quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

A dignidade de chegar a velho...

Imagem copiada do Google

Quando nasci o meu pai contava já 42 anos. Casou tarde, aos 36, pese embora a minha mãe tivesse apenas 20. Tão mais jovem que ele, deduzo que provavelmente ter-se-á deixado encantar por aquele modo meigo e afável que o caracterizavam e com o qual conquistava o respeito e a amizade de quase toda a gente. Cresci por isso a ver surgirem no seu rosto as primeiras rugas, e, no seu farto cabelo, os primeiros fios prateados.

13 anos mais tarde fui integrar a sua equipa de trabalho na pedreira da Lajem do Sapato da qual ele era subempreiteiro e também ali todos os seus camaradas eram já cinquentões como ele. Foi com eles que aprendi o ofício de cabouqueiro e foi também seguramente neles que colhi muitos dos ensinamentos que me moldaram para a vida adulta.

Influenciado por essa sã vivência com gente madura e de muito bom senso, habituei-me a estimar e a respeitar os mais velhos. Aqueles a quem, por ser mais fino, e, argumenta-se ainda, por ser menos agressivo, apelidam hoje de idosos. Mas eu continuo a chamar-lhes velhos como sempre chamei porque entendo que a velhice não é e nunca foi um castigo. Pelo contrário, entendo que é um privilégio negado a muitos, uma bênção inestimável para quem consegue alcançá-la.

As rugas de qualquer anciã ou ancião, os seus cabelos prateados e a sabedoria adquirida no decorrer das suas vidas, merecem de mim e deveriam merecer de todos nós, o maior respeito e consideração. Admiro sinceramente a sua dignidade, a sua paciência, o seu conformismo, e, sobretudo, a generosidade com que aceitam tantas vezes ser esquecidos, a nobreza e bondade como desculpam quase sempre os familiares que passam meses sem os visitar nos lares onde por conveniência própria os internaram para ali viverem o resto das suas vidas.

É comum ouvir alguns dos seus gentis argumentos, tais como:

- Coitados! Eles não podem vir...

- Têm lá a vida deles...

Acham conformados que os coitados são quem quase esquece que eles ainda existem, que continuam vivos e a amá-los apesar das suas injustificáveis ausências! Generosidade pura, acho eu. E acho também que o abandono de uma mãe, de um pai, de um irmão, de uns avós ou de outros parentes próximos, é… Uma vergonha! Um desmazelo! Uma ingratidão! Uma falta de amor, de solidariedade e de respeito por quem muitos sacrifícios fez quase sempre para lhes dar o melhor que tinha e podia.

Estou completamente à vontade e em absoluto sossego de consciência nesse capítulo para criticar tais comportamentos porque cuidei amorosamente da minha mãe em minha casa, com o impagável auxílio da minha esposa, durante muitos anos, depois que uma retinopatia diabética a cegou por completo. E só não faleceu em nossa casa porque necessitou daqueles cuidados continuados que nós não estamos habilitados a ministrar, não por falta de carinho ou de vontade, mas por requererem técnicas apropriadas para melhor conforto de quem delas necessita naquelas situações.

Porém e como por sorte essa unidade se situava muito perto de nossa casa, estivemos com ela todos os dias até àquele em que partiu ao encontro dos entes queridos que já lá tinha. Partiu em paz num fim de tarde de verão quando eu segurava a sua mão esquerda e a minha irmã Joaquina a mão direita, um de cada lado do seu leito e a minha mulher aos pés, num confortável quarto da Unidade de Cuidados Continuados da Beirã onde foi tratada, cuidada e acarinhada por excelentes profissionais, durante os breves dias que lá permaneceu internada.

Também o meu pai, e o pai dele, o avô Faustino, bem como a mãe da minha mãe, a avó Amélia, faleceram os três em minha casa rodeados pela família que amavam e os amava a eles. A avó Adelina essa não cheguei a conhecê-la porque faleceu antes de eu a poder conhecer, vítima de doença cardíaca. E o avô Zé Lourenço como já referi noutro texto aqui publicado, faleceu no hospital de Portalegre vítima de doença respiratória aguda.

A propósito deste tema, uma tarde destas encontrei na net um texto que vem mesmo a talho de foice. Não sei quem é o seu autor, mas aqui vai:

Ocaso da vida

Quem é que não teve já a oportunidade de conhecer uma pessoa idosa e enferma, dependente, carente e solitária?

Talvez essa pessoa esteja dentro do seu próprio lar. Uma mãe ou um pai, incapacitados pela enfermidade ou pelas debilidades impostas pelo peso da idade.

Alguém que ontem foi forte e dinâmico, mas agora se movimenta com lentidão e às vezes nem se movimenta, tornando-se totalmente dependente da vontade alheia.

Se tiver uma mãe, um pai ou outro familiar nessas condições, pare um pouco, olhe nos olhos essa pessoa e tente ler os seus mais secretos pensamentos.

Tente ler nos seus olhos tristes ou nos seus lábios mudos o apelo comovente que eles não têm coragem de verbalizar.

Se esse apelo fosse audível é provável que ele fosse mais ou menos assim:

Tu que estás na flor da idade, acredita que o despertar da vida é como um amanhecer em que tudo parece brilhar mais quente e mais alegre. Mas o amanhecer não é eterno e a ele se vão sucedendo todas as outras fases do dia...

Nunca te esqueças que já sou velho e se por acaso vires a minha mão tremer ou o meu andar hesitante, ampara-me por favor.

Se minha audição já não é boa e se tenho que me esforçar para ouvir o que tu estás a dizer, tem compaixão.

Se a minha visão é imperfeita e o meu entendimento é escasso, ajuda-me com paciência.

Se as minhas mãos tremem e derrubam tantas coisas para o chão, por favor não te irrites, porque eu tentei fazer o melhor que pude.

Se me encontrares na rua, não faças de conta que não me viste; pára para conversar um pouco comigo; sinto-me tão só...

Se, na tua sensibilidade, me encontrares triste entre tantos outros que também o estão, reparte simplesmente um sorriso comigo e com eles. Sê solidário, nós necessitamos apenas de um pouco de carinho.

Se te contei já pela terceira vez a mesma história, não me repreendas. Escuta-me simplesmente e, se eu não digo já coisa com coisa, não te rias de mim.

Se estou doente e caminho com dificuldade, não me abandones, porque preciso de um braço forte que ampare os meus passos.

Sabes, eu já vivi muitas primaveras e sinto que o meu outono derradeiro se aproxima. E sei que o ocaso da vida é como o entardecer. Indica que é chegado o momento de partir.

Por isso te peço que me perdoes se tenho medo da morte e me ajudes a aceitar o adeus.

Fica mais tempo comigo. Para me dares segurança porque os cabelos brancos e as rugas do meu rosto não impedem que eu precise repousar a minha cabeça num colo seguro.

Sei que o comboio da vida brevemente irá parar na minha estação e eu terei que embarcar, como sei também que terei que ir só, como só desembarquei nesta estação um dia.

Por tudo isso te peço para que não me negues a tua atenção e o teu carinho.

Brevemente deixarei esta vestimenta surrada pelo tempo e rumarei para outra dimensão da vida.  A da vida eterna.

Não te esqueças que este meu lugar de hoje virá ser o teu, um dia...


José Coelho in Histórias do Cota