quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Coisas q'escrevi...

Vista parcial da Barroca Grande 


Cinco tranquilos e felizes anos


Nas encostas serranas da Estrela, a Barroca Grande é uma aldeia muito maior que algumas vilas que conheço.

É um aglomerado enorme de edifícios de todas as tipologias. As casas são bonitas, modernas e funcionais, com todas as comodidades possíveis e, por isso mesmo, era muito difícil, no meu tempo, conseguir uma casa vaga para ali assentar de vez com a família.

Ainda assim estive prestes a receber uma delas mas a minha Maria Manuela logo me informou perentoriamente que jamais iria viver para aquele lugar e muito menos queria que eu continuasse a trabalhar debaixo do chão como as toupeiras.

Queria, isso sim, que eu voltasse para casa, arranjasse uma vida menos perigosa e que nos permitisse estarmos permanentemente juntos como qualquer família normal.

Um ano depois de eu ter abraçado a profissão de mineiro decidíramos casar. Ela trabalhava na Celtex há dez anos e o meu ordenado na Beralt Tin & Wolfram ultrapassava e muito a média dos ordenados desse tempo por aqui, na medida em que, trabalhando por turnos rotativos, dois desses turnos apanhavam a noite, o  que beneficiava significativamente os vencimentos, uma vez que as horas de trabalho no interior da mina entre as 20 e as 08 horas eram pagas a dobrar.

Recordo-me que a Manuela ganhava 18.000$00 mensais (dezoito contos) que até nem era nada mau, e eu já conseguia trazer para casa na ordem dos 60.000$00 (sessenta contos limpos) que eram mais do triplo da média dos ordenados que por aqui se praticavam.

Tínhamos um inconveniente enorme. Só vinha a casa de 15 em 15 dias. A viagem da Beirã para as Minas em transportes públicos era uma aventura cansativa como já descrevi. Assim optámos por fazer contrato com o senhor Augusto Chaves do táxi de Castelo de Vide, o qual de 15 em 15 dias nos ia buscar, a mim e a outros dois camaradas mineiros marvanenses, por uma quantia pré-estabelecida que pagávamos entre os três. Uma viagem muito mais rápida e confortável.

A Celtex onde a Manuela trabalhava encerrava todos os anos no mês de Agosto para férias de todo o seu pessoal. Então nesse mês a Manuela rumava às Minas para passar 30 dias comigo, gratuitamente hospedados em casa dos nossos queridos amigos marvanenses que quase disputavam entre eles em casa de quem iria ser a nossa permanência cada ano.

Gente boa.

No mês seguinte, Setembro, era eu quem tirava os 30 dias de férias a que tinha direito. A Manuela regressava ao trabalho e eu ficava em casa. E assim foi a nossa vida, durante cinco anos. Juntos apenas dois meses seguidos por ano além de um fim-de-semana de 15 em 15 dias.

Entretanto nasceu o nosso filho Manel. Começou a ser muito complicado para mim viver longe dele e da mãe, apesar de adorar o meu trabalho, os meus camaradas e todo aquele ambiente de profunda amizade, solidariedade, camaradagem, simplicidade e disponibilidade mútuos, quer dos mineiros marvanenses e suas famílias, quer também de todas aquelas excelentes pessoas da Beira Baixa que são a melhor gente do mundo.

O Povo da Beira, digo-vos eu, é um Povo por excelência generoso, afável, amigo.

Em nenhum outro lugar do mundo me senti tão bem durante toda a minha vida. Talvez por isso mesmo tivesse sido tão fácil para mim adaptar-me, apesar da rudeza e permanente perigosidade do trabalho.

Um mineiro quando entra para dentro da mina é como um pescador quando se faz ao mar. Nunca sabe se regressa a casa pelo seu pé.

A compensação salarial era muito atrativa e eu habituei-me a ter sempre dinheiro para tudo quanto nos fazia falta. Paguei sem qualquer dificuldade a mobília da nossa casa, comprámos eletrodomésticos, fizemos a viagem de lua-de-mel que incluiu Madrid, Porto, Braga e Gerês, enfim, um sem número de mordomias impensáveis se tivesse continuado por aqui e se não tivesse aceite sem hesitar a mão que o meu falecido primo João Gaspar generosamente me estendeu.

Já estão os dois junto de Deus mas a minha gratidão permanece intacta e reverencio a sua querida memória. A silicose da mina matou o João aos cinquenta e poucos como já era previsível e a Maria José foi ter com ele pouco depois vítima de um AVC.

Resta-me o grato prazer de me encontrar agora frequentemente com o meu querido capataz, o José Mouro, assim como com a sua esposa e filha mais nova, pois regressaram às encostas de Marvão mal ele se aposentou. A filha mais velha reside nos EUA e o filho também vive longe de Marvão.

Gosto de todos eles como gosto da minha família e não conseguimos - nem queremos - disfarçar a profunda amizade que nos une, sempre que nos encontramos ou visitamos. A gratidão é a virtude que mais prezo na vida...


José Coelho in Histórias do Cota