sábado, 17 de dezembro de 2016

Coisas q'escrevi...

Casa da Avó nos Barretos onde a Mãe nasceu
Foto by José Coelho


A Avó Francisca Neves


Filhotes:

Vou falar-vos hoje da vossa avó Francisca da Silva Neves e da imagem que guardo dela porque a conheci muito bem apesar de ela ter partido para sempre no dia 15 de julho de 1971 vitimada por uma trombose. Era mais conhecida na terra por Chica Loucena, apelido que terá “herdado” do seu padrasto e era um amor de pessoa, senhora de muito respeito, bondosa, corajosa, sociável e trabalhadora. Era mesmo o tipo de avó que qualquer neto gosta de ter e aposto que vocês iriam de certeza dar-se muito bem com ela.

Foi, como sabeis, abandonada pelo vosso avô Antero que a deixou sozinha com os seis filhos de ambos e dos quais só o tio António e a tia Maria Júlia eram já moços que algum tempo depois casaram. A vossa tia Manuela, menina ainda, teve por esse motivo que ir para Castelo de Vide servir como criada a dona Aurora do Morais onde ficou até se casar, enquanto a tia Maria José foi acolhida pela tia Maria Jacinta, irmã da Avó Francisca que vivia em Espanha. E por lá casou e ficou também definitivamente.  Em casa apenas ficaram a vossa mãe por ser a mais novinha, assim como o falecido tio Joaquim que após o serviço militar ingressou na PSP ficando a viver por Lisboa mas sem nunca deixar de ajudar a mãe e a irmã a quem vinha regularmente visitar.

A Avó Francisca teve por isso que ser a mãe e o pai da vossa mãe desde que ela nasceu. Coincidência – ou talvez não – o avô Antero saiu de casa precisamente no dia em que a sua filha Maria Manuela nasceu. E nunca mais regressou, porque, entretanto, terá arranjado outra mulher na zona de Torres Novas com a qual se juntou e passou a viver. A esse respeito ouvi algumas vezes comentários que lhe eram pouco abonatórios, pelo facto de ele ter deixado a mulher com quem casou e os seus filhos legítimos para ir criar os filhos dessa outra companheira que não eram filhos dele. Mas quanto a isso pouco mais sei e não faço qualquer juízo porque entendo não o dever fazer.

Contudo e por outro lado, também sempre ouvi dizer que a família do avô Antero, especialmente a mãe dele a bisavó Deodata, nunca deixou de ajudar como podia, a nora e os netos, apesar das poucas possibilidades que ela própria também tinha naquele tempo de miséria geral para todas as famílias de camponeses que viviam, sem qualquer excepção, no limiar da pobreza. Segundo se dizia a ti Deodata estimou sempre a nora e os netos, deduzindo eu por isso que ela não devia talvez ser muito de acordo com o abandono a que o filho os tinha votado.

Conheci ainda melhor a vossa Avó Francisca quando a tive como camarada e mestra pois foi ela que me ensinou a trabalhar nos secadeiros do pimentão e também na fábrica da conserva de massa do mesmo produto na herdade do Pereiro em campanhas sazonais que algumas vezes lá fui fazer. Nesse tempo, a vossa mãe, muito novinha ainda, frequentava a escola primária e ia almoçar à cantina escolar gratuitamente, como todas as outras crianças filhas dos muitos trabalhadores daquela grande casa agrícola.

O monte propriamente dito era então um povoado de tamanho razoável onde diariamente trabalhavam mais de duzentas pessoas, parte das quais viviam em instalações colectivas que se compunham de três casões. Um para as mulheres do trabalho ao dia, outro para homens também jornaleiros ao dia, e outro ainda que era o casão dos justos ao mês. Mas a maior parte era composta por famílias que moravam todo o ano no bairro habitacional construído de raiz para os trabalhadores, onde não faltava sequer uma creche para cuidar dos mais pequenitos, uma escola do ensino básico para os que atingiam a idade escolar, bem como uma cantina que servia o almoço a todas as crianças enquanto os pais trabalhavam.

Para além da grande aldeia que rodeava o palácio do Pereiro havia ainda também a Fadagosa, a poucas centenas de metros do monte, antigas termas balneares de águas sulfurosas muito conceituadas nos finais do século XIX, inicios do século XX e cujas instalações pertenciam à herdade, mas, por já estarem desativadas desde meados de 1950, todo o enorme complexo que as compunha foi aproveitado para moradias de mais famílias de trabalhadores do Pereiro e o antigo casino de jogos transformado em taberna-mercearia onde os homens se entretinham e as mulheres faziam os seus avios. Existia ainda na Fadagosa, embora neste caso nada tivesse a ver com a herdade, um posto da guarda fiscal cujos elementos e suas famílias faziam parte integrante da comunidade que habitava o antigo complexo termal, pagando obviamente a renda ao dono da herdade.

A Avó Francisca e a vossa mãe habitavam, durante a semana, no tal casão das mulheres. Ali comiam e pernoitavam com mais outras trabalhadoras de longe e só aos sábados à noite recolhiam às suas casas nas aldeias próximas. A Avó morou nos Barretos nessa casa que fotografei um dia que a vossa mãe me lá levou e que ilustra este texto. E, por casualidade, tinha um profundo vínculo de amizade com a vossa Avó Florinda. Visitavam-se frequentemente uma à outra, como se fossem irmãs. Também por isso, eu a conheci tão bem.

Percebes agora Pedro Coelho aquelas lágrimas da tua mãe quando a levaste ao Pereiro e ela se deparou com o “seu” antigo casão em ruínas? É que foi ali que se escreveram algumas páginas felizes da sua vida, enquanto menina e moça! Naquela lareira central da habitação, agora um monte de escombros, deixava a Avó Francisca, pela madrugada, antes de sair para o trabalho, o café e as migas de pão ao redor do lume para que não arrefecessem e para a mãe tomar de pequeno almoço antes de ir para a escola. Na tarimba de madeira que rodeava as paredes dormiam as duas lado a lado com outras trabalhadoras e os seus filhos pequenos. Infelizmente hoje só restam ruínas por toda aquela herdade e muita saudade nos corações de quem lá viveu e foi feliz.

Entretanto o tempo passou, a mãe cresceu. Por essa altura, foi construída a fábrica de calçado Celtex  em Santo António das Areias. Em 1967 a Avó Francisca deixou a herdade do Pereiro para ir trabalhar na fábrica de conservas de frutas e vegetais que existe até aos dias de hoje naquela localidade, enquanto a vossa mãe, com apenas 13 anos, entrou para operária fabril da Celtex onde trabalhou até dezembro de 1979 e de onde só saiu para vir tomar conta de nós e da nossa casa quando eu fui colocado no posto de Castelo de Vide, já o Manel Coelho jogava à bola.

A Avó Francisca e a filha Maria Manuela, eram inseparáveis. E grandes, grandes amigas. Tornava-se perfeitamente visível a cumplicidade e o carinho que existia entre as duas. A pouco e pouco  a vida de ambas foi melhorando bastante. Saíam de casa juntas de manhã cedo, regressavam novamente juntas à tarde, depois do dia de trabalho. Os ordenados passaram a ser já os das duas, e nas indústrias para onde se tinham mudado eram um pouco melhores que os da herdade. Por tudo isso, as dificuldades estavam bem mais atenuadas e a avó Francisca já conseguia até colocar de parte algumas poupanças a pensar no futuro.

Eis senão quando, crueldade das crueldades, neste cenário de merecido sossego e harmonia familiar, a Avó Francisca foi acometida de uma trombose num tranquilo momento em que se arranjava para ir acompanhar a filha a um baile. Caiu inanimada e não mais se levantou vindo a falecer oito dias depois no hospital de Portalegre. Tinha 56 anos de idade. Que injusto, não é verdade? Mas a vida é mesmo assim. Imprevisível, madrasta, e, quantas vezes, mãe para uns, madrasta para outros.

A doce Avó Francisca que tantos e tão maus bocados deve ter passado, quer quando se viu sozinha cercada de filhos, quer quando teve que tomar a decisão de se separar de alguns deles para o bem de todos, bem merecia ter desfrutado de uma velhice abençoada e sem mais sobressaltos junto de quantos a amavam. Ter saúde, viver em paz, conhecer e dar colinho a todo os netos que com toda a certeza iria amar incondicionalmente e na medida exata daquele seu bondoso coração que tão bem sabia doar...



José Coelho in Histórias do Cota