domingo, 26 de fevereiro de 2017

Coisas q'escrevi...

A minha querida família mineira comigo, no dia que casei


Candidato a profissão nunca antes imaginada


Chegou Agosto de 1979. Mais uma vez, a minha mulher e filho foram lá passar o mês comigo em casa do chefe Zé Mouro a cuja família nos afeiçoámos como se da nossa se tratasse. E como também já vinha sendo hábito, em Setembro vim com eles de férias. Foi nesse ano que, não sei como nem por quem, a minha mãe e a minha cara metade souberam que estava aberto concurso para admissão de praças à GNR.

Cada uma delas, à vez, iam-me buzinando aos ouvidos que aquela sim era uma vida decente, que ser mineiro era ser como as toupeiras sempre debaixo do chão sem ver a luz do dia, e isto e aquilo. Mais para deixar de as ouvir do que por convicção, lá fui tratar da papelada necessária ao posto de Santo António das Areias onde fui primorosamente atendido pelo guarda e senhor Pouca Roupa que era na altura o comandante interino do posto porquanto o cabo estava de baixa.

Preenchido e entregue o requerimento, nunca mais me preocupei com aquilo. Aqui para nós, sinceramente, nunca tencionei enveredar por tal carreira, pois não me via metido dentro de uma farda de novo e muito menos de polainas nas pernas e espingarda mauser às costas a patrulhar caminhos. Regressei por isso em Outubro às Minas onde pus o meu chefe ao corrente do que tinha feito e confidenciando-lhe que tinha sido mais para calar a mulher e a mãe do que com intenção de mudar de profissão. Para meu grande espanto, ele ficou um bocado calado e a pensar.  Passado esse tempo de reflexão respondeu-me assim:

- Olha Zé! Sinceramente eu tenho muita pena que te vás embora porque nos afeiçoámos a ti, não só eu e a minha família, mas também muitos dos teus outros amigos como o teu primo João e a família dele, o Antero e a família dele, o Zé Maria, o Pinto e o pessoal das Preparações que bastante te estimam todos. Mas acho que deves empenhar-te nisso a sério e que deves tentar entrar. A mina não te leva a lado nenhum. Vais é apanhar silicose como todos nós. Andas para aqui longe da família e desterrado dela, uma vez que a tua mulher não quer para cá vir morar. Por isso pensa bem. É um futuro melhor, mais limpo e muito menos arriscado…

Surpreso por completo com o sensato conselho daquele amigo com A grande, nada mais adiantei.

Estávamos, como já referi, em Outubro de 1979. Eis senão quando um lamentável incidente de cariz racista resultou em sérios confrontos entre a comunidade local e os caboverdeanos residentes nas camaratas. Parecia a noite de cristal de Hitler. Os africanos, não sei por que carga d'água, atacaram as camaratas, partindo janela a janela. Eu estava a dormir porque ia entrar às 00,00 horas no turno da noite. Por isso, mal me apercebi do alarido exterior, só tive tempo de saltar da cama meio vestido quando um objecto contundente atingiu a vidraça por cima da minha cabeceira estilhaçando-a completamente e inundando a cama e a camarata de vidros.

Estava também a dormir na sua cama do lado oposto da camarata o Joaquim Manuel – o “nossa senhora” de alcunha – que hoje é utente da Anta na Beirã. Saímos para o corredor atarantados e sem perceber o que se estava a passar quando o Daniel, um caboverdeano nosso camarada na mina que era manobrador de guincho na nossa equipa, amigo e muitíssimo boa pessoa, apercebendo-se que estávamos ali os dois sozinhos, nos gritou: - Fujam daqui! Venham comigo… E furtivamente por entre os arbustos da encosta sobranceira aos dormitórios conduziu-nos ao bairro mineiro onde nos deixou pouco depois em segurança.

Nunca mais vi esse grande e generoso amigo, porém também nunca mais o esqueci como é óbvio. E só já no bairro entre os nossos conterrâneos nos apercebemos da dimensão do problema. Estava tudo em pé de guerra. Os mineiros brancos já tinham morto à pancada dois caboverdeanos. Veio a GNR e foi chamada até a tropa de Castelo Branco para apaziguar tudo aquilo. Ninguém entrou na mina porque os cabecilhas daquele autentico motim exigiam que nenhum branco entrasse de turno enquanto “os pretos” não fossem todos expulsos da empresa.

Nunca tinha imaginado nada assim. Racismo, xenofobia, preconceito feroz, ao vivo e a cores. Eu trabalhava com os caboverdeanos há anos e não tinha a menor razão de queixa, muito pelo contrário. Eram boas pessoas, uns mais que outros, tal como nós. Sentia por ali entre a comunidade local e os caboverdeanos alguns atritos às vezes, algumas bebedeiras mais chatas, algum don juan preto a querer engatar alguma cachopa branca, mas sempre sem consequências de maior.

Porém aquele incidente foi de tal ordem que a RTP noticiou, as rádios noticiaram, os jornais também, o embaixador de Cabo Verde foi às Minas pessoalmente inteirar-se dos factos e eu comecei a receber telegramas aflitivos de toda a família a perguntarem se estava tudo bem comigo e a pedirem por tudo para eu voltar para casa de vez.  De facto o ambiente entre os mineiros apaziguou mas nas semanas que se seguiram ficou no ar um clima esquisito. A violência foi longe demais e o assassinato a sangue frio dos dois mineiros caboverdeanos, excesso de fúria a todos os níveis imperdoável, obviamente teve consequências criminais para alguns dos implicados naquela barbárie sem tamanho.

E a minha família que já não via com muito bons olhos o meu apego às Minas aproveitou a deixa para, em uníssono, me tentarem convencer a deixar tudo aquilo de vez. As reticências que eu tinha em voltar para a terra eram principalmente devidas ao facto de não vislumbrar por aqui nenhum trabalho decente porque a precaridade de emprego continuava tão acentuada como nos idos de 75 quando tive que me ir embora, ou talvez até um pouco mais aguda, e não me via a ficar em casa enquanto a mulher tinha que levantar-se às seis e meia da manhã para apanhar o autocarro aos dez para as sete a caminho da Celtex onde continuava a trabalhar...


José Coelho in Histórias do Cota