O gigantesco Muro que deu nome ao lugar e sobre o qual assenta a
via férrea do Ramal de Cáceres, numa foto feita pelo meu Pedro Coelho
A
Avó Florinda Lourenço
Nasceu
no dia 7 de outubro de 1926 num lugar a que chamam" O Muro" algures
nas margens do ribeiro da Sapateira já não muito longe da sua foz a nordeste da
então freguesia de Santo António das Areias. Contudo e por força da criação da
freguesia da Beirã em 24 de junho de 1944, o território geográfico de abrangência
da mesma foi desanexado ao de Santo António das Areias pelo que o Muro pertence
desde essa data à Beirã.
O
pai – o meu avô e grande amigo – de seu nome José Lourenço mas mais conhecido
por Zé Cabreiro, por ser guardador de rebanhos na Herdade do Matinho que ficava
muito próxima do lugar onde vivia numa pequena casita que ainda hoje lá existe
e na qual nasceram os seus oito filhos.
A
mãe – minha avó, confidente e amiga – aquela santa velhinha que ela acolheu em
nossa casa e de quem cuidou amorosamente durante os oito anos em que a nossa querida
anciã esteve acamada e dela totalmente dependente até ao dia em que faleceu, chamava-se
Amélia da Conceição, a qual, entre os nascimentos dos oito filhos que teve, era
jornaleira na monda, na sacha ou na rega das searas e das várzeas pertencentes
à herdade.
Teve mais 7 irmãos a Avó Florinda. Ela era a mais velha, seguida pelo Francisco, depois o
Joaquim, o Raimundo, a Jacinta, a Maria Francisca, a Júlia e um outro, o mais
novo, do qual não sei o nome, porque não sobreviveu. Por ser a primogénita
coube à avó Florinda logo a partir dos seus tenros 6 ou 7 anitos ter de cuidar
dos irmãos mais novos em casa enquanto o pai e a mãe trabalhavam de manhã à
noite para o sustento da casa.
Nesse
tempo a família era muita mas o dinheiro pouco e o ordenado do avô Zé Lourenço
era, em grande parte, pago em géneros. Azeite, centeio, feijão, queijos e uma
“peara” de gado que consistia no direito de pertença de oito cabeças adultas e
respetivas crias do rebanho que guardava e cuidava, para além da mensalidade em
dinheiro ajustada ano a ano.
Para
fazer pão tinha a avó Florinda que, uma vez por um mês, levar à cabeça um taleigo
com centeio em grão e caminhar a distâcia que distanciava o lugar do Muro do moinho do
Ti Domingos no rio Sever - cerca de cinco km - para moer o grão mediante o
pagamento de uma maquia e regressar de novo a casa já com a farinha centeia de
novo à cabeça para poder depois amassar, tender e cozer no forno de lenha, o pão
de cada semana para a família toda.
Já
agora vou explicar também o que era a tal “maquia” muito utilizada como
pagamento de diversos produtos agrícolas naquela época em virtude de quase
ninguém poder pagar de outra forma. No caso que referi, o moleiro e dono do
moinho tirava para si uma certa quantidade do grão que tinha que moer. Por
exemplo, para moer 20 kg de centeio, tirava para si 5 ou 6 kg. Só os restantes
14 ou 15 kg iam para a mó para transformar em farinha. Dependendo da qualidade
do grão, a maquia era maior ou menor. Se, por exemplo, o grão a moer fosse
trigo, por ser mais valioso, a maquia era mais pequena. E em vez de 5 ou 6 por
cada 20 kg, seria de apenas 2 ou 3.
Não
foi ainda há muitos anos que essa forma de pagamento deixou de ser utilizada.
Estou a lembrar-me, por exemplo, dos anos em que colhi azeitona para fazer
azeite para nosso consumo de casa e que ia depois ser moída nos lagares da
região onde o pagamento era feito exatamente por maquia. Imaginando que a nossa
azeitona produzia 100 litros de azeite, só trazíamos 80 para casa. Os outros 20
eram pertença do lagar como forma de pagamento pela moagem da azeitona.
Feita
esta explicação que me pareceu oportuna para melhor entendimento da minha
narrativa e porque é bom recordar esses usos e costumes antigos, voltemos à avó
Florinda depois de ela estar em casa e o saco da farinha centeia já arrumado na arca do pão.
Cuidar dos irmãos mais novos não se resumia só a olhar por eles e a dar-lhes de comer. Se um deles adoecia, lá tinha que ir a magricela Florinda a pé com o doentinho escarrapachado na anca a caminho de Santo António das Areias que distava uns bons 9 ou 10 quilómetros do Muro, a fim de o ir “amostrar” ao médico. Aproveito para explicar de novo que, quando se estava doente por aqui, antigamente, não se dizia “vou ao médico para uma consulta” mas apenas “vou-me amostrar” e toda a gente depreendia que aquele “amostrar” era ir ao médico por se estar doente.
Cuidar dos irmãos mais novos não se resumia só a olhar por eles e a dar-lhes de comer. Se um deles adoecia, lá tinha que ir a magricela Florinda a pé com o doentinho escarrapachado na anca a caminho de Santo António das Areias que distava uns bons 9 ou 10 quilómetros do Muro, a fim de o ir “amostrar” ao médico. Aproveito para explicar de novo que, quando se estava doente por aqui, antigamente, não se dizia “vou ao médico para uma consulta” mas apenas “vou-me amostrar” e toda a gente depreendia que aquele “amostrar” era ir ao médico por se estar doente.
Por
tudo quanto dela sei, acho sinceramente que a vossa avó foi quase toda a sua
vida e desde muito menina, uma quase-tudo-em-um. Irmã/mãe de todos os seus
irmãos, assim como, mais tarde, foi também avó/mãe de quase todos os netos, a
começar logo pelo seu adorado Manuel Coelho. Acolheu também sempre em sua casa
os irmãos quando estes decidiram “juntar-se” com as namoradas e foi quase como
que uma segunda mãe para as suas cunhadas que muito a estimaram sempre.
Tão
bondosa criatura só não teve mesmo tempo para ser menina, coitada. Mal chegou
aos 11 anos e já com os irmãos mais crescidos e mais ou menos autosuficientes, foi logo promovida a criada de servir no Monte dos senhores do Matinho como ajudante da
cozinha, da queijeira e da horta, tendo que contribuir com o seu ganho para as
despesas da casa paterna sem deixar de ser, da mesma maneira, o braço direito de sua mãe, até à idade adulta.
Aos
19 anos conheceu o avô António Coelho, 16 anos mais velho que ela, facto que não a
impediu de gostar logo dele e de, apenas um ano depois, fugirem os dois para o Vale do
Cano onde ele tinha uma grande várzea de pimentões. E nesse dia se constituiu a nova família de nós somos a hoje continuação. Ocorre-me ainda e para encerrar esta narrativa, a ternurenta resposta que ela me deu numa conversa que tivemos os
dois à porta da igreja quando saíamos da missa. Ela ia muito cuidada como
sempre. Mas nesse domingo, além do fato domingueiro, levava um colar de
pequenas perolas negras em volta do pescoço.
Achei-a
tão bonita que, brincando, lhe sussurrei com ternura ao ouvido:
- Florindinha! Toda jeitosa hoje, hein?!...
- Té lé se o António
Coelho cá voltasse hoje e te visse... Vai lá vai…
Resposta
pronta da Florinda, viúva já então havia 15 anos:
- Se o António Coelho cá voltasse hoje, era com ele que eu me casava outra
vez…
Deste
diálogo há uma testemunha que vai com certeza ler o que escrevi e é capaz de se
lembrar da cena. Foi a nossa muito estimada vizinha Alzira Sobreiro que se
encontrava perto de nós e ao ouvir a pronta resposta da avó, exclamou com
genuína admiração:
-
É assim mesmo vizinha Florinda. Você é cá das minhas! Ora dê cá um beijinho…
E
beijaram-se efetivamente, na maior amizade.
José
Coelho in Histórias do Cota