Estandarte do Batalhão de Cavalaria 3871 - Angola 1972-1974
Inferno verde (3)
O
BCav3871 – Batalhão de Cavalaria Nº 3871, era composto por quatro companhias de
cavalaria. A CCS – Companhia de Comando e Serviços, a CCav3486 – Companhia de
Cavalaria Nº 3486, a CCav3487 – Companhia de Cavalaria Nº 3487 e a CCav3488 –
Companhia de Cavalaria Nº 3488. Duas ficaram aquarteladas no Belize, uma foi
para lá da serra do Muábi a norte do Belize para o Caio Guembo, a outra foi para Sanga Planície
ainda mais a norte e guarnecia também com os seus militares um posto avançado permanente no Miconje mesmo na
linha de fronteira com o Congo Brazzaville onde o MPLA tinha a sua sede
operacional. Vivíamos, por isso, paredes meias com o ninho das vespas.
Estes
dois últimos aquartelamentos – Sanga e Miconje – foram sistematicamente
massacrados com ataques que provocaram inúmeras baixas, destruição de viaturas
e das edificações que tinham que ser de novo reconstruídas para além da
profunda desestabilização geral no moral das tropas. Era sem dúvida a zona mais
problemática e perigosa de toda a nossa área. Cada um de nós sempre que tínhamos
que nos deslocar para aquelas bandas temíamos no mais íntimo do nosso coração não
regressarmos de lá já pelo nosso pé. Ali como em nenhum outro lugar no mundo ou
momento da minha vida interiorizei cada dia como aquele que podia muito bem ser
o último. Com a mesma naturalidade e aceitação com que encarava as outras
rotinas.
Nos patrulhamentos diários a tensão em cada rosto era perfeitamente visível na forma
como cada militar empunhava a arma de dedo no gatilho e de olhar sempre atento a
qualquer movimento suspeito. Ninguém esboçava o mais leve som. Rostos cobertos
de suor pelo calor sufocante e inevitável nervosismo, olhos varrendo tudo em
redor. Só o monótono ronronar dos motores quebrava o silêncio na lenta e
cuidadosa progressão das viaturas. Era sempre assim. Dia após dia, semana após
semana, mês após mês. Mas de pouco nos valiam tantas precauções porque subitamente
aquela calma aparente era interrompida pelo estrondo de qualquer coisa. Uma
passagem feita de troncos sobre uma linha de água rebentada à bomba, uma mina
pisada, rajadas de tiros vindos nunca se sabia de onde, naquele impenetrável inferno
verde capaz de esconder até a luz do sol lá dentro.
Os
primeiros alvos a serem atingidos eram quase sempre os condutores e os
camaradas que seguiam ao seu lado. Estes camaradas eram, normalmente, o
comandante da força atrás do qual se posicionava sempre o operador do radio que
dele recebia todas as ordens e instruções a comunicar para a base. Com a
finalidade de confundir o inimigo e proteger um pouco mais o homem do radio, o nosso
comandante determinara que se colocassem antenas de rádio em todas as viaturas dos patrulhamentos pela mata. E o graduado – oficial ou sargento – comandante da mesma,
mais o operador radio, tanto podiam ir na primeira viatura como nas do meio ou
na última. Ninguém ali usava divisas ou galões, fosse cabo, sargento ou
oficial. Em marcha éramos todos iguais para quem nos visse ao longe. Foram dois
anos. Mas cada um teve, para nós, a duração de dez. Conhecemos, durante esse
tempo, todas as emoções boas e más que cada soldado carrega no peito pela sua frágil
condição humana. Medo, angústia, desalento, raiva, resignação.
Espantosos
foram, sem dúvida, o espírito de sacrifício, a amizade e camaradagem intrínseca que se desenvolveu entre todas as patentes sem exceção, a capacidade de adaptação e de aceitação
que todos acabámos por adquirir à medida que os meses foram passando. Mas não há
palavras capazes de descrever o que cada um de nós sentia quando víamos estendido
à nossa frente, já morto, coberto de sangue e de pó, horrorosamente desfigurado,
às vezes amputado, aquele camarada que horas antes almoçara na nossa mesa,
falara da sua mãe, da namorada, do filho ou do pai que tinha em casa à sua
espera. Aquela visão causava-nos uma dor sem explicação. Ninguém merece morrer
assim abatido à traição sem qualquer hipótese de se defender. Maldita guerra. As
memórias são muitas e infelizmente mais as más do que as boas mas vou descrever
apenas meia dúzia delas, talvez as que, pela sua injusta violência, nunca
consegui esquecer. Que descansem em paz, todos os que tombaram. A geração
atual, felizmente, já não passará por isso. E aqueles que tinham obrigação de
honrar a memória dos que tombaram, há muito os esqueceram, preocupados apenas
com os seus interesses. Restamos nós, aqueles que com eles convivemos, para
fraternamente os recordarmos como irmãos heróis.
O
nosso batismo de fogo aconteceu poucos dias depois daquele ataque que vitimou
os camaradas da unidade vizinha que já referi. Fomos vítimas dessa primeira
emboscada de moldes muito parecidos com os da emboscada no Chimbete, só que sem
o uso de roquetes por parte do MPLA. Uma coluna nossa que se deslocava para o Sanga
Planície foi atacada numa curva conhecida pelo sugestivo nome de “curva da
morte” e um nosso camarada condutor de uma das viaturas, o soldado Vitoriano, foi
abatido. A primeira baixa do BCav3871. Uma rajada de metralhadora vinda do
alto aterro que bordejava a curva desfez-lhe o rosto e parte da cabeça deixando
a sua massa encefálica espalhada por todo o para-brisas do unimog. Um pavor de
recordação. Aconteceu de repente. Como sempre. Sem qualquer sinal ou pré-aviso.
Do aparente sossego da densa floresta o inferno abatia-se assim brutalmente sobre
as colunas em progressão. Muitos dos camaradas que ao som do primeiro tiro saltavam
compulsivamente das viaturas, caíam sobre as minas anti-pessoal
estrategicamente armadilhadas pelo inimigo na zona de morte da emboscada. E ao serem
pisadas pelos aflitos militares à procura de abrigo, explodiam sob os seus pés,
provocando ainda mais baixas e piores danos.
O
MPLA atacava assim mesmo. Como se nós fôssemos caça e eles os caçadores. Oculto
em locais imprevisíveis. E a seguir retirava com relativa segurança por trilhos
que só eles conheciam. O alerta era dado de imediato via rádio, e, pouco tempo
decorrido, os bombardeiros sedeados em Cabinda sobrevoavam o local e
bombardeavam as proximidades da zona onde tinham ocorrido as emboscadas. Mas
nunca encontrámos vestígios de baixas ou outros estragos visíveis provocados ao
inimigo nesses contra-ataques quase simultâneos.
Aquele
ataque na curva da morte que vitimou o Vitoriano foi apenas o começo. Dali em
diante nunca mais houve paz para os Cavaleiros do Maiombe. O MPLA que estava a
“levar nas lonas” no Leste de Angola “virou-se” em força para Cabinda. Equipado
já então com os lança granadas foguete RPG2 e RPG7, armas terríveis de fácil
transporte e pontaria, bem como com as espingardas Kalashnikov, contra as
nossas já ultrapassadas G3 ou as nossas bazucas de difícil manejo e transporte,
empenhou-se em dizimar quanto pôde as unidades sedeadas no enclave de Cabinda.
Ao “meu” BCav3871, conseguiu de tal modo que das suas 4 companhias inicias
pouco mais de 3 regressaram a casa sãs e salvas no final da comissão. Total de baixas,
121. Mortos em combate, 18. Feridos graves evacuados 103.
Recordo
cada camarada que tombou, morto ou gravemente ferido. Cada um deles era um
amigo, muito mais próximo de parente do que de amigo, porque viver em grupo naquelas
condições aproxima as pessoas e estabelece entre elas laços de profunda fraternidade
e solidariedade. O problema de um tornava-se no problema de todos. De tal modo
isto é assim que ainda hoje mantenho contacto com alguns desses velhos camaradas
d’armas. Eu nunca fui por motivos diversos, mas desde que regressámos em Junho
de 1974 que muitos Cavaleiros do BCAV 3871 se reúnem no mês de Maio de cada ano
para convívio e confraternização. Apesar de nunca ter lá ido, todos os anos, mas
mesmo todos, em finais de Abril inícios de Maio, recebo a respetiva carta-convocatória
para o almoço-convívio, enviada pelos respetivos organizadores de cada ano.
Mas
não os esqueci.
Recordo
aquele camarada que ficou gravemente ferido nas pernas mas como os ferimentos
permitiam que viesse sentado num unimog, cedeu generosamente o seu lugar na
ambulância a um outro camarada ferido com menor gravidade mas cuja ferida não
lhe permitia sentar-se. Só que, poucas centenas de metros mais à frente, já no
regresso ao quartel, aquela coluna de socorro foi novamente atacada depois de
recolher os estropiados. E o generoso camarada ferido nas pernas que vinha no
unimog, por não ter conseguido saltar da viatura a tempo, morreu sentado sobre
o banco, trespassado pelas cobardes balas inimigas, enquanto o outro camarada, aquele
que vinha na ambulância no seu lugar, nada mais sofreu, apesar de a ambulância
ter sido também alvejada por aquele bando de selvagens.
Não
se atacam colunas onde as ambulâncias regressam com feridos. É
internacionalmente convencionado e proibido, seja em que guerra for. O MPLA excedeu
todos os limites da compreensão humana. Aquilo não foi um acto de guerra. Foi
uma selvajaria.
Recordo,
sem compreender ainda hoje porquê, aquela coluna de camaradas de Sanga Planície
tão furiosamente atacada e da qual resultaram 3 mortos e 10 feridos quando se
deslocava para a aldeia de Kungombundo para ir inaugurar a pequena escola que
os Cavaleiros do Maiombe ali tinham ajudado a construir. Nessa coluna se
transportava também algum mobiliário e material escolar para as crianças fiote.
Foi a forma que o MPLA entendeu justa para compensar o empenho “dos branco”
como eles diziam . A raiva surda e a revolta que ficou na malta, era insuportável.
Recordo
também, entre muitas outras coisas ainda, a resignação de um camarada que pisou
uma mina que ao explodir lhe decepou um pé. Com o estrondo do rebentamento toda
a secção se atirou ao chão e ficou abrigada no mato à espera do que viesse a
seguir. Por fim e como mais nada buliu, toda a gente percebeu o que tinha
acontecido. Fora acionada uma mina isolada por um militar incauto. Ao chegarem junto do ferido, o soldado Bento, estava já ele a limpar com o lenço a terra que
ficara agarrada ao coto já sem o pé e que, com enorme sangue frio apenas
comentou: - Vá lá, podia ter sido pior… Com um pé de borracha isto remedeia-se!
O
tal espírito de resignação e de aceitação que lá atrás referi. Qualquer coisa era melhor do que a morte desde que tivesse remédio...
Foi
de imediato pedido pelo rádio um meio aéreo para evacuar aquele ferido tão grave do meio
da mata. E veio um helicóptero mas que só apareceu passado demasiado tempo por
culpa da fraca visibilidade provocada naquele dia pelo cacimbo e para desespero de todos
os que ali aguardavam a sua chegada, especialmente o ferido, a quem muito valeu o
impecável desempenho do enfermeiro que lhe prestou os primeiros socorros, fez e aliviou consecutivamente o garrote para estancar na medida do possível a hemorragia e lhe ministrou o composto de morfina para ele não
sentir as dores nem entrar em estado de choque.
Recordo
finalmente o meu excelente camarada de equipa e grande amigo do peito soldado de
transmissões Borges que me pediu para eu o deixar ir no meu lugar a Lândana
porque morria de saudades do mar. É que na vida civil ele era pescador da Afurada
em Gaia e o lugar mais próximo onde havia oceano era Lândana, a 200 km do Belize.
Só que naquele dia por escala calhava-me a mim fazer o serviço-radio da coluna que ia deslocar-se àquela localidade. Perante os insistentes pedidos
e depois de a troca ter sido concedida pelo tenente Amaral Dias, lá foi no meu
lugar o meu amigo pescador matar as saudades do seu querido mar. Em má hora o
fez. Um despiste seguido de capotamento da viatura em que ele seguia deixou-o tão gravemente ferido que teve de ser evacuado para Luanda e dali
para Lisboa. Não mais voltou ao Maiombe. E eu… Até hoje não compreendi. Era
habitual precisamente o contrário. Porque eu, o cabo mais antigo da equipa e por isso o chefe
direto deles é que ia muitas vezes no seu lugar. No lugar de todos eles,
recorrentemente. Mas, naquele dia…
Porquê?
Continua…
José
Coelho in Histórias do Cota