1986 - Em Portalegre, já monitor e adjunto do comandante do pelotão
Um homem de sorte
Nos
idos de 85/86 e morando eu ainda em Nisa onde exercia a minha profissão vim certo
dia visitar os meus pais e família como era habitual. Mais tarde, antes do
regresso a Nisa, passei pela pastelaria da aldeia como também era meu hábito, para
tomar um café e trocar uns dedos de conversa com os conterrâneos que por lá
costumavam estar. Foi nessa ocasião que um senhor que por acaso nem é da Beirã
mas cá vive há muitos anos – não interessa nome – em amena cavaqueira, referindo-se
ao facto de eu ter atingido uma graduação profissional pouco alcançada por muitos
dos conterrâneos que, como eu, optaram pelas forças de segurança, afirmou
convictamente:
-
Ó Zé Manel! Tu és um homem de sorte! Quem diria que havias de conseguir chegar
tão longe…
-
Sorte? Perguntei. - Ai basta que sim…
E
o que eu penei com os inúmeros enxovalhos de que fui alvo no alistamento em
Portalegre às mãos do tenente comandante de pelotão e do sargento seu adjunto
que tudo fizeram para correrem comigo do curso por, supostamente, eu ser comuna?
Em 1979 já tinha sido extinta a Pide há cinco anos. Porém, estes comportamentos
fascizóides de algumas mentalidades ainda existentes nas forças de segurança
mesmo depois de passada já meia década após o 25 de abril, eram piores
do que os dos agentes daquela polícia internacional e de defesa do estado
fascista com quem eu sempre convivi na minha aldeia e que nunca vi fazerem a
ninguém nem metade das heresias que me fizeram a mim aqueles dois graduados, já
em tempo de liberdade e suposta tolerância democrática.
-
Sortudo, chamou-me aquele senhor. Tá bem, abelha…
-
E o que eu tive que me esforçar durante todo o alistamento para conseguir ter notas
acima dos 17 valores nos testes e dessa forma vencer a má-fé que me rodeava por
parte daqueles senhores oficial e sargento, não lhes dando sequer hipótese de
me chumbarem por falta de aproveitamento? Quantas noites passei às voltas na
cama desiludido por ser tratado como um cão à frente dos meus camaradas – lá
para a frente contar-vos-ei melhor com alguns sórdidos e injustos pormenores –
dentro de uma unidade-sede de uma força policial onde seria suposto qualquer
cidadão estar em segurança, ser respeitado e bem tratado?
Coitados
dos camaradas que tentavam confortar-me à sucapa e com receio de serem também
conotados como comunistas ou poderem vir a ter problemas e a ser perseguidos
como eu…
-
Um homem de sorte, o tanas…
Valiam-me
os dois santos Cabos instrutores bem mais humanos e decentes – o R*******s e o G*******o
– que não sei se ainda serão vivos porque nunca mais os esqueci mas também
nunca mais os vi e que, quando estavam comigo a sós me iam sempre sussurrando
bons conselhos: - Estude Coelho! Consiga boas notas… Aguente-se, porque o que
lhe estão a fazer é para testar a sua resistência! Não responda nunca às
provocações do nosso tenente ou do nosso sargento… Trabalhe! Aplique-se… Finja que não ouve! Você
vai conseguir passar… Era absolutamente
percetível que nenhum deles concordava ou aprovava aquela forma de tratar um
modesto candidato a guarda num curso de formação.
Um
homem de sorte! Se calhar até há mais gente que pensa assim…
-
E o que foram depois três longos anos a caminho do Centro de Instrução da
Guarda na Ajuda a frequentar os cursos de promoção, a cabo em 1983, e depois a
sargento em 1984 e 1985? Semanas, meses, anos, dias inteiros fechado nas salas
de aulas e depois noites a fio até às tantas da madrugada agarrado ao código
penal, ao código do processo penal, ao código civil, código da estrada, lei da
caça e da pesca, lei das tabernas, dos cafés e de outras tabancas similares,
lei das armas e dos explosivos, leis, leis e mais leis, decretos-leis,
decretos, resoluções e toda a imensa diarreia legislativa que emana diariamente
da Assembleia da República, ao ponto de, muitas vezes, quando são publicadas em
Diário da República já estão a sair novas alterações e correções?
Mas
não só.
Elaborar
complicados inquéritos como se fossem reais sem errar se o envio era dirigido ao
ministério público ou ao juiz (de instrução ou titular de menores) consoante a
matéria inquirida, elaborar autos de transgressão ou de contra ordenação e
outros similares aplicados às milhentas infrações ao código da estrada ou
regulamento do mesmo, ou aos jogos de fortuna e azar e outros que tais quando a
dinheiro porque quase sempre ilegais, ter de saber sem hesitar quando a sua
prática configuraria crime ou mera infração porque no crime a participação
seria para tribunal mas a contra ordenação seria para a entidade competente
para aplicação da coima...
As
divisas douradas que trazia sobre os ombros não as tinha alcançado “por sorte” coisa
nenhuma, como o tal senhor referiu. Foi preciso trabalhar muito e duro para as
conseguir ter. Só quem por lá passa sabe dar valor e sabe quantas noites de insónia
elas custam àqueles que adquirem o direito de as usar. É normal, é humano até,
sentir inveja do sucesso dos outros. Mas aqueles que nunca quiseram arriscar, que
passaram as noites todas a dormir nas suas camas com as suas esposas, que desfrutaram
tranquilamente da companhia dos seus filhos todos os dias, em suma, que não passaram
por nenhum sobressalto, não é justo que opinem levianamente que aqueles que se atreveram a ir à luta
conseguiram resultados só porque… Têm sorte.
Nem
imaginam como é fácil e simples folhear perceber e decorar centenas de páginas de diários da república,
de leis, de decretos-leis, de portarias, de acórdãos, de regulamentos, de posturas,
em suma, um verdadeiro inferno de manuais, códigos e cadernos, para depois saber
responder corretamente às perguntas das provas escritas semanais. E como se não
fosse suficiente essas provas – testes – serem de caráter eliminatório para
cada candidato, ainda vinham sempre eivadas de armadilhas com questões falsas e
verdadeiras pois só assim era possível aferir quem estudava e percebia o que
estava a fazer, dependendo o sucesso no curso desse escrutínio.
E
tínhamos ainda as curriculares disciplinas militares. Ordem unida com espingarda
mauser, g3 e espada, sujeitas a prova prática pública com atribuição de nota
pelo desempenho, topografia, tática de tiro, tiro individual, armamento,
legislação da gnr, tática militar, tática das forças de segurança, regulamento
de continências e honras militares, todas elas escrutinadas também com testes
escritos periódicos. Destes cursos fazem parte, como não podia deixar de ser, as
disciplinas de carácter cultural; português, história universal, matemática,
ciências, francês, química e física, cidadania em sociedade, entre outras.
Finalmente,
havia a parte de educação física, que, tal como todas as outras, era também eliminatória
para cada instruendo: Ginástica de manutenção, judo, luta de defesa pessoal,
crosses e desportos diversos. Correr manhãs inteiras pelos trilhos da serra de
Monsanto que nem tontos atrás dos fisicamente muito bem preparados oficiais
instrutores, “malhar” com o canastro no tapete do salão de judo até fazer
ooops… E, acima de tudo, manter uma postura digna, educada, obediente,
prestável, camarada, porque essa postura também dava nota. A célebre “nota de
mérito” para a qual cada aluno tinha os seus observadores que não conhecia nem
sabia quem eram e constituía uma perfeita incógnita por ser, só por si, eliminatória.
Ou seja, um aluno podia ter uma média de 17 ou 18, mas se a nota de mérito
fosse negativa, era eliminado sem remissão.
Resumindo.
Os cursos de formação para cabos e sargentos na GNR – hoje não sei mas deduzo que não
serão muito melhores – na década de 80 não eram pera doce. Pelo contrário. Era
como trazer um machado sempre suspenso sobre a cabeça durante todo o tempo que
duravam. Ninguém se sentia a salvo, ninguém dava o fim do curso como um dado
adquirido, ninguém podia considerar-se isento de um chumbo porque os crivos a
ultrapassar eram muitos e diversos.
Houve
colegas que chumbaram por falta de aproveitamento. Alguns logo a meio do curso,
nem chegaram a furriéis. Outros no final do curso, dois longos anos depois.
Tiveram ao menos a hipótese de repetirem o curso seguinte sem necessidade de
irem a novas provas de admissão. Mas muitos deles desistiram de caras porque
não quiseram submeter-se a mais dois longos anos longe das suas famílias
sujeitos a todo aquele stress.
Sorte!
Disse aquele senhor. Vai lá vai…
José
Coelho in Histórias do Cota