O Dr a assinar como testemunha de casamento da minha irmã
Doutor, amigo, conselheiro
Foi colocado em meados desse ano
de 1974 a chefiar a Alfândega. Era uma excelente pessoa e ainda melhor amigo. O doutor
Teixeira Alves. Conhecemo-nos no Clube da Beirã quando a malta por lá se
reunia a passar os serões. Apesar do alto cargo que já então exercia, era um
jovem pouco mais velho que eu. Tinha apetência para a política e nas suas horas
livres ensinava-nos e explicava-nos muitas coisas sobre o recente golpe de
estado assim como tudo o que viria a seguir. Militava no MDP/CDE, um partido,
dizia-se, filho legítimo do PCP. Era um homem muito culto mas de linguagem simples, capaz de ser entendida
até pelas pessoas mais analfabetas e manifestava em todas as suas atitudes uma
postura extremamente moderada.
Foi por acaso que nos tornámos amigos. Eu continuava por aqui sem conseguir emprego. Fazia um ou dois meses de
trabalho precário aqui ou ali, a fega da azeitona do Pereiro de Novembro até Fevereiro e pouco mais. Por isso o doutor pedia-me quase sempre para o acompanhar quando ia discursar em sessões de esclarecimento pelas localidades ao redor da Beirã, em virtude
de eu conhecer melhor a zona e inclusivamente as pessoas, as quais, muitas
vezes, por terem mais confiança comigo do que com ele, me punham as questões e
as dúvidas a mim para eu posteriormente lhas transmitir e ele oportunamente as esclarecer.
Foi este senhor doutor que incentivou a
criação de células dos primeiros sindicatos que, entretanto, começavam a surgir. E o que entre nós teve mais impacto e imediata adesão foi o sindicato dos
trabalhadores rurais. Havia no entanto um enorme contratempo. O analfabetismo de quase cem por cento desses trabalhadores. Então, sob a orientação do doutor, alugou-se uma
casa à entrada da aldeia que foi minimamente mobilada com móveis usados e oferecidos por algumas pessoas, ali se tendo fundado a primeira sede local de sindicato. Procedeu-se a eleições e entre os sindicalizados foram eleitos três
representantes, todos eles trabalhadores da herdade do Pereiro. Nenhum sabia
ler nem escrever. Em virtude disso, pediu-me o doutor se não me importava de
passar diariamente pela sede do recém-criado sindicato para fazer a escrita
necessária e que se limitava ao preenchimento das fichas individuais dos
aderentes, escriturar as quotas mensais, receber o seu pagamento e posteriormente entregá-lo aos elementos eleitos da direção sindical.
Nunca auferi vencimento algum
pelo que fiz, assim como nunca assumi qualquer vínculo partidário. Não tinha pressa em me
filiar em qualquer partido à toa, porquanto desconhecia completamente o que
representava cada um deles e se o que defendia me interessava ou convinha. Como já escrevi
noutro texto, andava naquela fase de ver, ouvir e entender, para só depois então decidir. Fui muitas vezes a Portalegre com o doutor, conheci e convivi de perto
com algumas individualidades que mais tarde chegaram a deputados da Assembleia
da República mas nunca fui além de mero observador das lides políticas em que
andavam envolvidas todas aquelas personalidades.
De nada me valeram contudo as minhas
reservas, porque, entretanto, adquiri, sem me dar conta, o estatuto de "comuna" e
passei a ser olhado com maus olhos por muito boa gente que eu julgava amiga. Ao
doutor faziam vénias e lambiam as botas. A mim atiravam pedras. Pudera! Ele era
o senhor doutor, ninguém ousava insultá-lo. Vai lá, vai… Era muito mais fácil
falarem de mim aquilo que não se atreviam a dizer dele. Porém, como quem não
deve não teme, nunca me preocupei muito com isso, apesar de, obviamente, me
causarem algum constrangimento as atitudes dessa gentinha menor que engrandecia os poderosos e minimizava os seus iguais. Só muito mais tarde,
4 ou 5 anos depois, é que me dei realmente conta do quanto tinha sido prejudicado por causa de tudo isso. Mas a seu tempo escreverei pormenorizadamente acerca dessas iniquidades.
Na continuação daquilo que foi a
minha vida depois de chegar da tropa nesses agitados meses pós 25 de Abril, havia a necessidade urgente de nomear provisoriamente três elementos da aldeia com alguma capacidade para gerir a Junta de Freguesia da
Beirã e assegurar o funcionamento da mesma até às eleições livres que
entretanto estavam já a ser preparadas, uma vez que os anteriores membros foram
tacitamente destituídos no momento em que o governo de Marcelo Caetano caiu.
Para a Câmara Municipal de Marvão
sucedera o mesmo e do seu elenco provisório fazia parte um velho e querido
conterrâneo, o João Forte – o Barbas – amigo de toda a vida do meu pai e que me
pediu que integrasse o elenco provisório da Junta de Freguesia enquanto tal fosse
necessário. Vindo o pedido de quem vinha, confiadamente aceitei sem hesitar. Dias depois fomos empossados oficialmente em acta pública na Câmara Municipal de Marvão. Já não recordo a data mas decerto
por lá estará registada em livro próprio essa nossa tomada de posse. Sei os nomes
dos outros elementos e só não os vou mencionar por achar isso irrelevante. Um
foi nomeado presidente, eu fui nomeado secretário e o terceiro elemento,
tesoureiro. Exercemos com honesta responsabilidade as funções que nos foram confiadas e honrou-me ter merecido do João Forte tal convite.
Só é pena que a minha permanente
disponibilidade para colaborar em tudo aquilo que me foi solicitado tivesse quase sempre resultado em enormes decepções e algumas injustiças. Nunca pretendi alcançar louros
para mim nem pelouros para os meus. Apenas me interessou sempre o bem comum
da comunidade à qual pertenço e muito prezo. Contudo, às vezes, o reconhecimento público e o respeito daqueles por quem somos capazes de dar a cara, não fazia mal a ninguém e incentivaria a fazer mais e melhor. Porque tanta lambada injustamente já levei, hoje
não vou muito em cantigas. Fico-me sossegado no meu canto e só aceito seja o que for depois de pensar muito bem primeiro.
Água
mole em pedra dura…
José Coelho in Histórias do Cota