sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Coisas q'escrevi...

No canto superior esquerdo da imagem, a varanda do antigo Clube da Beirã
Autor da foto desconhecido


Princípio do fim


Uma excelente novidade vim encontrar quando regressei d’Angola. Já não era o velho candeeiro a petróleo que iluminava os nossos serões. Com muito sacrifício – para variar – os meus pais tinham conseguido amealhar o suficiente para mandarem fazer a instalação elétrica em toda a casa, o que na altura era considerado quase um luxo. Nunca mo tinham dito na correspondência semanal precisamente para ser a surpresa que foi e que de facto me deixou muito agradecido e feliz.

Sempre fui um “devorador” de livros que só podia ler à noite à luz do candeeiro porque o dia tinha que ser  para trabalhar, mas, essencialmente, aquela pequena mordomia da iluminação elétrica era ainda mais necessária à minha mãe para os seus serões de costura, uma vez que durante o dia os outros inúmeros afazeres não lhe deixavam tempo para isso.

Cheguei à terra em vésperas dos santos populares e das fogueiras de rosmaninho que cada família fazia à sua porta em alegres convívios de sardinhadas e caldo verde à mistura com o inevitável pezinho de dança ao som de música de gira-discos ou gravador de cassetes. Tudo o que eu necessitava para me reencontrar com o equilíbrio emocional e a paz de espírito. A Beirã desse tempo tinha um grande grupo de jovens da minha idade e não só. Era uma comunidade muito viva, atuante e participativa.

Aos serões, a “malta” de ambos os sexos juntavam-se em grupos no Clube ou na Sociedade Recreativa, no Largo da Fonte ou à porta da Loja Grande. Havia quem tivesse viola, havia até quem cantasse muito bem, havia enfim, um estilo de vida completamente salutar onde a amizade, a camaradagem e o espírito de grupo imperavam, fazendo de todos nós uma juventude muito unida  e feliz.

Ninguém ou quase ninguém tinha ainda televisão em casa. Qualquer programa de maior interesse era televisionado nas salas públicas já referidas que tinham esse equipamento para utilização coletiva, o que, de algum modo, também contribuía muito para a juventude reunir e conviver diariamente.

Os ecos da Revolução de Abril iam cá chegando mais ou menos ruidosos e com eles começaram infelizmente as tendências agressivas do partidarismo que subtilmente dividiu em claques a malta simpatizante de cada uma das muitas e diferentes opções políticas que se foram perfilando em direção ao Poder. E alguns amigos de uma vida inteira começaram a olhar-se como rivais.

Iniciou-se dessa forma a nova era conquistada na recente manhã de abril e que, em meu modesto entender, não trouxe, nem pouco mais ou menos, o que se perspetivava em termos de bem-estar coletivo e mesmo em termos de futuro. Muito e muito pelo contrário. Sem que ninguém o previsse ou pudesse imaginar, a Beirã começou a ruir num efeito dominó imparável e demolidor. A menina dos olhos do concelho de Marvão, iniciou ali o inexorável e irreversível processo da sua lenta agonia.

Primeiro foram os agentes da Pide que fugiram ou foram presos e as suas famílias tiveram que regressar às origens, deixando para trás as primeiras casas desabitadas. Vizinhos e amigos independentemente do que os ligava ao anterior regime ou ao que faziam no exercício da sua profissão, eram famílias inteiras que davam vida à aldeia e ajudavam a sustentar a economia local.

Depois foi o processo de integração de Portugal na União Europeia. A alfândega fechou e a circulação ferroviária reduziu tanto que mais de dois terços dos funcionários da CP foram colocados noutras estações longe da Beirã. Os escritórios dos despachantes oficiais também deixaram de ser necessários e a sombra do desemprego começou a pairar sem deixar lugar a dúvidas sobre muitas famílias que ali tinham o seu ganha-pão há décadas. Os que não eram de cá foram pura e simplesmente embora também para as suas terras em busca das suas raízes para ali reconstruir ou começar de novo as suas vidas. E para trás ficaram mais casas desabitadas um pouco por todas as ruas e becos.

Em consequência da abertura das fronteiras foi também extinta a Guarda-Fiscal. Outra machadada na já periclitante vida económica e social da aldeia que assim ia perdendo em marcha acelerada e cada vez mais o habitual movimento de pessoas e mercadorias.

Mas não foram só os funcionários da Estação a serem “expulsos” por tão estranho “progresso” trazido pela santa revolução de abril. Antes da sangria desatada que quase esvaziou de gente a aldeia, eu próprio fui dos primeiros Beiranenses a ter que migrar para outras paragens. A oferta de trabalho até na agricultura começou por aqui a escassear e eu queria constituir família, assentar. Precisava para isso de arranjar, antes de tudo, o emprego sólido e seguro que me permitisse colocar pão na mesa para a família, para poder então dar o passo seguinte. Casar.

Em boa verdade, a grande causa da minha necessidade de partir para longe à procura de trabalho nessa época, não foi apenas a falta de oferta de emprego por estas bandas. Foi também e sobretudo o tal partidarismo provinciano que já referi e se transformou em fanatismo para muita gente. Pessoas que até ali tinham sido amigas, não toleravam de forma nenhuma que amigos seus ou até mesmo familiares próximos pudessem ter opções diferentes.

A revolução libertou-nos da velha e caduca ditadura do estado novo mas para muitos pseudo-democratas de aldeias como a Beirã, quem não fosse da sua “cor”, era um alvo a abater. E, para nossa imensa infelicidade todos estes anos depois, ainda prevalecem muitas mentalidades dessas. Sabem lá elas definir o que é democracia! Sabem lá elas que a sua liberdade termina exatamente… Onde a dos outros começa! Democratas? Deixem-me rir. Tenho tantas coisas giras para vos contar…


José Coelho in Histórias do Cota