoso e muito mais humano o serviço diário dos militares do posto que eu comandava e que aos poucos foram sendo assumidas – que remédio – por todos os outros.

É certo que não fui eu quem inventou as novas regras. Mas fui eu que que não me deixei intimidar com a sua nada fácil implementação. Houve muita gente avessa, houve mesmo camaradas que nas minhas costas distorciam tudo e aconselhavam os outros comandantes de posto a não irem pelo caminho que eu afirmava ser o correcto, insinuando, tendenciosamente, que tudo aquilo não passava de modernices minhas, vaidades de sargento novato. Tive inclusive que fazer cara a cara um reparo “curto e grosso” a um desses senhores apesar de ele ser mais graduado que eu, porque, felizmente também, nunca me intimidei com divisas ou galões por mais superiores que fossem, desde que estivesse seguro da minha razão…


José Coelho in Histórias do Cota

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Coisas q'escrevi...

Colecção de estatuetas de minha propriedade
que decoravam há 30 anos o meu gabinete


Casa arrumada, mãos ao resto


No Dia da Guarda - 3 de Maio de 1986 - num discreto gesto de gratidão organizei no quartel um almoço comemorativo da efeméride e para ele convidei de novo todas as entidades de todos os organismos públicos de Nisa ao qual eles compareceram com excepção do Delegado de Saúde já não me lembro porquê mas que em sua representação enviou um médico novo em Nisa, o qual curiosamente é não só uma das melhores pessoas que conheço na minha vida como também um grande e leal amigo para além de médico da minha família toda desde então e até hoje. 

Foi interessante ver a cara de espanto de muitos daqueles convidados que lá tinham ido em visita de cortesia oito ou nove meses antes. O quartel estava, dentro do possível, um brinco. Restaurado, pintado de fresco e a cheirar a asseio, nada tinha agora a ver com aquele antro bafiento e semi ruinoso que tinham visto antes. Continuava a ser um edifício velho e a avisar quem de direito que tratasse urgentemente de providenciar um novo quartel, mas pelo menos aparentava alguma dignidade.

Os dois ex-comandantes, quer o da secção, quer o que me antecedeu no comando do posto, não viam com muito bons olhos a celeridade como em meia dúzia de meses se restaurara o velho edifício que pela sua indiferença quase fora deixado cair para o chão, desculpando-se ambos com o pretexto de que deviam ter sido os responsáveis a nível da guarda a preocuparem-se com a situação, mas também que não tinham nada que andar a pedir favores à câmara municipal nem a ninguém.

Nada disso me afectou. Diziam o que eles queriam e para mim era indiferente. Em boa verdade eu previa que ia ter que passar ali um punhado de anos no comando do posto e tinha resolvido as coisas à minha maneira, tendo agora o pessoal umas instalações velhas mas decentes e com um mínimo de dignidade, assim como a minha residência, ao contrário deles que só se tinham preocupado em tornar decentes e confortáveis os seus quase inúteis gabinetes.

Soube aos poucos que o meu excelentíssimo camarada me punha de rastos de tal modo que numa jantarada de caçadores quando alguém dos presentes se referiu a mim como seu substituto e sem ele imaginar que era um tio meu que assim com ele falava, lhe respondeu com o seu habitual mau feitio que eu era um comuna e que nem soldado da guarda deveria ter sido, quanto mais sargento!

Continuava com o seu velho preconceito à mistura com a ruindade que o caracterizava mas que nunca me intimidou, porquanto cada vez que experimentou medir forças comigo querendo fazer uso da sua patente apenas dois degraus mais acima da minha, teve sempre que morder a língua e recuar na atitude porque eu com a maior firmeza lhe fazia saber que tanta obrigação tinha eu de o respeitar a ele como ele tinha de me respeitar a mim e que se lhe era dado o poder de me chamar a atenção, a mim também me era dado o poder de me queixar se ele ultrapassasse qualquer limite. Desistiu pura e simplesmente porque acabou por entender que comigo não fazia farinha e nunca levaria a melhor.

Entretanto uma doença maligna da faringe ditou-lhe uma aposentação precoce que não gozou porque faleceu meses depois. Encontrei-o casualmente certo dia no Centro Clínico nas Janelas Verdes já bastante debilitado e muito sinceramente penalizou-me vê-lo assim pois apesar de me ter tratado tão incorrectamente sempre, nunca lhe desejei nenhum mal. Desejava tão só e apenas que ele fizesse a sua vida e me deixasse fazer a minha em paz.

Naquele dia assim que o vi dirigi-me imediatamente a ele para o cumprimentar com a deferência que lhe era devida e pude ver como os olhos se lhe humedeceram, não sei se pelo desespero de se ver assim, se surpreso com o meu gesto manifestamente atencioso mas ao qual ele não podia já responder porque tinha perdido definitivamente a voz, limitando-se por isso a aceitar o meu cumprimento e apontar para a garganta onde era visível uma enorme e recente cicatriz da intervenção cirúrgica a que tinha sido submetido para extracção do grave tumor.

Recordo muito bem aquilo que eu próprio senti ao vê-lo assim tão fragilizado, doente e sozinho naquele enorme edifício, tão longe da família. Por essas e por outras nunca me canso de pensar o quanto é incompreensível que andemos às turras uns com os outros constantemente, quando a vida é tão imprevisível e de um momento para o outro toda a nossa arrogância, força e energia, caiem por terra, atingidos por algo que nos vai minando e nos apaga em meia dúzia de dias. São as lições que tenho aprendido incessantemente ao longo da minha vida e por isso procuro, o quanto posso, viver em paz com toda a gente em meu redor, detestando veementemente intrigas, ódios, desavenças e outras formas da evitável infelicidade que tudo isso provoca sempre.

Quanto ao senhor oficial e ex-comandante da secção, por ter ascendido ao cargo de comandante da companhia, foi para a capital de distrito. Fazendo uso da sua nova e superior patente, nunca perdeu oportunidade de me fazer sentir das mais diversas e desagradáveis formas, o quanto detestava a minha falta de medo dos seus dourados galões e a maneira decidida como eu, sem lhe pedir licença porque dela não carecia, tinha restabelecido as relações de amizade entre a guarda e todos os órgãos autárquicos ou públicos de Nisa sem qualquer complexo e sem medo de ser novamente conotado como comunista, como eles me já tinham conotado uma vez.

Em todo o meu percurso profissional e ao longo da minha carreira, desde o primeiro momento que ascendi à classe de sargentos, fiz questão de pautar a minha conduta por uma postura de respeito institucional para com toda a gente, superiores ou inferiores hierárquicos, sem hesitar em assumir as minhas responsabilidades, mas exigindo também e simultaneamente todos os meus direitos, perante fosse quem fosse.

Nunca me acomodei ao gabinete de comandante de posto. Permanecia lá apenas e só as horas indispensáveis para atender os diversos afazeres que eram da minha exclusiva responsabilidade, mas que, mal terminava, logo estava dentro de um jipe para ir com os soldados e os cabos policiar os campos, as estradas, as aldeias e outros sítios da área do posto que eram imensos e muito dispersos. E muitas vezes também a pé, por caminhos e veredas, ao encontro das patrulhas, para, com os meus próprios olhos, conhecer as características daquele terreno onde pontuavam hortas, bacelos, bardos e currais de gados, os quais de vez em quando eram por ali visitados na calada da noite pelos amigos do alheio, para gamanço de borregos, cabritos, vitelos, ou até mesmo sacas de azeitonas já colhidas, bem como outros artigos variados.

Nunca me senti o omnipotente figurão que só tinha que estar refastelado no conforto do gabinete, enquanto os subordinados patrulhavam ao calor e ao frio na rua. Muito pelo contrário. Senti-me sempre e só apenas mais um, naquela grande e excelente equipa de trinta e tal elementos do efectivo misto – infantaria e cavalaria – do  posto, com a única diferença que eu é que tinha que planear as estratégias de forma a ter toda a área à nossa responsabilidade mais ou menos vigiada e sob controlo, dentro do possível.

Por isso mesmo, todos não éramos demais...



José Coelho in Histórias do Cota

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Coisas q'escrevi...

A tomar café na novíssima sala de convívio do PTNisa após o almoço.
A minha mulher tinha ao colo o Rafael, filho de um dos guardas.


Ousadia para mudar


Foi uma enorme pedrada no charco! E um sucesso inesperado com o qual nem eu próprio contava. Sucessivamente, umas atrás das outras, todas as entidades me responderam quase no imediato, agradadas com a minha disponibilidade e abrindo as portas dos seus gabinetes para me receberem e melhor conhecerem. Parecia que toda a gente queria restabelecer a relação amigável e institucional que nunca deveria ter sido posta em causa. Virou até conversas de rua e de cafés que os guardas por ali captavam e me transmitiam com agrado.

E eu fui visitá-los a todos, à vez. Sem subserviência alguma, sem nunca deixar de frisar o prestígio da minha nobre instituição, a todos me apresentei com humildade, mas também com a dignidade que o meu cargo exigia. E de todos recebi uma palavra amiga, de incentivo e de boa amizade, em simultâneo com os parabéns pela minha iniciativa, seguido quase sempre de um “conte connosco”.

O primeiro e mais importante passo estava dado. Mas muito mais havia para fazer e eu não cruzei os braços nem me deixei adormecer à sombra dos elogios. Pelo contrário. Comecei a “chatear” quem podia dar-nos apoio para melhorar as condições de habitabilidade das velhas e decrépitas instalações. E para que percebessem a urgência em meter mãos à obra, nada melhor que convidar todas as entidades a visitarem o posto para que pudessem verificar com os seus próprios olhos a indignidade que era aquele edifício e as precárias condições que oferecia a quem necessitava de ali trabalhar para manter a ordem, a paz e tranquilidade públicas, em benefício de toda a comunidade.

Retribuí com a mesma abertura e cordialidade para com todas as entidades que não se fizeram rogadas e responderam ao meu convite. E uma vez ali, sem quaisquer complexos, mostrei-lhes tudo aquilo a que chamavam pomposamente o quartel da GNR da vila de Nisa. Evidentemente todos ficaram surpreendidos com tão avançado estado de degradação do edifício que pela sua aparência exterior denunciava de facto alguma velhice, mas não tanto como a do seu interior. Estando presente o senhor presidente da câmara municipal acompanhado de alguns dos vereadores, imediatamente apelei à sua sensibilidade para que, dentro daquilo que lhes fosse possível, me ajudassem no restauro das divisões mais carenciadas que infelizmente eram quase todo o edifício, pois sem a sua ajuda não seria possível avançar.

Numa resposta quase imediata uma equipa composta por pedreiros, carpinteiros e pintores, na semana seguinte “assentaram praça” no quartel e começaram a restaurar o mais urgente. O telhado que metia água e em alguns sítios ameaçava ruir. Foram substituídas quase todas as traves e barrotes, bem como centenas de telhas partidas causadoras de infiltrações. Depois foi a cozinha que levou azulejos brancos nas paredes, um armário moderno e lavável, um lava-louça inox e um chão de mosaicos, bem como uma adequada iluminação interior. O velho e sujo buraco escuro e gordurento transformou-se numa higiénica e funcional cozinha, indispensável aos militares que eram de longe e ali tinham que confecionar as suas refeições diariamente. E como estava ali mesmo ao lado, foi também completamente remodelado o posto de rádio que ficou muito mais digno e funcional. Depois, uma a uma, todas as dependências do velho edifício foram sendo restauradas a expensas exclusivas da câmara municipal de Nisa.

Adaptaram-se as divisões dentro do possível. Separou-se o posto da secção. Do lado direito ficou o gabinete do oficial comandante e a respectiva secretaria, do lado esquerdo o gabinete do plantão e o gabinete do comandante de posto e as restantes dependências afectas ao posto. Adaptou-se também um velho compartimento em frente á arrecadação do material de guerra que  conseguimos alindar usando para isso pouco mais que umas dezenas de rústicas tábuas costaneiras dos desperdícios da serração e cedidas gratuitamente que depois de devidamente aparadas dos lados e envernizadas fizeram uma acolhedora sala de convívio que servia simultaneamente para os dias de instrução semanal e para uso diário com uma bonita lareira feita de raiz para aquecer a lenha o ambiente nos dias frios de inverno, uns cómodos sofás e até mesmo também um pequeno bar para o qual a Delta nos cedeu uma máquina de café e onde se podiam tomar ainda algumas bebidas leves, sumos e aperitivos.

Construiu-se de raiz um corredor em tijolo para se poder atravessar todo o edifício sem ter que se passar pelo interior da caserna que entretanto foi também toda restaurada assim como a casa de banho anexa a ela que foi toda equipada com louças sanitárias novas, azulejos nas paredes e chuveiros de água quente. O velho piso de tábuas partidas e habitat seguro de ratos foi substituído por um bonito e funcional parquet de corticite lavável que deu logo um aspecto muito digno e acolhedor àquele compartimento, local de resguardo e de repouso por excelência para quem ali permanecia dia e noite por motivo de ter a sua residência e família  afastados e por isso só podia ir visitar na folga semanal. Era o mínimo dos mínimos que se lhes podia conceder. Condições dignas de higiene, conforto e privacidade.

Também a residência que me era destinada levou uma volta completa. A casa de banho só tinha uma sanita e um lavatório. Não tinha chuveiro nem banheira. Os meus antecessores deviam com certeza tomar banho num balde porque nem águas quentes canalizadas a residência possuía. Depois a instalação eléctrica era do tempo da guerra de catorze com aqueles tubos primitivos em chumbo a despegarem-se das paredes. Mais uma vez, a expensas da câmara municipal, tudo isso foi providenciado e consegui ao fim de um mês ter casa para habitar com um mínimo de condições. 

O único contributo da guarda em toda essa remodelação eram os dois militares que estando de piquete 24 horas consecutivas vestiam um fato de zuarte para auxiliarem os mestres da câmara naquilo que era necessário entre as oito e as dezassete, assegurando eu e o meu motorista tomarmos conta de todas as ocorrências que houvesse naquele período de tempo. Era fraco o contributo, mas era o possível e de muito boa vontade. Todo o efectivo se regozijava com aquelas obras de restauro que tardaram em chegar. Por isso, voluntariamente, cada um se prontificava para fazer o que sabia.

Os guardas electricistas ajudavam os elecrticistas, os guardas pedreiros auxiliavam os pedreiros, os guardas canalizadores idem idem, aspas aspas - porque os guardas são também grandes profissionais de todas essas especialidades que muitos desempenhavam antes de ingressarem na guarda - e aqueles que nenhum desses ofícios sabiam davam serventia onde era preciso. Seis meses depois o quartel de Nisa não parecia o mesmo. Gastou a câmara, nesse tempo - 1985-1986 - cerca de setecentos contos que hoje parece assim uma pequena quantia de dinheiro, mas que naquele tempo dava para pagar um ano de salários a qualquer funcionário público. E não se contabilizaram nesse montante as madeiras do telhado e as telhas porque foram recolhidas no estaleiro municipal e reaproveitadas de outros restauros de edifícios públicos, bem como muitos outros materiais sobrantes nessas mesmas condições e que foram utilizados no restauro do quartel sem ser necessário adquiri-los...


José Coelho in Histórias do Cota

sábado, 20 de maio de 2017

Coisas q'escrevi...

Primeiro acto público como cmdt do PTNisa - Condecorar um Soldado da Paz
(Os então Ministro Dr Miranda Calha e Gov. Civil Dr Casal Ribeiro presentes na cerimónia)


Quem se quer bem sempre se encontra!
(Vai lá vai)

O comandante de posto que eu ia substituir em virtude de ele ter sido nomeado para o curso de ajudantes, era o meu velho “amigo” sargento que no alistamento me tinha feito a vida negra e tratado abaixo de cão. Longe de me intimidar tal facto dava-me imensa força. Ia ser bom “esfregar” no seu nariz as minhas divisas de sargento, classe agora igual à dele. 

Nunca me passou pela cabeça hostilizá-lo ou usar de qualquer atitude menos correcta pois entendia que se entrasse por esse caminho estaria a imitá-lo, a ser igual ou pior que ele. Levava o meu coração em paz ainda que também cheio de determinação de não lhe permitir nem só mais um enxovalho. As coisas tinham mudado de figura. E se no alistamento tivera que ouvir e calar para não lhe dar azo a expulsar-me por rebeldia, agora as coisas piavam mais fino.
No fundo eu também entendia que ele era fruto da época obscura a que o 25 de Abril ditara o fim e tinha plena consciência que muita gente não se adaptara à mudança, que provavelmente não se adaptaria nunca. Mas o tempo do ouvir e calar para mim tinha terminado. 

Não sou de me meter em guerras mas tampouco as temi alguma vez. E nunca jamais ou em tempo algum eu iria permitir que um superior hierárquico, fosse ele um sargento mais graduado ou antigo, fosse ele um oficial de que patente fosse, me voltassem a enxovalhar ou a injuriar como aqueles dois o fizeram nos meus primeiros meses de guarda.
Jamais!
Não era vaidade, não era arrogância, nem sequer porque as divisas douradas que trazia agora nos ombros me tivessem subido à cabeça. Nada disso. Era a consciência plena de ter adquirido à minha esforçada custa todos os inalienáveis direitos de cidadão livre e responsável do meu país.
O tratamento que aquele senhor oficial comandante do pelotão e o agora meu camarada de posto me infligiram durante o alistamento fora, sem mais nem menos, sabia-o agora, um crime continuado de discriminação previsto na Constituição da República Portuguesa e que já em Janeiro de 1979 era punido pela legislação penal portuguesa.
Isso tinha aprendido na minha excelente e longa formação. E que, por me interessar tanto, estudei ao pormenor até o saber de cor e salteado, pedindo as explicações que julguei necessárias e tirando todas as dúvidas até à exaustão. E claro, aprendi. Como eu aprendi, para toda a minha vida!
Na minha nova função estava à minha espera uma tarefa gigantesca para os mais que limitados recursos de qualquer comandante de posto. Aquilo a que pomposamente chamavam de Comando da Secção Territorial de Nisa da Guarda Nacional Republicana era, em simultâneo com o Posto misto de Infantaria/Cavalaria, um casarão enorme praticamente em ruínas que não dignificava nem a Guarda, nem aqueles que, sendo comandantes e usufrutuarios directos das instalações, as tinham deixado chegar a tal ponto de degradação e ruína. A única dependência que ostentava alguma apresentação e conforto era, lamentavelmente, a que menos falta lá fazia. O gabinete do senhor oficial comandante da secção que pouco uso lhe dava, entretido permanentemente nos seus hobbies de pesca e caça, dia sim, dia sim.
O gabinete do comandante de posto também não era tão mau como as restantes instalações que albergavam quem ali trabalhava e tinha que permanecer, inclusivamente dormir alguns deles, diariamente. Os soldados e os cabos. A caserna era um tugúrio escuro e mal cheiroso quer pela proximidade da cavalariça, quer pelo desmazelo de conservação das paredes salitrosas, do sobrado todo partido e cheio de buracos por onde furtivamente pontuavam os ratos, para além das portas e janelas a cair de velhas e podres. Aquilo a que chamavam “a cozinha” era um compartimento sem luz natural iluminado por uma lâmpada suja e opaca de tantas cagadelas de moscas. O chão, os armários, a pia de pedra para lavar a louça, eram uma nódoa pegada de gordura entranhada com décadas de uso e desmazelo.
O posto de rádio era um anexo indecente para ser habitado por homens que ali tinham que permanecer 24 sobre 24 horas, 30 dias por mês. A arrecadação do material de guerra, era, a par do gabinete do senhor oficial, outra das dependências mais bem conservadas, quer em manutenção, quer em isolamento de humidades, pintura e arrumação. Pois! É que (se calhar, digo eu) as espingardas e as munições mereciam muito mais cuidados dos responsáveis pela sua conservação, do que os seres humanos que ali prestavam serviço permanentemente dia e noite de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro, ano após ano.
Mentalidades…
Por sua vez, a residência do comandante de posto, talvez por ter sempre uma senhora a cuidar dela, não estava suja. Mas estava tão velha, tão velha, tão necessitada de obras de restauro e conservação, que me recusei a ir habitá-la enquanto não tivesse as condições mínimas de habitabilidade e conforto.
Entretanto e para ajudar, as relações entre a Guarda e as restantes autoridades civis do concelho e comarca, eram de um quase confronto ou oposição mútuos. Os eleitos municipais eram da CDU, os tais famosos comunistas que o meu antecessor e agora camarada  de posto tanto odiava e hostilizava. Não havia, por isso, qualquer diálogo nem aquela colaboração e respeito institucionais mútuos que são normais entre todas as entidades públicas de qualquer concelho, seja qual for a cor política dos seus eleitos.
Não cabe à Guarda, nunca coube em tempo algum, hostilizar seja que entidade for, muito pelo contrário. Descobri ali e sem querer que aquele “ódio” que o meu ilustre camarada sargento me devotara no alistamento era exactamente o mesmo que devotava ao presidente da câmara de Nisa desse tempo e à maior parte dos nisenses que pública e manifestamente votavam CDU. Achava-se provavelmente um ser superior e distinto, não cabendo na sua iluminada mentalidade a nova pluralidade democrática.
Porém, com as outras entidades civis infelizmente, as coisas não estavam mais famosas, em termos de relacionamento com a Guarda local. Olhavam-nos de lado com pouca simpatia e ainda menos espírito colaborante.
Longe de me intimidar com tal panorama senti-me interiormente incentivado a mudar aquele estado de coisas até onde me fosse possível, ainda que com plena consciência que ia cutucar um ninho de vespas que tentariam ferrar-me pela ousadia. Sem nada dizer a ninguém porque sabia de antemão que não iria encontrar apoio interno por parte de quem deixara abandalhar aquilo tudo ao ponto em que se encontrava, tomei várias iniciativas que me pareciam prioritárias.
A primeira foi redigir um ofício timbrado oficial e endereçá-lo a todas as entidades locais. Presidente da Câmara Municipal, Juiz de Direito da Comarca, Delegado do Ministério Público, Chefe da Secretaria do Tribunal, Chefe do Serviço de Finanças, Delegado de Saúde, Gerentes das entidades bancárias, Bombeiros Voluntários e demais entidades públicas, a todos me identificando como o novo comandante do posto de Nisa e solicitando autorização para pessoalmente me ir apresentar e cumprimentar a cada um para me dar a conhecer, ao mesmo tempo que manifestava também toda a minha disponibilidade para uma estreita colaboração institucional dali em diante...

José Coelho in Histórias do Cota

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Bom fim de semana...

Capacete do grande uniforme dos militares de cavalaria da
Guarda Nacional Republicana

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Coisas q'escrevi...

Hoje biblioteca municipal, em 1985 escola dos meus filhos
Foto by José Coelho - Abril 2017


Destino: Nisa


Quando regressei ao posto a que pertencia ainda e onde permaneci algumas semanas até à promoção a segundo sargento para a consequente nova colocação sentia-me a mais afortunada das criaturas. Nada me amedrontava quanto ao futuro. Tinha durante os três longos anos da formação meditado e absorvido cada conselho recebido e cada justo ensinamento ministrado, estando mentalmente disposto a segui-los na íntegra. Um curso de formação e promoção ao posto imediato forma essencialmente também cada instruendo no caminho da integridade de carácter e do respeito pelo cargo a desempenhar, sublinhando a cada passo que a melhor cultura é sempre a do exemplo. Sabia que não ia ser fácil. Maior graduação, maior responsabilidade. É a regra de ouro. Quem tem que comandar homens tem que permanentemente preocupar-se em ser o primeiro a cumprir.

Esforcei-me por não me deixar envaidecer com os elogios que agora por ali ia ouvindo vindos principalmente de quem antes me tinha algumas vezes dificultado a vida. Não podia haver prova mais evidente do cinismo oportunista de muitas pessoas que infelizmente existem em todos os lugares e em todas as profissões. Aliás quero até esclarecer que tratava com particular deferência aqueles de quem porventura tinha algumas razões de queixa porque entendia que essa era a melhor forma de lhes fazer perceber o quanto éramos diferentes. Os amigos, quando o são, não precisam de usar graxa. E  a vingança é uma arma que repudio e nunca utilizei na minha vida. Posso afirmá-lo de consciência tranquila. Se algo ou alguém me magoa ou desilude digo-lhe cara a cara o que tenho a dizer para me defender ou contra-atacar, faço e digo o que tenho a fazer e a dizer naquele momento e só naquele momento para logo a seguir me afastar definitivamente dessa pessoa sem quaisquer intuitos vingativos.

Entretanto as minhas relações pessoais com as autoridades civis da vila foram sempre de mútuo respeito e completa disponibilidade. Pude pessoalmente verificar, nessas semanas antes da promoção, os esforços que o então presidente da câmara de Castelo de Vide encetou junto de diversas instâncias quer da guarda quer mesmo do poder civil, para tentar que eu ficasse a comandar o posto local pois a minha forma de lidar com todas as solicitações do dia-a-dia tinham-me valido da parte dele alguma estima e consideração.

No jantar que ofereci a um restrito grupo de convidados quando fui promovido esse ilustre senhor presidente da câmara – figura muito conhecida e estimada ainda hoje na Vila – disse-me perante todos os presentes na sala que no dia seguinte ia tratar de alguns assuntos ao Ministério da Administração Interna em Lisboa e que esperava trazer de lá também já a garantia da minha colocação no comando do posto.

Embora não lhe tivesse podido dizer logo ali por ser um assunto de serviço restrito e reservado apenas ao meu conhecimento, eu já sabia que tal não iria acontecer porque os planos do comando territorial de Portalegre eram outros conforme já me tinha sido dado conhecimento e alguns dias depois se verificou.

Já era certo que ia ser colocado na companhia de Portalegre por ser também o segundo candidato melhor classificado da companhia, uma vez que o terceiro classificado já fora transferido para Lisboa em virtude se só haver duas vagas a preencher na nossa zona territorial. Afinal tinha valido a pena prescindir de umas quantas sessões de cinema e de umas “bejecas” nas esplanadas da Avenida da Liberdade para ficar a “marrar” nas salas de aula e a fazer revisões das matérias.

Poucos dias depois fui convocado para comparecer no comando da companhia a fim de receber a guia de marcha para a nova colocação como comandante de posto. Só havia duas vagas. Avis e Nisa. E  eu era o segundo classificado. Por isso cabia-me aceitar a hipótese que o outro camarada não escolhesse. Eram assim as regras. Acho que ainda hoje assim se mantêm. Só não foi decente sermos colocados sem opção de escolha por virtude da conveniência do serviço mas que nos tivessem feito preencher uma declaração a pedir a colocação naqueles dois postos sem dispêndio para a Fazenda Nacional, isto é, sem sermos ressarcidos das ajudas de custo a que tínhamos direito, em virtude de uma determinação do então comandante interino da Companhia de Portalegre que era ainda também o meu comandante de secção, e que era, cumulativamente, dos tais senhores "mandantes" que só coçava para dentro pois não prescindia de um só cêntimo se a ele tivesse direito.

Era o tal senhor que ia caçar e pescar dias inteiros em qualquer dia da semana mesmo sem estar de férias, mas exigia pontualidade e cumprimento de horários e das outras obrigações aos seus subordinados. Mas chegou ao topo da carreira sem qualquer entrave. A velha máxima do "quem manda, pode". Já os sargentos, os cabos e os soldados que comandava, poucos ou nenhuns louvou sequer porque se estava marimbando para esses reconhecimentos que eram justos e vulgares em todas as subunidades vizinhas, além de ajudarem muitas vezes na promoção ao posto imediato por mérito. Mas aquele senhor nunca tal pensou porque era incapaz de tirar os olhos do seu próprio umbigo. Já se reformou há muitos anos para descanso dos guardas de hoje a quem não desejo de modo nenhum que tenham alguma vez a infelicidade de terem por comandante alguém assim.

Voltando porém atrás e às nossas colocações, se tive algum azar na atribuição das ajudas de custo que me eram devidas por lei, tive contudo a sorte de me acompanhar um bom camarada que de imediato me concedeu o privilégio de escolher o posto que melhor jeito me desse em virtude de ele ser solteiro e não lhe fazer qualquer diferença ir para um ou para o outro. Esse camarada foi o meu companheiro de carteira durante os três anos que frequentámos os cursos, primeiro no de cabos, depois no de sargentos. Por isso não tenho qualquer dúvida em reconhecer que fui parar a Nisa graças à amizade e solidariedade desse companheiro que, generosamente, sabendo que eu era casado e tinha dois filhos pequenos, entendeu que seria muito mais fácil a minha malta adaptar-se a Nisa que ficava ali ao lado e muito perto do resto da família, do que adaptar-se a Avis já quase em Estremoz. E assim aconteceu. Lá fui eu então, com o coração cheio de esperança e com a cabeça a transbordar de ideias, ao encontro da minha nova vida na bonita e acolhedora vila de Nisa, repleta de gente boa...


José Coelho in Histórias do Cota

Me...

A serenidade de uma consciência tranquila

terça-feira, 16 de maio de 2017

Coisas q'escrevi...

Os meus dois reguilas!
Saudades...


De volta ao meu aconchego


O regresso a casa foi, como não podia deixar de ser, uma alegria. Terminava um longo ciclo de ausência permanente do lar e da família. Os filhos tinham crescido imenso durante aqueles três anos e tinha agora já dois homenzinhos em casa à minha espera para fazermos os passeios de que tanto gostávamos a pé pelos subúrbios da vila quando eu tinha tempo livre.

Como sabia bem sentir-me definitivamente junto deles! A mais ninguém podia dedicar o sucesso alcançado senão àqueles dois pequenitos pois fora a pensar neles que arranjava forças para superar o desânimo que inúmeras vezes surgiu motivado quase sempre por serem tão limitadas as minhas habilitações literárias e os curriculos dos cursos serem tão complexos. Só por mera curiosidade vou tentar lembrar-me da infinidade de disciplinas que os compunham.

Havia a parte de educação física, ginástica, desportos e luta de defesa pessoal. Esta era a meu ver a disciplina mais benéfica de todas porque ajudava a descomprimir, a relaxar, a arejar a cabeça, cumprindo cabalmente a sua máxima: Mente sã em corpo são.

Depois a parte cultural que tinha português, francês, matemática, física e química, ciências do ambiente, história universal, geografia, educação cívica e moral, tudo de acordo com o programa oficial do 9º ano escolar civil vigente àquela época.

Seguia-se a parte militar que versava sobre ordem unida executada com arma, sem arma e descritiva, a lei da defesa militar, armamento, regulamento de disciplina militar, regulamento de continências e honras militares, táctica de infantaria, informação e contra-informação, topografia, transmissões e socorrismo.

Por sua vez a parte técnico-profissional sobre a GNR (tinha que saber-se na ponta da língua) versava sobre o estatuto dos militares da guarda, a lei orgânica da guarda, o regulamento do serviço geral da guarda, inúmeras nep´s (normas de execução permanente), ordens de serviço e legislação interna diversa.

Finalmente a parte técnico-profissional, a mais complicada de todas pela imensidão de leis, decretos, decretos-lei e portarias com que este país se gere. Direito penal, direito processual penal, código civil, constituição, lei da caça, lei da pesca, lei do funcionamento dos estabelecimentos, lei dos jogos de fortuna e azar, lei dos feirantes e vendedores ambulantes, lei das atividades económicas, código da estrada, regulamento do código da estrada, regulamento de transportes em automóveis (que parecia uma bíblia), lei eleitoral, trasladação de cadáveres, lei dos incêndios florestais, leis dos fogos de artifício, lei das armas de defesa pessoal, lei do transporte de explosivos e ainda mais algumas que já não consigo recordar…

De cada disciplina tínhamos duas provas escritas por cada período escolar, ou seja, uma média de 120 testes por ano lectivo. Um perfeito cocktail de pilhas de nervos. E a coroa de glória, aquela disciplina abstracta cuja nota nenhum de nós podia controlar e se chamava “mérito pessoal” que só por si era eliminatória. Ou seja;  um aluno podia ter dezoitos, dezanoves ou vintes nos testes, podia ser um craque em atletismo ou um barra em todas as disciplinas mas se tivesse menos de 10 valores a mérito era pura e simplesmente eliminado sem hipótese de qualquer recurso.

Tal nota era atribuída por cada um dos instrutores militares e professores civis que nos iam avaliando individualmente ao longo de todo o ano escolar preenchendo cada um deles umas folhas secretas próprias que traziam sempre consigo e nas quais atribuíam a cada aluno uma nota de zero a vinte ao seu critério, tendo em conta a pontualidade, o atavio pessoal, a compostura individual, o interesse manifestado nas matérias, a educação e aprumo nas suas relações com os instrutores, a forma como se relacionava com os outros alunos, enfim, uma autêntica espionagem ao nosso comportamento no dia a dia e cujo veredicto entregavam no final de cada período, na direção de instrução.

Somadas as avaliações de todos os professores referentes a cada aluno – no mérito claro – e se o resultado final fosse inferior a 10, o mais certo que o visado podia contar era... Rua, que esta casa não é tua. E de tal maneira aquela porcaria de avaliação era calculada que nunca as notas máximas excediam uns míseros doze vírgula qualquer coisa. Treze a mérito era equiparado a um vinte nas outras disciplinas. Mas acho que foi raro ou até mesmo inexistente, só não sei explicar porquê. Devia haver indicações superiores nesse sentido ou o critério de avaliação seria muito exigente, não sei. Para agravar as coisas a nota de mérito somada com todas as outras notas do curriculo é que fazia a nota final do curso. Por isso, alunos que tinham médias de 17 ou 18 em muitas disciplinas, viam a sua nota final descer subitamente para um 13 ou um 14.

No meu diploma consta, como foi referido no texto anterior, a nota final de 12,39 muito próxima da nota final do curso de cabos que foi de 12,60. Julgo que estes resultados serão reveladores do meu empenho que foi sempre o mesmo e por isso manteve praticamente inalterado os resultados finais nos dois cursos de promoção. Com a referida nota fiquei posicionado a meio da tabela classificativa, nem entre os primeiros, nem entre os últimos. Acho que fiquei no lugar que me competia porque não conseguiria de modo nenhum fazer mais nem melhor.

Mas foi duro e complicado por ser demasiada matéria a decorar para os testes escritos que chegavam a ser dois por dia em vários dias da semana e muita a exigência por parte dos instrutores, principalmente alguns dos oficiais mais velhos famosos em todo o dispositivo por gozarem da fama e do proveito de fazerem a vida negra aos alunos nos cursos. A pressão psicológica era tão negativa que o tal cabo que ficou infelizmente famoso não a aguentou, passou-se dos carretos e transformou a parada do quartel num lago de sangue com vários mortos e feridos, poucos meses depois. Acho que só mesmo a partir daí as coisas no geral se humanizaram um pouco, não apenas no Centro de Instrução da Ajuda, mas em toda a guarda, porque só perante o funesto resultado de tamanho desequilíbrio mental toda a gente começou finalmente a reflectir nos desumanos e desadequados métodos disciplinares até então usados.

Felizmente hoje não é nada assim e ainda bem, embora o currículo dos cursos mantenha mais ou menos a mesma complexidade. Porém, os alunos têm também actualmente um nível de formação académica muito superior, o que, só por si, é já uma enorme vantagem.  Hoje a guarda tem nas suas fileiras e a fazer patrulhas muitos e brilhantes jovens licenciados. Para todos esses jovens ascender na carreira é quase uma obrigação porque a guarda carece e muito de gente bem formada para que não se repitam nunca mais situações humilhantes, desumanas e completamente injustificáveis, como aquelas a que eu fui submetido…


José Coelho in Histórias do Cota