sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Coisas q'escrevi...

1986 - Em Portalegre, já monitor e adjunto do comandante do pelotão 


Um homem de sorte


Nos idos de 85/86 e morando eu ainda em Nisa onde exercia a minha profissão vim certo dia visitar os meus pais e família como era habitual. Mais tarde, antes do regresso a Nisa, passei pela pastelaria da aldeia como também era meu hábito, para tomar um café e trocar uns dedos de conversa com os conterrâneos que por lá costumavam estar. Foi nessa ocasião que um senhor que por acaso nem é da Beirã mas cá vive há muitos anos – não interessa nome – em amena cavaqueira, referindo-se ao facto de eu ter atingido uma graduação profissional pouco alcançada por muitos dos conterrâneos que, como eu, optaram pelas forças de segurança, afirmou convictamente:

- Ó Zé Manel! Tu és um homem de sorte! Quem diria que havias de conseguir chegar tão longe…

- Sorte? Perguntei. - Ai basta que sim…

E o que eu penei com os inúmeros enxovalhos de que fui alvo no alistamento em Portalegre às mãos do tenente comandante de pelotão e do sargento seu adjunto que tudo fizeram para correrem comigo do curso por, supostamente, eu ser comuna? Em 1979 já tinha sido extinta a Pide há cinco anos. Porém, estes comportamentos fascizóides de algumas mentalidades ainda existentes nas forças de segurança mesmo depois de passada já meia década após o 25 de abril, eram piores do que os dos agentes daquela polícia internacional e de defesa do estado fascista com quem eu sempre convivi na minha aldeia e que nunca vi fazerem a ninguém nem metade das heresias que me fizeram a mim aqueles dois graduados, já em tempo de liberdade e suposta tolerância democrática.

- Sortudo, chamou-me aquele senhor. Tá bem, abelha…

- E o que eu tive que me esforçar durante todo o alistamento para conseguir ter notas acima dos 17 valores nos testes e dessa forma vencer a má-fé que me rodeava por parte daqueles senhores oficial e sargento, não lhes dando sequer hipótese de me chumbarem por falta de aproveitamento? Quantas noites passei às voltas na cama desiludido por ser tratado como um cão à frente dos meus camaradas – lá para a frente contar-vos-ei melhor com alguns sórdidos e injustos pormenores – dentro de uma unidade-sede de uma força policial onde seria suposto qualquer cidadão estar em segurança, ser respeitado e bem tratado?

Coitados dos camaradas que tentavam confortar-me à sucapa e com receio de serem também conotados como comunistas ou poderem vir a ter problemas e a ser perseguidos como eu…

- Um homem de sorte, o tanas…

Valiam-me os dois santos Cabos instrutores bem mais humanos e decentes – o R*******s e o G*******o – que não sei se ainda serão vivos porque nunca mais os esqueci mas também nunca mais os vi e que, quando estavam comigo a sós me iam sempre sussurrando bons conselhos: - Estude Coelho! Consiga boas notas… Aguente-se, porque o que lhe estão a fazer é para testar a sua resistência! Não responda nunca às provocações do nosso tenente ou do nosso sargento…  Trabalhe! Aplique-se… Finja que não ouve! Você vai conseguir passar…  Era absolutamente percetível que nenhum deles concordava ou aprovava aquela forma de tratar um modesto candidato a guarda num curso de formação.

Um homem de sorte! Se calhar até há mais gente que pensa assim…

- E o que foram depois três longos anos a caminho do Centro de Instrução da Guarda na Ajuda a frequentar os cursos de promoção, a cabo em 1983, e depois a sargento em 1984 e 1985? Semanas, meses, anos, dias inteiros fechado nas salas de aulas e depois noites a fio até às tantas da madrugada agarrado ao código penal, ao código do processo penal, ao código civil, código da estrada, lei da caça e da pesca, lei das tabernas, dos cafés e de outras tabancas similares, lei das armas e dos explosivos, leis, leis e mais leis, decretos-leis, decretos, resoluções e toda a imensa diarreia legislativa que emana diariamente da Assembleia da República, ao ponto de, muitas vezes, quando são publicadas em Diário da República já estão a sair novas alterações e correções?

Mas não só.

Elaborar complicados inquéritos como se fossem reais sem errar se o envio era dirigido ao ministério público ou ao juiz (de instrução ou titular de menores) consoante a matéria inquirida, elaborar autos de transgressão ou de contra ordenação e outros similares aplicados às milhentas infrações ao código da estrada ou regulamento do mesmo, ou aos jogos de fortuna e azar e outros que tais quando a dinheiro porque quase sempre ilegais, ter de saber sem hesitar quando a sua prática configuraria crime ou mera infração porque no crime a participação seria para tribunal mas a contra ordenação seria para a entidade competente para aplicação da coima...

As divisas douradas que trazia sobre os ombros não as tinha alcançado “por sorte” coisa nenhuma, como o tal senhor referiu. Foi preciso trabalhar muito e duro para as conseguir ter. Só quem por lá passa sabe dar valor e sabe quantas noites de insónia elas custam àqueles que adquirem o direito de as usar. É normal, é humano até, sentir inveja do sucesso dos outros. Mas aqueles que nunca quiseram arriscar, que passaram as noites todas a dormir nas suas camas com as suas esposas, que desfrutaram tranquilamente da companhia dos seus filhos todos os dias, em suma, que não passaram por nenhum sobressalto, não é justo que opinem levianamente que aqueles que se atreveram a ir à luta conseguiram resultados só porque…  Têm sorte.

Nem imaginam como é fácil e simples folhear perceber e decorar   centenas de páginas de diários da república, de leis, de decretos-leis, de portarias, de acórdãos, de regulamentos, de posturas, em suma, um verdadeiro inferno de manuais, códigos e cadernos, para depois saber responder corretamente às perguntas das provas escritas semanais. E como se não fosse suficiente essas provas – testes – serem de caráter eliminatório para cada candidato, ainda vinham sempre eivadas de armadilhas com questões falsas e verdadeiras pois só assim era possível aferir quem estudava e percebia o que estava a fazer, dependendo o sucesso no curso desse escrutínio.

E tínhamos ainda as curriculares disciplinas militares. Ordem unida com espingarda mauser, g3 e espada, sujeitas a prova prática pública com atribuição de nota pelo desempenho, topografia, tática de tiro, tiro individual, armamento, legislação da gnr, tática militar, tática das forças de segurança, regulamento de continências e honras militares, todas elas escrutinadas também com testes escritos periódicos. Destes cursos fazem parte, como não podia deixar de ser, as disciplinas de carácter cultural; português, história universal, matemática, ciências, francês, química e física, cidadania em sociedade, entre outras.

Finalmente, havia a parte de educação física, que, tal como todas as outras, era também eliminatória para cada instruendo: Ginástica de manutenção, judo, luta de defesa pessoal, crosses e desportos diversos. Correr manhãs inteiras pelos trilhos da serra de Monsanto que nem tontos atrás dos fisicamente muito bem preparados oficiais instrutores, “malhar” com o canastro no tapete do salão de judo até fazer ooops… E, acima de tudo, manter uma postura digna, educada, obediente, prestável, camarada, porque essa postura também dava nota. A célebre “nota de mérito” para a qual cada aluno tinha os seus observadores que não conhecia nem sabia quem eram e constituía uma perfeita incógnita por ser, só por si, eliminatória. Ou seja, um aluno podia ter uma média de 17 ou 18, mas se a nota de mérito fosse negativa, era eliminado sem remissão.

Resumindo. Os cursos de formação para cabos e sargentos na GNR – hoje não sei mas deduzo que não serão muito melhores – na década de 80 não eram pera doce. Pelo contrário. Era como trazer um machado sempre suspenso sobre a cabeça durante todo o tempo que duravam. Ninguém se sentia a salvo, ninguém dava o fim do curso como um dado adquirido, ninguém podia considerar-se isento de um chumbo porque os crivos a ultrapassar eram muitos e diversos.

Houve colegas que chumbaram por falta de aproveitamento. Alguns logo a meio do curso, nem chegaram a furriéis. Outros no final do curso, dois longos anos depois. Tiveram ao menos a hipótese de repetirem o curso seguinte sem necessidade de irem a novas provas de admissão. Mas muitos deles desistiram de caras porque não quiseram submeter-se a mais dois longos anos longe das suas famílias sujeitos a todo aquele stress.

Sorte! Disse aquele senhor. Vai lá vai…


José Coelho in Histórias do Cota