segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

domingo, 29 de janeiro de 2017

Coisas q'escrevi

O sorriso ingénuo desta foto em Estremoz...

... ficou perdido algures no Maiombe.


Regresso a Casa - Pai


Saciada que foi momentaneamente a saudade da minha mãe, abracei também com muito carinho uma emocionada prima-irmã Antonieta que a acompanhava, inteirando-me ela que os seus pais, os tios Ciro e Maria d’Alegria – cunhado e irmã do meu pai – nos aguardavam também algo ansiosos em casa para jantar.

Entretanto eram quase oito horas da tarde. O meu camarada e hoje compadre Manel – padrinho de batismo do meu primeiro filho conforme foi entre nós combinado no Maiombe e que por isso mesmo se chama também Manel – por ser do norte e em virtude de a sua mãe ter uma prole de mais sete rapazes, quase todos pequenos ainda, a residirem em Santa Cruz do Bispo – Matosinhos, não tinha ninguém à sua espera em Lisboa. E como eu tinha falado bastante daquele camarada à família nos aerogramas semanais, a minha mãe reconheceu-o logo. A primeira coisa que ele lhe disse enquanto a abraçava foi um - "aqui lhe entrego o seu moço são e salvo, tia Florinda..."

Por seu lado a CP como era habitual naquelas circunstâncias tinha organizado um comboio especial militar com destino ao Porto a fim de escoar todos aqueles camaradas que regressaram nesse dia comigo e cuja esmagadora maioria eram do norte. O comboio tinha a saída de Santa Apolónia marcada apenas para as dez da noite. Como ainda dava tempo, levámos o camarada a jantar connosco à Rua das Escolas Gerais nº 4,  3º Dtº  - a casa onde os tios moraram enquanto foram vivos e onde tão bem tratado fui sempre - e fomos depois acompanhá-lo ao embarque duas horas depois. E ali sim pudemos ver que a estação mais parecia um arraial de São João com tantos camaradas felizes, alguns já bem bebidos, outros com familiares, outros sem familiares mas reunidos em grandes grupos a darem larga finalmente à sua bem merecida euforia.

Pernoitámos em casa da tia d’Alegria pelo que só rumámos à Beirã no dia seguinte no comboio expresso TER que ligava Lisboa a Madrid e saía de Santa Apolónia às oito e dez da manhã. Eu continuava ainda ansioso por ver o resto da família que tanto amava. O pai que tinha ficado em casa a cuidar das três irmãs, assim como, evidentemente, a namorada que hoje é a mãe dos meus filhos, os avós, tios, primos, vizinhos e uma legião de amizades.

Desde que chegara a Lisboa estava muito piegas. As lágrimas assomavam-me aos olhos por tudo e por nada, inexplicavelmente. E acho que nunca mais me curei dessa pieguice da qual não me envergonho nada, muito pelo contrário, por ser coisa que herdei do meu saudoso pai, o qual, muitas vezes e com a maior facilidade chorava, bastando o simples facto de lhe darmos um beijo ou um abraço, ou apenas por lhe fazermos um carinho qualquer. Fossem os filhos ou algum dos netos. Penso que por ser uma pessoa tão bondosa comovia-se facilmente e muitas vezes sem qualquer razão aparente. Pena eu dele ter herdado apenas a choraminguice porque no que respeita à bondade nem lhe chego aos calcanhares.

 O elegante comboio azul e prata TER chegou à estação de Castelo de Vide, a penúltima antes da Beirã, faltava um quarto para as onze. E a paisagem tão querida quanto familiar começou a desenrolar-se diante dos meus extasiados olhos. Que delícia! Que saudades eu tivera das minhas pedras, dos meus sobreiros e giestas, daquele aroma cálido e perfumado dos campos secos do início do verão, longe do húmido e pegajoso cacimbo e do interminável verde da sombria floresta tropical.

Parecia ainda quase um sonho mas ali estava Castelo de Vide de um lado da linha e do outro os canchais pontilhados de carvalhos, sobreiros, oliveiras, hortas e casas brancas isoladas, aqui e além. Era mesmo verdade. Ia no comboio que me levava finalmente para casa, para junto de todos os entes queridos e sem aquele habitual aperto no peito causado pela expectativa de ouvir tiros ou explosões a qualquer instante. Tudo isso ficara definitivamente para trás.

Passámos a Ponte das Águas e mais além avistei o Monte da Broca com a grande e cuidada horta do meu pai.

Ufff…

Ainda hoje me arrepio com essa recordação!

Logo a seguir o campo da bola e a Passagem de Nível do Penedo da Rainha. E ele lá vinha, quase a correr pela estrada do Pereiro antes da passagem de nível. O meu pai! E a porra da janela do comboio que não abria! O comboio era climatizado por isso as janelas eram de vidros fixos! Fiz-lhe adeus. Ele viu-me, conheceu-me e fez-me adeus também. Depois de tanto tempo. Depois de ter temido tantas vezes não voltar a abraçá-lo.

Finalmente, a estação da Beirã. E uma dúzia de braços abertos a correrem para mim. Gritos, risos, lágrimas, soluços, beijos. E longos, apertados abraços. Manas, tias, primos, vizinhos, amigos. Tanta gente à minha espera…

Pouco depois, especado à porta da nossa casa, ofegante ainda da correria desde a horta, aguardava-me também lavado em lágrimas, o meu velho amigo e querido Pai.

- Até que enfim estás em casa, filho! Graças a Deus…

Ali ficámos fortemente abraçados tempo sem fim e chorando como duas madalenas arrependidas como se ainda receássemos que fosse mentira…


José Coelho in Histórias do Cota

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Coisas q'escrevi...

As fotos que se enviavam à família eram estas. Porque sim.


Regresso a casa - Mãe


O Boeing 747 descolou do aeroporto de Luanda numa gloriosa manhã de inícios de junho de 1974. Para trás, o estropiado Batalhão de Cavalaria 3871 – Cavaleiros do Maiombe - com quase uma Companhia a menos, deixou finalmente o continente africano. Apesar da barbárie da guerra reafirmo existir por lá muito boa gente, diferente apenas na cor e nos costumes, igual em tudo o resto. Apesar de os ideais de cada uma das partes do conflito serem opostos, a esmagadora maioria da população nada tinha a ver com ele. Pelo contrário, milhares de nativos residentes nas zonas onde se desenrolavam as frentes de guerra mais não eram também muitas vezes do que inocentes vítimas encurraladas entre nós e os guerrilheiros, dos quais nós e eles desconfiávamos, sendo por isso injusta e frequentemente tratados como espiões e inimigos, por ambas as partes.

É assim em todas as guerras; o cidadão anónimo é quem acaba por arcar com as piores consequências. O povo africano queria e tinha o direito de ser livre, independente para decidir o seu futuro e rumo. Nós éramos o ocupante que em nome de um colonialismo já então completamente ultrapassado e desajustado da realidade, visava apenas os seus interesses económicos geridos a partir de Lisboa a oito mil quilómetros de distância, por uma política ditatorial cega, incapaz de vislumbrar os sinais do tempo e do resto do mundo, que não só desaprovava a sua política colonial como, por isso mesmo, apoiava e armava os movimentos independentistas.

É impossível descrever tudo o que senti quando o avião começou a erguer-se no ar. Pela expressão dos seus rostos, julgo que na mente e no coração de todos os meus camaradas deveria passar-se o mesmo. Mas eu tentarei descrever apenas e só o meu estado de espírito. Fora muito bom começar aquele dia a encontrar no aeroporto um conterrâneo marinheiro que estava de regresso a Luanda no mesmo avião que me traria a mim para casa, depois de ter terminado umas férias na metrópole. O Afonso. O nó que se me tinha cravado na garganta, não desatava. Gostei de vê-lo por ser da terra, gostei ainda mais por ele me ter informado que viajara da Beirã para Lisboa no comboio TER com a minha mãe que lá ficara à minha espera. Foi um olá camarada seguido imediatamente de um até depois e boa sorte. Não deu para mais, mas foi sem dúvida muito reconfortante.

Durou oito longas horas o voo entre Luanda e Lisboa. Por mais estranho que pareça, não se vislumbrava em rosto nenhum, qualquer expressão de exuberante felicidade! Quanto muito, talvez expressões de alívio, talvez expressões de incredulidade por ver chegado este dia, talvez ainda também, no mais íntimo dos nossos corações, a expressão de um sincero obrigado a Deus, a Nossa Senhora, a todos os Santos do Céu ou à Providência Divina do credo que cada um professasse. Contudo, apesar dessa enorme gratidão, era impossível não pensar naqueles que haviam ficado pelo caminho. Todos nós tínhamos perdido algum amigo. Todos. E aquilo doía cá dentro de uma forma muito viva e intensa. Era tudo muito recente ainda. Ali, supostamente já em segurança, uma pergunta talvez sacrílega, assolava-me o espírito:

- Porquê?

Porque não foi possível o Céu proteger-nos a todos e a todos trazer de volta aos braços das suas mães, pais, irmãos, esposas, namoradas, famílias? Ainda hoje não entendo e me questiono por isso. Ainda hoje dói a perda desses camaradas, amigos, irmãos, porque, sim…  Naquelas condições extremas os homens são MESMO irmãos. Fossem coronéis, majores, capitães, tenentes, sargentos, cabos ou soldados, éramos uma enorme família, unidos por um destino comum e por uma amizade sincera que em nada impedia o respeito que a cada um era devido. Sempre que morria um camarada chorávamos por igual, sem disfarce nem pudor, independentemente do posto e da hierarquia. Em nenhum outro lugar do mundo conheci tal solidariedade humana. Nunca mais vivi no seio de uma família tão numerosa e unida. Essa foi sem dúvida a maior bênção que obtive da guerra, uma bênção que se mantém intacta até hoje, porque, tanto tempo depois, os laços de amizade fraterna pelos que voltaram, e de sentida memória pelos que tombaram, perduram, perdurarão decerto até ao fim da vida de cada um dos Cavaleiros do Maiombe.

Eram cerca das cinco da tarde quando começámos a avistar Portugal lá do alto, muito alto ainda. A Costa Vicentina primeiro, o Litoral Alentejano a seguir, e, por fim, estávamos a sobrevoar Lisboa. Aterrámos perto das cinco e meia. Formámos ordeiramente como nos tinha sido ordenado para as últimas instruções e recomendações. No aeroporto não havia familiares à nossa espera porque tinham sido encaminhados para o antigo Regimento de Artilharia Nº 1 em Lisboa  - RAL 1 - onde íamos entregar o resto do fardamento e desmobilizar. Tudo isso demorou apenas mais uma hora e meia. Por fim, manifestamente comovidos, despedimo-nos uns dos outros e corremos para o exterior à procura cada um dos seus entes queridos.

E…

Lá estava ela! A minha saudosa e querida Mãe lavada em lágrimas, ansiosa, muito mais magra do que eu alguma vez a imaginara e, no seu amado rosto, o mais evidente eram as profundas olheiras, o sinal mais que revelador da intranquilidade das suas noites e dos seus dias durante todo o tempo que durou a minha ausência. Caímos nos braços um do outro soluçando, incapazes de conter o caudal de ternura e fome de carinho mútuos, porque sempre fomos e somos hoje ainda, eu e ela, particularmente amigos, cúmplices um do outro, além de que, por certo, também ambos pensámos intimamente muitas vezes se nos voltaríamos a ver.

Foi o rebentar de uma torrente caudalosa e desenfreada de emoções contidas durante os últimos longos e sofridos 810 dias que naquele momento se libertaram num turbilhão impossível de conter. E que palavra alguma poderá, por mais que se queira, conseguir descrever. Também eu regressava mudado e diferente. Muito diferente mesmo. Não só com uma pele escura queimada pelo quente clima como também bastante magro e escanzelado como nunca fora, restando apenas 60 quilos dos 75 que costumava ter. Mas sobretudo e também, com uma mentalidade amadurecida à força pela adversidade, completamente estranha àquela provinciana ingenuidade que levara ao partir em Março de 1972.

Devo acrescentar antes de terminar por hoje que nunca, mas nunca mesmo, relatei a alguém as atrocidades que por lá nos aconteciam. Nem eu nem nenhum camarada o fazia. Era ponto de honra de todos e de cada um não inquietar ainda mais quem estava longe e vivia já intranquilo pela nossa ausência, além de que em nada nos poderia ajudar. Na correspondência com a família e amizades apenas se referia que estava tudo bem, que aquilo era um mar de rosas. Até as fotos que enviávamos eram cuidadosamente preparadas, quase sempre em traje civil, como se estivéssemos numa estância turística. E quando fardados, as fotos mostravam com toda a certeza um feliz sorriso de orelha a orelha. Truques simples que todos quantos se preocupam com os seus entes queridos saberão decerto compreender…


José Coelho in Histórias do Cota

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Bom fim de semana...

Ó sino da minha aldeia que neste anoitecer saudavas a Senhora 
Padroeira que ia no seu andor aos ombros dum filho meu.


Ó sino da minha aldeia


Ó sino da minha aldeia,
 Dolente na tarde calma,
 Cada tua badalada
 Soa dentro da minha alma.


 E é tão lento o teu soar,
 Tão como triste da vida,
 Que já a primeira pancada
 Tem o som de repetida.


 Por mais que me tanjas perto
 Quando passo, sempre errante,
 És para mim como um sonho.
 Soas-me na alma distante.


 A cada pancada tua
 Vibrante no céu aberto,
 Sinto mais longe o passado,
 Sinto a saudade mais perto.



Fernando Pessoa

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

O antes e o agora...

 O Belize (ao fundo, à esquerda da foto, o quartel) - Anos 70

O  Belize actualmente

A estrada Cabinda-Belize-Miconje - anos 70

 A mesma estrada actualmente

 O Belize visto do quartel - anos 70

 O Belize visto do mesmo local actualmente

 Picada do Maiombe anos 70

Aspecto actual

Coisas q'escrevi...

Imagem do encontro-convívio de 2016


Inferno verde (conclusão)


Vou concluir as memórias desse tempo da minha vida que mais desejaria esquecer para sempre mas que teimam em se fazer presentes todos estes anos depois mesmo sem nunca mais ter visto desabar do céu os tais 180 litros de chuva por cada metro quadrado de chão.

Se pudesse gostava de voltar ao Maiombe para me reconciliar com ele. Precisava ver como é aquilo agora em tempo de paz apesar de a FLEC não conseguir levar avante a sua luta pela autonomia do enclave. Mas ainda assim parece viverem em paz e com normalidade as populações daquelas aldeias de Miconje, Sanga Planície, Caio Guembo, Luáli, Belize, Buco Zau, Ganda Cango e tantas outras que nós percorremos e onde deixámos algumas amizades apesar de tudo.

É pouco provável que consiga lá regressar porquanto não tenho rendimentos suficientes para me permitir tal luxo que sei ter um custo acima de uma dezena de milhares de euros se com tudo incluído. Mas já consegui, através da tecnologia universal que é a internet, viajar até lá e ver cenários bem mais acolhedores do que aqueles que existiam quando por lá andei. Tenho quase a certeza que nenhum Cavaleiro do Maiombe daqueles que como eu tiveram a sorte de regressar a casa esquecerá algum dia o que lá passou.

Cumpridos os 730 dias de degredo, fomos finalmente rendidos por um novo contingente de camaradas na sua maioria madeirenses que nós recebemos com muita dignidade e camaradagem, incapazes de judiar com eles como tinham judiado connosco dois anos antes, por mais “cacimbados” e felizes que nos sentíssemos também.

Estacionámos duas semanas na cidade de Cabinda já afastados da zona de guerra onde aguardámos a evacuação para Luanda, desta vez por via aérea mas não sem termos primeiro que acudir aos camaradas maçaricos que nos tinham ido render, os quais, logo na primeira semana de estreia no Maiombe sofreram ataques do MPLA de tal ordem que “entupiram” o hospital da cidade com feridos graves. Por esse motivo aquela unidade hospitalar difundiu na Rádio Cabinda um apelo urgente a todos os dadores disponíveis que pudessem ir doar sangue para acudir àqueles recém-chegados combatentes.

Assim que foi difundido o apelo todos os generosos Cavaleiros do Maiombe correram céleres e em massa para o hospital a doarem mais um pouco da sua exausta vida àqueles infelizes camaradas que dela estavam a necessitar numa hora de aflição que todos conhecíamos tão bem.

Poucos dias depois o nosso batalhão foi definitivamente evacuado para a Fazenda Tentativa no Caxito, perto de Luanda, onde aguardámos de Março até Junho o regresso a casa, mas, enquanto aguardávamos o tão ansiado avião continuámos a fazer escoltas às colunas civis na estrada que ligava Luanda-Ambriz-Ambrizete onde não havia já aquele perigo eminente de emboscadas mas, ainda assim, nenhuma viatura civil se atrevia a meter à estrada sem escolta militar! Estávamos na primavera de 74. No Puto, diminuitivo de Portugal na gíria militar, decorria entretanto já a Revolução dos cravos e não havia meio de regressarmos a casa. Assim se cumpriram 27 longos meses de comissão. Mais três que os habituais 24 e inicialmente previstos.

Mas será que foi tudo sempre assim tão mau como nas histórias da desgraçadinha?

Claro que não! Também houve muitos e bons momentos. Principalmente na confraternização e na amizade profunda que se desenvolveu entre camaradas de todas as patentes e de todas as partes do nosso país que ali se misturavam. Na comemoração do Dia da Cavalaria que o batalhão celebrou sempre em cada ano, tivémos, num deles, uma surpresa muito especial. A nossa querida Amália Rodrigues foi ao Belize de avioneta com o seu séquito de guitarristas dos quais só me recordo que um deles era o Jorge Fernando e cantou para nós, deu um beijinho a cada um e levou-nos um carinho muito seu que todos agradecemos e tanto estávamos a precisar.

Todos nós tínhamos também uma namorada fiote na sanzala para nos cuidar do arranjo da roupa e de outras coisas pessoais a troco de alguns escudos angolanos. Além disso eu tive ainda a sorte de lá encontrar um conterrâneo da minha freguesia, o António Maroco, da Fadagosa-Beirã, que era agente da Pide em Cabinda e que, informado pela sua família que eu estava no Belize, duas vezes me foi lá visitar. Devo esclarecer que a visita daquele conterrâneo teve o valor da visita de um irmão. Chorei como um desalmado quando o vi pela primeira vez e sem saber porquê. Hoje ele vive no Brasil para onde se retirou e constituiu família quando da queda do regime de Caetano. Onde quer que esteja que Deus o proteja e lhe pague o bem que as suas visitas me fizeram naquele fim de mundo.

Dentro do quartel a vida também era suportável o quanto baste. Cada um entretido nos seus afazeres, cada um a desempenhar as tarefas à sua responsabilidade. Mas também havia os bons momentos de pausa e descontração. A vivência normal de uma grande família, unida por um destino comum. Além disso, o comando não permitia bandalheiras. Por maior que fosse o isolamento, o aquartelamento estava criteriosamente organizado limpo e arrumado diariamente. E lá dentro cada militar tinha que andar barbeado, limpo e convenientemente fardado. Dizia o grande homem que tivemos por comandante, o general Mário Delgado, na altura ainda só coronel: - Estamos no meio da selva, mas não somos selvagens.

Quando cada um regressava da mata molhado, cheio de lama e cansado já sabia que no dia seguinte tinha que providenciar para que roupa e calçado voltassem a ter um aspecto decente. E não, aquilo não era por militarismo absurdo. Nada disso. Era uma inteligente estratégia do comando para que cada militar não se abandalhasse ou perdesse a compostura perante tantas e permanentes dificuldades. Era a forma de cada um não perder a noção da sua condição de homem e da dignidade a que tinha direito, mesmo no meio de tanta adversidade.

Devido às nossas funções, eu e os meus camaradas de transmissões tínhamos contacto diário com toda a cadeia de comando porque era através de nós que tudo lhes chegava via rádio, quer das outras unidades, quer das chefias superiores de Cabinda, de Luanda e mesmo de Lisboa. Por isso, mais que ninguém nos apercebemos da angústia dos oficiais comandantes na hora dos ataques, na hora de dar instruções debaixo de fogo, na hora de transmitir baixas, mortos ou feridos, na hora de pedir reforços e dar coordenadas exactas da posição das forças que estavam no terreno a ser atacadas. Vi chorar, mais do que uma vez, alguns dos oficiais. E com toda a certeza não choravam de medo mas sim de frustração e angústia.

Quando finalmente chegou a hora da despedida e cada um se preparava para regressar definitivamente ao seu seio familiar, houve abraços de profundo respeito e de sentida amizade entre todos nós, praças, sargentos e oficiais, sem qualquer assomo de militarismo. Apenas e tão só como amigos de longa data, quase todos comovidos também até às lágrimas.

Sem grandes discursos.

Um quase ininteligível “boa sorte camarada e bom regresso a casa” porque aquele sacana de nó que nos apertava a garganta, não permitia muito mais…


José Coelho in Histórias do Cota

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Efeméride...

Fez hoje 41 anos que te pedi:  - Casas comigo?

Aviso laranja ou alarme social?

Foto by Pedro Coelho

Esta foto magnífica de ervas do nosso quintal cobertas de gelo numa manhã de inverno foi concebida pelo meu fotógrafo favorito e mostra sem deixar lugar a dúvidas que o frio não é novidade por terras do norte alentejano.

Desde que me conheço que todos os anos por esta altura vejo transformada numa pedra de gelo sólido a pia das galinhas e até o balde onde os nossos cães bebem água durante o dia. É INVERNO, porra...

Entre 1993 e 2003 quando tinha que sair de casa às sete da manhã no meu Corsa para ir nele até Portalegre onde trabalhava, era também normalíssimo, a partir de finais de novembro e mal o carro saía da garagem, o mostrador do termómetro digital marcar imediatamente -1 ou -2º graus e informar-me em letras vermelhas "Atenção gelo".

E se cá ao cimo da aldeia marcava -1 ou -2º, era certo e sabido que lá em baixo junto à via férrea marcava -3 ou -4. Ao começar a descer a serra de Marvão a partir do Jardim-Portagem-S. Salvador e até aos Alvarrões, era sempre a marcar -4 ou -5º.  Todos os invernos são assim por estas bandas. 

TODOS.

Que o digamos nós na Beirã, assim como os moradores de todo o vale da Aramenha, Prado, Escusa, Castelo de Vide, Martinho...

Não percebo sinceramente tanto alarido, tantos avisos, tanto prenúncio de castástrofe. Porque quem vive cá pelo interior, sabe muito bem, conhece e trata por tu o frio a sério.  

Mas DESDE SEMPRE.

Haja pachorra...

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Coisas q'escrevi...

Estandarte do Batalhão de Cavalaria 3871 - Angola 1972-1974


Inferno verde (3)


O BCav3871 – Batalhão de Cavalaria Nº 3871, era composto por quatro companhias de cavalaria. A CCS – Companhia de Comando e Serviços, a CCav3486 – Companhia de Cavalaria Nº 3486, a CCav3487 – Companhia de Cavalaria Nº 3487 e a CCav3488 – Companhia de Cavalaria Nº 3488. Duas ficaram aquarteladas no Belize, uma foi para lá da serra do Muábi a norte do Belize para o Caio Guembo, a outra foi para Sanga Planície ainda mais a norte e guarnecia também com os seus militares um posto avançado permanente no Miconje mesmo na linha de fronteira com o Congo Brazzaville onde o MPLA tinha a sua sede operacional. Vivíamos, por isso, paredes meias com o ninho das vespas.

Estes dois últimos aquartelamentos – Sanga e Miconje – foram sistematicamente massacrados com ataques que provocaram inúmeras baixas, destruição de viaturas e das edificações que tinham que ser de novo reconstruídas para além da profunda desestabilização geral no moral das tropas. Era sem dúvida a zona mais problemática e perigosa de toda a nossa área. Cada um de nós sempre que tínhamos que nos deslocar para aquelas bandas temíamos no mais íntimo do nosso coração não regressarmos de lá já pelo nosso pé. Ali como em nenhum outro lugar no mundo ou momento da minha vida interiorizei cada dia como aquele que podia muito bem ser o último. Com a mesma naturalidade e aceitação com que encarava as outras rotinas.

Nos patrulhamentos diários a tensão em cada rosto era perfeitamente visível na forma como cada militar empunhava a arma de dedo no gatilho e de olhar sempre atento a qualquer movimento suspeito. Ninguém esboçava o mais leve som. Rostos cobertos de suor pelo calor sufocante e inevitável nervosismo, olhos varrendo tudo em redor. Só o monótono ronronar dos motores quebrava o silêncio na lenta e cuidadosa progressão das viaturas. Era sempre assim. Dia após dia, semana após semana, mês após mês. Mas de pouco nos valiam tantas precauções porque subitamente aquela calma aparente era interrompida pelo estrondo de qualquer coisa. Uma passagem feita de troncos sobre uma linha de água rebentada à bomba, uma mina pisada, rajadas de tiros vindos nunca se sabia de onde, naquele impenetrável inferno verde capaz de esconder até a luz do sol lá dentro.

Os primeiros alvos a serem atingidos eram quase sempre os condutores e os camaradas que seguiam ao seu lado. Estes camaradas eram, normalmente, o comandante da força atrás do qual se posicionava sempre o operador do radio que dele recebia todas as ordens e instruções a comunicar para a base. Com a finalidade de confundir o inimigo e proteger um pouco mais o homem do radio, o nosso comandante determinara que se colocassem antenas de rádio em todas as viaturas dos patrulhamentos pela mata. E o graduado – oficial ou sargento – comandante da mesma, mais o operador radio, tanto podiam ir na primeira viatura como nas do meio ou na última. Ninguém ali usava divisas ou galões, fosse cabo, sargento ou oficial. Em marcha éramos todos iguais para quem nos visse ao longe. Foram dois anos. Mas cada um teve, para nós, a duração de dez. Conhecemos, durante esse tempo, todas as emoções boas e más que cada soldado carrega no peito pela sua frágil condição humana. Medo, angústia, desalento, raiva, resignação. 

Espantosos foram, sem dúvida, o espírito de sacrifício, a amizade e camaradagem intrínseca que se desenvolveu entre todas as patentes sem exceção, a capacidade de adaptação e de aceitação que todos acabámos por adquirir à medida que os meses foram passando. Mas não há palavras capazes de descrever o que cada um de nós sentia quando víamos estendido à nossa frente, já morto, coberto de sangue e de pó, horrorosamente desfigurado, às vezes amputado, aquele camarada que horas antes almoçara na nossa mesa, falara da sua mãe, da namorada, do filho ou do pai que tinha em casa à sua espera. Aquela visão causava-nos uma dor sem explicação. Ninguém merece morrer assim abatido à traição sem qualquer hipótese de se defender. Maldita guerra. As memórias são muitas e infelizmente mais as más do que as boas mas vou descrever apenas meia dúzia delas, talvez as que, pela sua injusta violência, nunca consegui esquecer. Que descansem em paz, todos os que tombaram. A geração atual, felizmente, já não passará por isso. E aqueles que tinham obrigação de honrar a memória dos que tombaram, há muito os esqueceram, preocupados apenas com os seus interesses. Restamos nós, aqueles que com eles convivemos, para fraternamente os recordarmos como irmãos heróis.

O nosso batismo de fogo aconteceu poucos dias depois daquele ataque que vitimou os camaradas da unidade vizinha que já referi. Fomos vítimas dessa primeira emboscada de moldes muito parecidos com os da emboscada no Chimbete, só que sem o uso de roquetes por parte do MPLA. Uma coluna nossa que se deslocava para o Sanga Planície foi atacada numa curva conhecida pelo sugestivo nome de “curva da morte” e um nosso camarada condutor de uma das viaturas, o soldado Vitoriano, foi abatido. A primeira baixa do BCav3871. Uma rajada de metralhadora vinda do alto aterro que bordejava a curva desfez-lhe o rosto e parte da cabeça deixando a sua massa encefálica espalhada por todo o para-brisas do unimog. Um pavor de recordação. Aconteceu de repente. Como sempre. Sem qualquer sinal ou pré-aviso. Do aparente sossego da densa floresta o inferno abatia-se assim brutalmente sobre as colunas em progressão. Muitos dos camaradas que ao som do primeiro tiro saltavam compulsivamente das viaturas, caíam sobre as minas anti-pessoal estrategicamente armadilhadas pelo inimigo na zona de morte da emboscada. E ao serem pisadas pelos aflitos militares à procura de abrigo, explodiam sob os seus pés, provocando ainda mais baixas e piores danos.

O MPLA atacava assim mesmo. Como se nós fôssemos caça e eles os caçadores. Oculto em locais imprevisíveis. E a seguir retirava com relativa segurança por trilhos que só eles conheciam. O alerta era dado de imediato via rádio, e, pouco tempo decorrido, os bombardeiros sedeados em Cabinda sobrevoavam o local e bombardeavam as proximidades da zona onde tinham ocorrido as emboscadas. Mas nunca encontrámos vestígios de baixas ou outros estragos visíveis provocados ao inimigo nesses contra-ataques quase simultâneos.

Aquele ataque na curva da morte que vitimou o Vitoriano foi apenas o começo. Dali em diante nunca mais houve paz para os Cavaleiros do Maiombe. O MPLA que estava a “levar nas lonas” no Leste de Angola “virou-se” em força para Cabinda. Equipado já então com os lança granadas foguete RPG2 e RPG7, armas terríveis de fácil transporte e pontaria, bem como com as espingardas Kalashnikov, contra as nossas já ultrapassadas G3 ou as nossas bazucas de difícil manejo e transporte, empenhou-se em dizimar quanto pôde as unidades sedeadas no enclave de Cabinda. Ao “meu” BCav3871, conseguiu de tal modo que das suas 4 companhias inicias pouco mais de 3 regressaram a casa sãs e salvas no final da comissão. Total de baixas, 121. Mortos em combate, 18. Feridos graves evacuados 103.

Recordo cada camarada que tombou, morto ou gravemente ferido. Cada um deles era um amigo, muito mais próximo de parente do que de amigo, porque viver em grupo naquelas condições aproxima as pessoas e estabelece entre elas laços de profunda fraternidade e solidariedade. O problema de um tornava-se no problema de todos. De tal modo isto é assim que ainda hoje mantenho contacto com alguns desses velhos camaradas d’armas. Eu nunca fui por motivos diversos, mas desde que regressámos em Junho de 1974 que muitos Cavaleiros do BCAV 3871 se reúnem no mês de Maio de cada ano para convívio e confraternização. Apesar de nunca ter lá ido, todos os anos, mas mesmo todos, em finais de Abril inícios de Maio, recebo a respetiva carta-convocatória para o almoço-convívio, enviada pelos respetivos organizadores de cada ano.

Mas não os esqueci.

Recordo aquele camarada que ficou gravemente ferido nas pernas mas como os ferimentos permitiam que viesse sentado num unimog, cedeu generosamente o seu lugar na ambulância a um outro camarada ferido com menor gravidade mas cuja ferida não lhe permitia sentar-se. Só que, poucas centenas de metros mais à frente, já no regresso ao quartel, aquela coluna de socorro foi novamente atacada depois de recolher os estropiados. E o generoso camarada ferido nas pernas que vinha no unimog, por não ter conseguido saltar da viatura a tempo, morreu sentado sobre o banco, trespassado pelas cobardes balas inimigas, enquanto o outro camarada, aquele que vinha na ambulância no seu lugar, nada mais sofreu, apesar de a ambulância ter sido também alvejada por aquele bando de selvagens.

Não se atacam colunas onde as ambulâncias regressam com feridos. É internacionalmente convencionado e proibido, seja em que guerra for. O MPLA excedeu todos os limites da compreensão humana. Aquilo não foi um acto de guerra. Foi uma selvajaria.

Recordo, sem compreender ainda hoje porquê, aquela coluna de camaradas de Sanga Planície tão furiosamente atacada e da qual resultaram 3 mortos e 10 feridos quando se deslocava para a aldeia de Kungombundo para ir inaugurar a pequena escola que os Cavaleiros do Maiombe ali tinham ajudado a construir. Nessa coluna se transportava também algum mobiliário e material escolar para as crianças fiote. Foi a forma que o MPLA entendeu justa para compensar o empenho “dos branco” como eles diziam . A raiva surda e a revolta que ficou na malta, era insuportável.

Recordo também, entre muitas outras coisas ainda, a resignação de um camarada que pisou uma mina que ao explodir lhe decepou um pé. Com o estrondo do rebentamento toda a secção se atirou ao chão e ficou abrigada no mato à espera do que viesse a seguir. Por fim e como mais nada buliu, toda a gente percebeu o que tinha acontecido. Fora acionada uma mina isolada por um militar incauto. Ao chegarem junto do ferido, o soldado Bento, estava já ele a limpar com o lenço a terra que ficara agarrada ao coto já sem o pé e que, com enorme sangue frio apenas comentou: - Vá lá, podia ter sido pior… Com um pé de borracha isto remedeia-se!

O tal espírito de resignação e de aceitação que lá atrás referi. Qualquer coisa era melhor do que a morte desde que tivesse remédio... 

Foi de imediato pedido pelo rádio um meio aéreo para evacuar aquele ferido tão grave do meio da mata. E veio um helicóptero mas que só apareceu passado demasiado tempo por culpa da fraca visibilidade provocada naquele dia pelo cacimbo e para desespero de todos os que ali aguardavam a sua chegada, especialmente o ferido, a quem muito valeu o impecável desempenho do enfermeiro que lhe prestou os primeiros socorros, fez e aliviou consecutivamente o garrote para estancar na medida do possível a hemorragia e lhe ministrou o composto de morfina para ele não sentir as dores nem entrar em estado de choque.

Recordo finalmente o meu excelente camarada de equipa e grande amigo do peito soldado de transmissões Borges que me pediu para eu o deixar ir no meu lugar a Lândana porque morria de saudades do mar. É que na vida civil ele era pescador da Afurada em Gaia e o lugar mais próximo onde havia oceano era Lândana, a 200 km do Belize. Só que naquele dia por escala calhava-me a mim fazer o serviço-radio da coluna que ia deslocar-se àquela localidade. Perante os insistentes pedidos e depois de a troca ter sido concedida pelo tenente Amaral Dias, lá foi no meu lugar o meu amigo pescador matar as saudades do seu querido mar. Em má hora o fez. Um despiste seguido de capotamento da viatura em que ele seguia deixou-o tão gravemente ferido que teve de ser evacuado para Luanda e dali para Lisboa. Não mais voltou ao Maiombe. E eu… Até hoje não compreendi. Era habitual precisamente o contrário. Porque eu, o cabo mais antigo da equipa e por isso o chefe direto deles é que ia muitas vezes no seu lugar. No lugar de todos eles, recorrentemente. Mas, naquele dia…

Porquê?

Continua…


José Coelho in Histórias do Cota

sábado, 14 de janeiro de 2017

Beirã. Para memória futura...

Já não precisa parar, nem escutar, nem olhar
Foto by José Coelho

Gosto muito de escrever. Mas gosto ainda mais de ler...

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Os pais


Com o passar dos anos os pais tornam-se mais presentes, lembramo-nos melhor deles, as saudades aumentam. Há poucos dias o João para mim

– Se os pais cá estivessem

e a certeza irracional que se cá estivessem não deixavam que as coisas más acontecessem. Na altura não dávamos muito por isso mas estavam sempre entre nós e a morte, entre nós e as doenças, entre nós e os tropeços da vida. A sua imagem tão nítida, a sua força tão presente, a saudade tão grande. Até certo ponto se os pais cá estivessem é uma redundância porque nunca se foram embora. O meu amigo Bento Domingues contou-me uma vez que disse a missa de corpo presente da mãe, a acompanhou ao cemitério, a viu sumir-se na terra, essas coisas. E quando, passados tempos, voltou à aldeia e o pai lhe abriu a porta, perguntou logo, embora consciente disto tudo

– A mãe?

e começou a procurá-la pela casa. Quando me descreveu isto a minha mãe estava viva, nem sequer tinha as melhores relações com ela

(muitas vezes, por estupidez e orgulho, não tinha as melhores relações com as pessoas importantes para mim)

e aquilo de que o Bento me falou pareceu-me estranho. Depois a minha mãe morreu e agora compreendo-o que nem ginjas. Às vezes estou para aqui sozinho e a frase

– A mãe?

a pergunta

– A mãe?

aparece com tanta força na cabeça. Não me esquece

(nunca irei esquecer)

a cara dela quando me visitou, estava eu muito doente. O sofrimento dela, a dor dela, a dignidade dela. E de repente compreendi que, se eu quisesse, me receberia inteiro na sua barriga e nada de ruim me aconteceria porque ela não deixava. Compreendi não com a minha cabeça, com a minha carne. É difícil explicar isto mas compreendi com a minha carne conforme senti que, verdadeiramente, nunca de lá tinha saído. Sentada no sofá, pequena, e eu, muito maior que ela, protegido lá dentro, protegido para sempre lá dentro, e então tive uma vontade imensa de tornar para onde vim. E quando nos saem pela boca frases deles que não sabíamos que sabíamos? E quando lhes sentimos o cheiro? E quando temos a certeza que eles ali, a olharem para nós em silêncio? E quando lhes escutamos os passos pela casa? E quando nos vêm com uma espécie de halo de amor que nos protege inteiros? Lembrando-me outra vez do Bento ele declarou- -me um dia

– Não vou aos cemitérios porque não está lá ninguém

e ao perguntar-lhe

– Então estão onde?

o Bento fez aquele sorriso que lhe enche a cara toda, explicou

– Andam por aí.

e, de facto, andam por aí. A minha mãe anda por aí, o meu pai anda por aí e fartamo-nos de nos cruzar com eles, só que às vezes, distraídos, não damos por isso. Eu para o Bento

– O que faço depois de morrer?

o Bento, muito seguro

– Continuas a escrever

eu, sem segurança nenhuma

– E quem me vai ler?

o Bento mais que seguro, certíssimo

– Descansa que lêem

e, como o Bento se entende nessas coisas, calei-me: a gente tem que dar razão a quem se conhece em certos temas, e a palavra de um amigo chega-me. Portanto andam por aí. Portanto estão connosco. Que estão connosco eu sinto. E, vai daí, quando o meu irmão disse

– Se os pais cá estivessem

devia ter-lhe respondido

– Não deves ter reparado bem mas estão. O pai nos seus livros e na sua música, a mãe em tudo o resto porque o tudo o resto, que é tudo, pertence às mulheres. São as mulheres que fazem. Nós, quando muito, acrescentamos os corantes ou endireitamos uma coiseca qualquer, que nem estava torta, mas temos sempre que endireitar uma coiseca qualquer, de acrescentar uma melhoria a maior parte das vezes inútil. Somos tão parvinhos

(só posso falar por mim)

sou tão parvinho em quase tudo. Apresento-vos o António, tão inteligente e tão parvinho. Com os pais por perto fica, talvez, um pouco menos. Olha, ouvi agora mesmo a minha mãe cantar. Tinha alturas em que cantava um bocadito. Uma voz muito feminina, fininha. E o pai também, nalgumas manhãs, enquanto fazia a barba. Gostava de os ouvir cantar. Acho que volta e meia ainda cantam. Nós, os filhos, éramos um bocado mais sérios, claro, porque talvez fôssemos mais velhos do que eles. Só nisso, embora o meu pai gostasse de brincar com automoveizinhos nossos. E os chocolates que estavam no frigorífico com um letreiro em maiúsculas. Estes Chocolates são Do Pai Não Mexer? A gente, que remédio, não mexia. Agora estou a ver

(desculpem interromper a conversa)

o meu irmão Nuno de babete, com um Pluto de borracha na mão. Tenho um fraquinho pelo Nuno. Uma debilidade como dizem os espanhóis, e adoro o sorriso dele. Aos cinco anos, quando estava a morrer de peritonite, lembro-me do meu irmão a chorar

– Eu vou morrer e quero o meu paizinho
 e o paizinho veio, e operaram-no, e o meu mano não morreu. Sempre que me lembro disto fico com os olhos turvos. Não liguem: sou um maricas.

António Lobo Antunes in Para Português Ler

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Bom fim de semana...

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Coisas q'escrevi...



Inferno verde (2)


O dia seguinte, aquele em que teoricamente nos faltavam só já 729 para podermos regressar a casa – e escrevo teoricamente porque muitos de entre nós não voltariam nunca mais enquanto outros voltaram sim mas involuntariamente antes de tempo – não foi mais entusiasmante do que aquele que o antecedera. Após a calorosa recepção de boas-vindas oferecida pelos nossos anfitriões que durara toda  a noite, pudemos finalmente conhecer aquela que iria ser a nossa casa dali em diante. O quartel era composto por um conjunto de barracões retangulares com paredes de tijolo e barrotes de madeira a segurarem um telhado de chapas de zinco ondulado que para além de nos proteger das chuvas torrenciais tinha também simultaneamente a função de uma eficiente sauna naqueles dias de mais calor que para não variar durava o ano inteiro.

O seu perímetro era em toda a volta cercado por uma alta cerca de arame farpado que lhe dava o aspecto de campo de concentração daqueles que vemos nos filmes, intercalado nos vértices por 4 pesados canhões obus virados para a mata, 4 ninhos de morteiros aptos a disparar e 8 guaritas de cimento compactado à prova de bala para as sentinelas permanentes, além de também 4 valas – trincheiras – escavadas entre as casernas e o arame farpado para refúgio coletivo em caso de ataque ao aquartelamento. Tudo aquilo fora projetado e construído numa previamente desmatada colina sobranceira à povoação e à sanzala do Belize, da qual distava poucas centenas de metros.

À direita da cancela da porta de armas e a testemunhar a perigosidade daquela zona, situava-se o pequeno cemitério do quartel onde repousavam ainda os restos mortais de alguns dos camaradas primeiras vítimas da guerra por aquelas paragens e que, à falta de acessos e condições para serem evacuados em tempo útil na data das suas mortes em combate, ali tiveram que receber sepultura. Em boa hora o comando do nosso batalhão entendeu, meses mais tarde, exumá-los a todos – eu assisti à sua exumação – para serem enviados às famílias na metrópole com a dignidade e as honras de heróis que lhes eram devidas.

Noutro dos vértices do aramado mas do lado de fora do quartel havia também ainda uma pista com cerca de mil metros de extensão em terra batida e recentemente rasgada pela mata adentro à força de retroescavadoras para possibilitar a aterragem de pequenas aeronaves. Era normalmente utilizada em reabastecimentos diversos, deslocações de altas patentes militares e evacuação de feridos graves quando necessário, aquela que, infelizmente, viria a ser a sua principal função nos tempos que se seguiriam.

A pouco mais de uma centena de metros um rio Luáli de porte médio, talvez uma espécie de Zêzere do Maiombe, circundava uma parte do morro do aquartelamento e corria num misterioso silêncio, cúmplice quiçá dos guerrilheiros do MPLA, da UPA ou da FLEC que se movimentavam tão à vontade no meio daquele emaranhado verde das suas margens como os peixes nadavam na sua corrente de águas tranquilas.

Olhando para lá do arame farpado até o alcance visual conseguir chegar e em todas as direções dos pontos cardeais, só se vislumbrava floresta, floresta, e mais floresta. Até o céu tocar a terra na linha do horizonte tudo era verde. Mato cerrado e copas de gigantescas árvores sob as quais mal se vislumbrava o sol lá muito acima. E o calor! Aquele malvado calor, asfixiante e pegajoso! O clima do enclave de Cabinda e particularmente no alto Maiombe é muito abafado, por ser, ao longo de todo o ano, extremamente húmido.

Ali só há duas estações no ano. A estação quente e húmida e a estação do cacimbo. Na estação quente e húmida, dilúvios torrenciais já cientificamente aferidos em 180 litros por metro quadrado, desabam do céu. Autênticas cascatas de água que nós logo aproveitávamos saindo das casernas nus ou só em calções para nos regalarmos na sua frescura. Só não o fazíamos quando, à mistura com a chuva diluviana, a natureza se lembrava de desenvolver tremendas trovoadas tropicais de estrondosa espectacularidade com os raios a caírem consecutivamente nas altas árvores das redondezas seguidos do simultâneo e ensurdecedor estouro dos trovões. A violência era tal que às vezes o coração parecia querer saltar-nos pela boca. Sem exagero algum, nunca vi, nem nunca mais voltei a ver, trovoadas tão assustadoras como aquelas do alto Maiombe.

Logo a seguir vinha a época do cacimbo. Os dias tornavam-se um tudo nada mais frescos mas o céu mantinha sempre a mesma cor de chumbo de onde caía o tal cacimbo que tudo escondia e parecia a chuva miudinha a que nós por cá chamamos de molha-parvos. Uma neblina espessa e pegajosa, de encharcar tanto ou mais que a chuva e a transformar da mesma maneira em imensos atoleiros todas as picadas e fiotes por onde não podíamos deixar de circular nas nossas patrulhas e reconhecimentos diários. A estação mudava mas a humidade continuava por isso a fazer-nos a vida negra com o recorrente problema de viaturas constantemente atascadas até à carroçaria e nos locais mais impróprios para serem socorridas.  A duras penas aprendemos o que é viver no Maiombe onde as amplitudes térmicas anuais provocam uma sufocante média de 90% de humidade atmosférica. É de facto um clima impróprio para europeus como nós, habituados a climas temperados, secos e amenos. 

A enfermaria estava   por isso frequentemente cheia de camaradas a debaterem-se em febre porque o paludismo aliado ao microscópico mosquito miruin, são os reis e senhores daquelas condições climatéricas. Pela parte que me coube, estive oito vezes ali internado com temperaturas corporais sempre acima dos 40 graus e umas dores nos ossos e nas articulações que não permitiam que estivesse quieto na cama. É que além de altas temperaturas o paludismo provoca também umas dores tremendas nos ossos e articulações por todo o corpo. Valeu-me algumas vezes o amigo que nunca mais vi, o camarada meio-conterrâneo e cabo enfermeiro Canário de Castelo de  Vide que vive no Barreiro com a família há muitos anos.

Era rotina diária aqueles trilhos e picadas numa extensão de muitos e penosos quilómetros terem que ser patrulhados. Para nossa própria segurança e na tentativa muitas vezes vã de manter o inimigo afastado dos aquartelamentos. As patrulhas eram normalmente compostas por três ou mais viaturas com um operador rádio, ladeadas pelas secções apeadas de atiradores mas à frente dos quais, com os seus detetores metálicos apropriados, caminhavam em primeiro lugar sempre, os sapadores de minas e armadilhas. Regressava-se ao quartel horas depois invariavelmente cobertos de lama, encharcados, cansados e tensos pelas horas de exposição ao perigo. De tal modo as condições eram más que o fardamento e o calçado tinham que ser substituídos a cada 4 meses quando a sua duração em condições normais era a de 1 ano.

Dos nossos maiores pesadelos eram mesmo aqueles lamaçais permanentes que eram também o melhor trunfo do inimigo habituado ao clima, conhecedor do meio, das nossas dificuldades e até mesmo da precaridade no apoio e socorro quando ele se tornasse absolutamente necessário. Por isso se emboscava em sítios estrategicamente perfeitos para a sua inopinada ofensiva e nos massacrou com emboscadas traiçoeiras numa rotina tal que não havia semana nem mês sem sobressaltos ou sem baixas. Porém e por estranha casualidade, a primeira vez que fomos surpreendidos pela tragédia de camaradas mortos e feridos não foi com pessoal da nossa unidade. Foi a 8 de Agosto de 1972 numa unidade vizinha  sediada uns quilómetros mais a sul, a Companhia de Caçadores 3408 que se deslocava pela picada do Chimbete em direcção ao Sangamongo quando uns guerrilheiros do MPLA emboscados no mato dispararam um roquete que atingiu uma viatura da coluna militar e matou o capitão Bexiga, o alferes médico Silvério Marques filho do então governador de Moçambique e o furriel Caldeira natural de Portalegre, ficando ainda também gravemente feridos mais 3 outros militares.

Foi o primeiro aviso, o prenúncio talvez daquilo que nos esperava a nós, a seguir. Nem podíamos imaginar o inferno em que o nosso dia a dia se iria transformar dali em diante, bem como a importância vital de que se reveste o pelotão de transmissões numa linha da frente como aquela. No “meu” BCav3871  este excelente pelotão - perdoem-me a vaidade - era composto pelos camaradas Alferes Amaral Dias natural de Seia onde hoje exerce a profissão de advogado e foi o nosso comandante de pelotão, pelos furriéis Caetano e Santos naturais da zona da Nazaré - Atouguia da Baleia, seus adjuntos, por mim o cabo mais antigo e por isso o responsável pelas escalas, serviços e todo funcionamento do posto rádio e operadores, pelo cabo Martins, natural de Castelo Branco, pelos soldados Tibúrcio, natural de Campo Maior, Gomes, natural do Tortosendo, Fonseca, natural de Alvares,  Leonel, natural de Cucujães, Borges, natural da Afurada, e o baixinho e franzino Santos II que já não recordo de onde era. Havia ainda a equipa de radiomontadores que faziam parte do nosso pelotão mas dos quais recordo apenas alguns semblantes como o do seu chefe, o furriel André, ou o do soldado Ramalho que também era alentejano como eu. Os outros que me desculpem, mas já não consigo lembrar os seus nomes.

Em qualquer quartel de cidade, nas províncias ultramarinas ou nos da metrópole, ser-se operador de transmissões considerava-se na altura uma especialidade de luxo. Serviço limpo porque sempre em confortáveis e reservadas centrais de transmissões e telefónicas com acesso reservado, sem apanhar frio ou calor. Mas nas frentes de combate, um operador de transmissões era o alvo a abater mais apetecido pelo inimigo como forma de boicotar qualquer pedido de ajuda. Além disso, um atirador ou um sapador levavam às costas um cantil com água, uma mochila de lona com a ração de combate, e a G3. Já o operador de transmissões, levava o cantil com água, a mochila com a ração de combate e uma pilha de reserva para o rádio, a G3, e também o emissor-receptor Racal TR28B2 nem muito pesado nem muito leve mas que era a única forma de contacto com a unidade para qualquer emergência.

Honra seja feita para todo o sempre aos velhos e grandes camaradas todos sem excepção por ajudarem, em todas as patrulhas, generosa e voluntariamente, a carregar com a mochila que continha a pilha de reserva e a ração de combate, uma vez que do seu rádio um operador era inseparável fosse a que pretexto fosse...


(Continua)


José Coelho in Histórias do Cota