No canto superior esquerdo da imagem, a varanda do antigo Clube da Beirã
Autor da foto desconhecido
Princípio do fim
Uma excelente novidade vim
encontrar quando regressei d’Angola. Já não era o velho candeeiro
a petróleo que iluminava os nossos serões. Com muito sacrifício – para variar –
os meus pais tinham conseguido amealhar o suficiente para mandarem fazer a instalação elétrica em toda a casa, o que na
altura era considerado quase um luxo. Nunca mo tinham dito na
correspondência semanal precisamente para ser a surpresa que foi e que de facto me
deixou muito agradecido e feliz.
Sempre fui um “devorador”
de livros que só podia ler à noite à luz do candeeiro porque o dia tinha que ser para trabalhar, mas, essencialmente,
aquela pequena mordomia da iluminação elétrica era ainda mais necessária à minha
mãe para os seus serões de costura, uma vez que durante o dia os outros inúmeros afazeres não lhe deixavam tempo para isso.
Cheguei à terra em vésperas dos
santos populares e das fogueiras de rosmaninho que cada família fazia à sua porta em alegres convívios de sardinhadas e caldo verde à mistura com o inevitável
pezinho de dança ao som de música de gira-discos ou gravador de cassetes. Tudo o
que eu necessitava para me reencontrar com o equilíbrio emocional e a paz de espírito. A
Beirã desse tempo tinha um grande grupo de jovens da minha idade e não só. Era
uma comunidade muito viva, atuante e participativa.
Aos serões, a “malta” de ambos os
sexos juntavam-se em grupos no Clube ou na Sociedade Recreativa, no Largo da
Fonte ou à porta da Loja Grande. Havia quem tivesse viola, havia até quem
cantasse muito bem, havia enfim, um estilo de vida completamente salutar onde a
amizade, a camaradagem e o espírito de grupo imperavam, fazendo de todos nós uma
juventude muito unida e feliz.
Ninguém ou quase ninguém tinha
ainda televisão em casa. Qualquer programa de maior interesse era televisionado
nas salas públicas já referidas que tinham esse equipamento para utilização
coletiva, o que, de algum modo, também contribuía muito para a juventude reunir
e conviver diariamente.
Os ecos da Revolução de Abril iam
cá chegando mais ou menos ruidosos e com eles começaram infelizmente as
tendências agressivas do partidarismo que subtilmente dividiu em claques
a malta simpatizante de cada uma das muitas e diferentes opções políticas que se foram perfilando em direção ao Poder. E alguns
amigos de uma vida inteira começaram a olhar-se como rivais.
Iniciou-se dessa forma a nova era
conquistada na recente manhã de abril e que, em meu modesto entender, não
trouxe, nem pouco mais ou menos, o que se perspetivava em termos de bem-estar
coletivo e mesmo em termos de futuro. Muito e muito pelo contrário. Sem que
ninguém o previsse ou pudesse imaginar, a Beirã começou a ruir num efeito
dominó imparável e demolidor. A menina dos olhos do concelho de Marvão, iniciou
ali o inexorável e irreversível processo da sua lenta agonia.
Primeiro foram os agentes da Pide
que fugiram ou foram presos e as suas famílias tiveram que regressar às origens,
deixando para trás as primeiras casas desabitadas. Vizinhos e amigos independentemente
do que os ligava ao anterior regime ou ao que faziam no exercício da sua
profissão, eram famílias inteiras que davam vida à aldeia e ajudavam a sustentar
a economia local.
Depois foi o processo de
integração de Portugal na União Europeia. A alfândega fechou e a circulação
ferroviária reduziu tanto que mais de dois terços dos funcionários da CP foram
colocados noutras estações longe da Beirã. Os escritórios dos despachantes
oficiais também deixaram de ser necessários e a sombra do desemprego começou a
pairar sem deixar lugar a dúvidas sobre muitas famílias que ali tinham o seu
ganha-pão há décadas. Os que não eram de cá foram pura e simplesmente embora também
para as suas terras em busca das suas raízes para ali reconstruir ou
começar de novo as suas vidas. E para trás ficaram mais casas desabitadas um
pouco por todas as ruas e becos.
Em consequência da abertura das
fronteiras foi também extinta a Guarda-Fiscal. Outra machadada na já
periclitante vida económica e social da aldeia que assim ia perdendo em marcha acelerada e cada vez mais o habitual movimento de pessoas e mercadorias.
Mas não foram só os funcionários
da Estação a serem “expulsos” por tão estranho “progresso” trazido pela santa
revolução de abril. Antes da sangria desatada que quase esvaziou de gente a
aldeia, eu próprio fui dos primeiros Beiranenses a ter que migrar para outras
paragens. A oferta de trabalho até na agricultura começou por aqui a escassear e
eu queria constituir família, assentar. Precisava para isso de arranjar, antes
de tudo, o emprego sólido e seguro que me permitisse colocar pão na mesa para a família, para
poder então dar o passo seguinte. Casar.
Em boa verdade, a grande causa da
minha necessidade de partir para longe à procura de trabalho nessa época, não
foi apenas a falta de oferta de emprego por estas bandas. Foi também e
sobretudo o tal partidarismo provinciano que já referi e se transformou em
fanatismo para muita gente. Pessoas que até ali tinham sido amigas, não
toleravam de forma nenhuma que amigos seus ou até mesmo familiares próximos
pudessem ter opções diferentes.
A revolução libertou-nos da velha
e caduca ditadura do estado novo mas para muitos pseudo-democratas de aldeias
como a Beirã, quem não fosse da sua “cor”, era um alvo a abater. E, para nossa imensa
infelicidade todos estes anos depois, ainda prevalecem muitas mentalidades
dessas. Sabem lá elas definir o que é democracia! Sabem lá elas que a sua
liberdade termina exatamente… Onde a dos outros começa! Democratas? Deixem-me
rir. Tenho tantas coisas giras para vos contar…
José Coelho in Histórias do Cota