quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Coisas q'escrevi...

Na camarata, depois do turno de trabalho na mina


Com a mala às costas (outra vez)


Tornou-se evidente que eu não iria conseguiria arranjar trabalho por estas bandas. Provavelmente por se ter apercebido de alguns dos tais comentários a meu respeito e deduzindo logicamente que eram consequência da minha colaboração nas suas atividades políticas, o doutor Teixeira Alves incentivou-me a ingressar na guarda-fiscal que por essa altura abrira concurso. Mas para mim essa opção estava completamente fora de questão. Frustrado com a minha teimosia o doutor exclamara, irritado:

- Bolas, Zé Manel! Os empregos tão escassos e tu tão selectivo!

Não era que eu tivesse alguma coisa contra os pica-chouriços. Muito pelo contrário. Nasci e cresci rodeado deles e das suas excelentes famílias porque na Beirã desse tempo as casas, porta sim, porta não, eram moradia de guardas. E os meus companheiros de escola amigos de brincadeira, os filhos deles. Mas a perspectiva de envergar novamente uma farda era muito prematura depois do que tinha penado dentro de outra. As lembranças e os traumas ainda não se haviam dissipado. De todo. Se hoje passadas tantas décadas continuam a persistir, como seria então, passados apenas meia dúzia de meses? Daí o meu raciocínio e único motivo para instintivamente rejeitar tal hipótese.  

No entanto, era também ponto assente que naquelas circunstâncias eu não podia continuar à espera. Não era justo estar a sobrecarregar os meus pais com o meu sustento porque eles tinham as minhas irmãs mais novas ainda pequenas sendo auxiliados nas despesas da casa apenas pelo pequeno ordenado da minha irmã mais velha que trabalhava na alfaiataria Barradinhas a ganhar cento e cinquenta escudos por mês.

Quis a sorte que um primo da minha mãe, o João Gaspar que Deus já chamou, viesse passar uns dias de férias à Beirã. Era mineiro há já alguns anos na Panasqueira onde laboravam também muitos outros conterrâneos do concelho de Marvão. E todos lá residiam com as suas famílias. Não só familiar como velho e querido amigo de longa data, apercebendo-se das minhas dificuldades em conseguir sustento por aqui, comprometeu-se generosamente e sem que eu lho tivesse sequer pedido, a tentar que me admitissem na empresa onde ele trabalhava, e onde também, por ser um dos mais velhos e conceituados operários, tinha bons conhecimentos entre os engenheiros da direcção.

Prometeu, cumpriu.

Logo na semana seguinte recebi uma carta sua a indicar-me que me apresentasse à inspeção médica obrigatória dali a alguns dias, mas avisando também que devia levar logo roupa suficiente uma vez que iria começar a trabalhar já no dia 1 do mês seguinte que se aproximava. Não era uma hipótese. Era uma certeza. Tinha sido admitido. Feliz da vida, lá fui eu cheio de esperança e de projectos no futuro.

Naquele tempo as Minas da Panasqueira pareciam ser no fim do mundo. Tinha que ir de autocarro da Beirã até Portalegre. Ali mudava para outro que ia para Nisa. Em Nisa mudava para outro que ia para Castelo Branco. Em Castelo Branco apanhava o comboio até ao Fundão. No Fundão tinha que esperar pelo autocarro de São Jorge da Beira que fazia todas aquelas aldeias e passava na Barroca Grande, onde está sediada a empresa mineira inglesa Beralt Tin & Wolfram, que, suponho, ainda hoje detém aquela exploração mineira, se bem que mais reduzida.

Eram dez horas de viagem e uma pessoa chegava lá mais moído do que carne picada. Mas valeu a pena. E como valeu! Foi o lugar onde mais gostei de estar em toda a minha vida. As pessoas eram simplesmente fabulosas. O primo João Gaspar, a esposa Maria José e os seus dois rapazes, o António e o Zé Manel. O primo Antero, a esposa e as filhas. O José Mouro e toda a sua família. E muitos outros. Marvanenses dos quatro costados, gente de bem e profundamente solidária que me receberam e acarinharam como se de um filho seu se tratasse. Há coisas que nunca mais se esquecem na vida e favores que jamais conseguiremos retribuir por mais anos que vivamos.

Bem se diz que na sua terra ninguém é profeta. Difamado injustamente por pessoas que sempre conhecera e estimara, perseguido por “crimes” que em momento algum cometi, fui lá tão longe ser recebido de braços abertos por pessoas sumamente generosas e solidárias. Algumas eram da minha família, sim. Mas outras, apesar de serem conterrâneas, nunca as tinha conhecido na minha vida. De tal modo foi gratificante aquela radical mudança no meu dia-a-dia que mais uma vez senti no mais profundo do meu íntimo que Alguém estaria novamente a escrever direito por linhas tortas.

O trabalho na mina era duro e arriscado. Mas esse pormenor era irrelevante perante o restante cenário que me proporcionava tudo aquilo que eu mais precisava. Estabilidade. Trabalho certo e bem remunerado. Um vencimento mensal três vezes superior àquele que se praticava no concelho de Marvão. Amizade, camaradagem e solidariedade humanas e genuínas de um montão de gente boa. Vivia plenamente feliz cada um dos meus dias. Os mineiros eram uma enorme e imensa família. E eu sentia-me como se lá tivesse vivido sempre. Nunca na minha vida tinha vivido tamanha ventura, tão íntimo bem-estar. Foi onde conheci e aprendi alguns daqueles valores que são muito mais valiosos que todo o dinheiro do mundo.

Naquele início de 1975 éramos mais de dois mil os trabalhadores da Beralt entre os mineiros que trabalhávamos no interior da terra, os operários da lavaria – mecanismo de lavagem dos minérios à boca da mina – os camionistas e maquinistas exteriores, o pessoal administrativo, os funcionários do hospital particular da empresa, do clube de recreio e de toda a panóplia do apoio logístico que à época era um autêntico luxo, tendo em conta a precaridade de condições existentes noutra qualquer empresa nacional desse tempo. Os ingleses não brincavam em serviço e cuidavam primorosamente do bem-estar de todos os seus funcionários desde o administrador da empresa até às senhoras da limpeza.

A mina e a lavaria laboravam 24 sobre 24 horas em 3 turnos rotativos de 8 horas. E todos fazíamos os 3 turnos. À semana. Um das zero às oito da manhã, outro das oito às dezasseis e outro das dezasseis às zero. Nas encostas envolventes da Barroca Grande tinham sido construídos um moderno hospital, uma igreja, uma escola, uma creche, um clube recreativo, um campo de futebol e um ringue de patinagem, além de vários e excelentes bairros habitacionais onde residiam mais de quinhentas famílias dos mineiros. No vale adjacente foram implantados um refeitório self-service e quatro imensos dormitórios, cada um com vinte quartos, cada quarto com capacidade para quatro mineiros, todos devidamente equipados com aquecimento central e instalações sanitárias individuais com duche de água quente para acomodar os mineiros que como eu lá não tinham a sua família mas usufruíamos assim da mesma maneira de todas as comodidades...


José Coelho in Histórias do Cota