Coincidências. Ou talvez não…
Naquele
fim de manhã encontrava-me numa das salas de espera do hospital de Portalegre a
acompanhar a minha mulher que tinha partido um joelho há algumas semanas e nesse
dia iam retirar-lhe o gesso. Sentia-me triste, acabrunhado, receoso, desanimado,
infeliz, um pouco desiludido até, em virtude do acidente doméstico que a
aleijara gravemente e eu achava que ela não merecia ter sofrido. Bem se diz que
quanto melhores são as pessoas, menos sorte têm. Uma rótula esmigalhada
era provavelmente uma sentença de invalidez permanente numa ainda jovem esposa,
companheira, fada de um lar com três homens a desarrumá-lo, uma vida inteira pela frente.
Cogitava
de mim para mim intranquilo e algo revoltado, questionando mais uma vez os desígnios
do Altíssimo que nem sempre parecem ser tão justos ou entendíveis como os
apregoam quando subitamente alguém escancarou a enorme porta de vidro que dava
para a rua afim de entrar com uma maca em que transportava um doente. No mesmo
instante a corrente de ar produzida pela abertura da porta fez voar em várias
direções alguns papeis pousados numa prateleira e aos quais aparentemente
ninguém ligava importância. Um deles veio cair quase junto dos meus pés.
Apanhei-o mecanicamente mais por reflexo do que por curiosidade
mas logo me chamou a atenção um desenho a preto e branco do rosto de Jesus
Cristo por me parecer que “aquilo” estava completamente fora de contexto
naquele sítio.
Olhei
por isso mesmo com mais atenção para a folha e comecei a ler o “recado” escrito por baixo do desenho.
Dizia
assim:
“Quando te levantaste hoje pela
manhã, Eu já tinha preparado o sol para aquecer o teu dia e o alimento para a
tua refeição. Sim, Eu preparei tudo isso; vigiei o teu sono, a tua família, a
tua casa. Esperei pelo teu “bom dia” mas esqueceste-te! Bem… Parecias ter tanta
pressa! Eu perdoei!...
O sol apareceu, as flores deram o
seu perfume, a brisa da manhã acompanhou-te e tu nem pensaste que fui Eu que
preparei tudo isso para ti. Os teus familiares sorriram-te, os teus colegas
cumprimentaram-te, trabalhaste, estudaste, viajaste, realizaste negócios,
alcançaste vitórias, mas não percebeste que Eu estava a cooperar contigo e
mais teria feito de Me tivesses pedido. E corres tanto… Eu perdoei!...
Leste bastante, ouviste e viste
muita coisa, mas não tiveste tempo para ler e ouvir a Minha Palavra: Quis falar
contigo mas não paraste para me atender. Quis aconselhar-te mas nem pensaste
nessa possibilidade… Se Me ouvisses, tudo seria melhor na tua vida. Mais uma
vez te esqueceste de Mim… Esqueceste-te que Eu desejo a tua participação no Meu
reino, com a tua vida, o teu tempo, os teus talentos! Findou o teu dia e voltaste
para casa!
Mandei a lua e as estrelas
tornarem a noite mais bonita para te lembrar o amor que tenho por ti!
Certamente agora vais dizer-Me “obrigado” e “boa noite”! Pschiu… Estás a ouvir?
Que pena… Já adormeceste! Boa noite! Dorme bem! Eu fico a velar por ti. Mas quando por fim quiseres saber
quem Sou, pergunta ao riacho que murmura, ao pássaro que canta, à flor que
desabrocha e à estrela que cintila, ao moço que espera e ao velho que recorda… Chamo-Me
Amor e sou o Remédio para todos os males que te atormentam o espírito... Eu
sou Jesus“
Acabei
de ler o sugestivo "recado" já completamente invadido por um sentimento etéreo, estranho, impossível de
descrever! Senti algo muito forte, uma serenidade subtil que me comoveu ao ponto de ficar com os olhos completamente aguados.
Sentia-me também em simultâneo profundamente sensibilizado e incrédulo pela oportunidade daquele texto, agradecendo do fundo do coração como ele se tivesse sido escrito propositadamente para mim.
Mostrei-o a seguir à minha lesionada companheira e posso garantir-vos que os
dois nos sentimos naquele momento reconfortados como não nos sentíamos talvez desde
o dia em que ela caíra nas escadas lá de casa e fizera em três a rótula de um
dos joelhos.
Guardo
comigo ainda hoje a folha de papel que o vento nos trouxe e
posso mostrá-la a quem a quiser ver e ler.
Diz
o povo na sua imensa sabedoria que “presunção e água benta cada um toma a que
quer”. Garanto-vos que nós acreditámos
sinceramente que foi uma forma transcendente de conforto divino naquele que estava a ser um momento bastante problemático
para os dois. Tenho lido e acredito que os desígnios de Deus são insondáveis
e se revelam sempre das formas mais subtis bastando estarmos atentos para
os sentirmos e compreendermos no mais íntimo do nosso ser. Naquela hora, no âmago de uma tristeza imensa, senti, em toda a acepção da palavra, ter sido tocado por algo imaterial porém muito explícito, tendo em conta a subtileza de como aconteceu.
E
quanto bem me fez, bendito Deus. Inexplicável, mesmo.
Ponderada
hoje toda a situação a frio e passado já bastante tempo é justo reconhecer
humildemente que nada houve que nos pudesse ter feito duvidar fosse do que fosse,
mas que, pelo contrário, muito houve e haverá ainda para agradecer até ao fim das
nossas vidas. Tendo sido transportada de imediato para o hospital, teve a
Manuela a sorte – teria sido apenas a sorte? – de ser atendida e a seguir operada
por um dos melhores ortopedistas do país – omito propositadamente o seu
nome por respeito e consideração a todos os demais – que casualmente ali
prestava serviço e naquele dia estava de atendimento ao banco de urgências, o
qual, com toda a perícia e competência que lhe dão enorme e justa fama, conseguiu unir com
grampos e fios metálicos os três fragmentos de osso e reconstruir tão completa como eficazmente
a rótula estilhaçada. De tal forma o fez que não ficou qualquer
sequela pós-operatória para além da enorme e indisfarçável cicatriz.
Tudo não
passou de meras coincidências, dirão alguns.
Talvez
sim, ou talvez não, digo eu.
Nem
sempre à luz dos factos coincide a luz da fé.
Cada
um que fique pois, como é justo, com aquilo em que acredita.
José
Coelho in Histórias do Cota