quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Coisas que escrevo...



Coincidências. Ou talvez não…


Naquele fim de manhã encontrava-me numa das salas de espera do hospital de Portalegre a acompanhar a minha mulher que tinha partido um joelho há algumas semanas e nesse dia iam retirar-lhe o gesso. Sentia-me triste, acabrunhado, receoso, desanimado, infeliz, um pouco desiludido até, em virtude do acidente doméstico que a aleijara gravemente e eu achava que ela não merecia ter sofrido. Bem se diz que quanto melhores são as pessoas, menos sorte têm. Uma rótula esmigalhada era provavelmente uma sentença de invalidez permanente numa ainda jovem esposa, companheira, fada de um lar com três homens a desarrumá-lo, uma vida inteira pela frente.

Cogitava de mim para mim intranquilo e algo revoltado, questionando mais uma vez os desígnios do Altíssimo que nem sempre parecem ser tão justos ou entendíveis como os apregoam quando subitamente alguém escancarou  a enorme porta de vidro que dava para a rua afim de entrar com uma maca em que transportava um doente. No mesmo instante a corrente de ar produzida pela abertura da porta fez voar em várias direções alguns papeis pousados numa prateleira e aos quais aparentemente ninguém ligava importância. Um deles veio cair quase junto dos meus pés. Apanhei-o mecanicamente mais por reflexo do que por curiosidade mas logo me chamou a atenção um desenho a preto e branco do rosto de Jesus Cristo por me parecer que “aquilo” estava completamente fora de contexto naquele sítio.

Olhei por isso mesmo com mais atenção para a folha e comecei  a ler o “recado” escrito por baixo do desenho.

Dizia assim:

“Quando te levantaste hoje pela manhã, Eu já tinha preparado o sol para aquecer o teu dia e o alimento para a tua refeição. Sim, Eu preparei tudo isso; vigiei o teu sono, a tua família, a tua casa. Esperei pelo teu “bom dia” mas esqueceste-te! Bem… Parecias ter tanta pressa! Eu perdoei!...

O sol apareceu, as flores deram o seu perfume, a brisa da manhã acompanhou-te e tu nem pensaste que fui Eu que preparei tudo isso para ti. Os teus familiares sorriram-te, os teus colegas cumprimentaram-te, trabalhaste, estudaste, viajaste, realizaste negócios, alcançaste vitórias, mas não percebeste que Eu estava a cooperar contigo e mais teria feito de Me tivesses pedido. E corres tanto… Eu perdoei!...

Leste bastante, ouviste e viste muita coisa, mas não tiveste tempo para ler e ouvir a Minha Palavra: Quis falar contigo mas não paraste para me atender. Quis aconselhar-te mas nem pensaste nessa possibilidade… Se Me ouvisses, tudo seria melhor na tua vida. Mais uma vez te esqueceste de Mim… Esqueceste-te que Eu desejo a tua participação no Meu reino, com a tua vida, o teu tempo, os teus talentos! Findou o teu dia e voltaste para casa!

Mandei a lua e as estrelas tornarem a noite mais bonita para te lembrar o amor que tenho por ti! Certamente agora vais dizer-Me “obrigado” e “boa noite”! Pschiu… Estás a ouvir? Que pena… Já adormeceste! Boa noite! Dorme bem! Eu fico a velar por ti. Mas quando por fim quiseres saber quem Sou, pergunta ao riacho que murmura, ao pássaro que canta, à flor que desabrocha e à estrela que cintila, ao moço que espera e ao velho que recorda… Chamo-Me Amor e sou o Remédio para todos os males que te atormentam o espírito... Eu sou Jesus“

Acabei de ler o sugestivo "recado" já completamente invadido por um sentimento etéreo, estranho, impossível de descrever! Senti algo muito forte, uma serenidade subtil que me comoveu ao ponto de ficar com os olhos completamente aguados. Sentia-me também em simultâneo profundamente sensibilizado e incrédulo pela oportunidade daquele texto, agradecendo do fundo do coração como ele se tivesse sido escrito propositadamente para mim. Mostrei-o a seguir à minha lesionada companheira e posso garantir-vos que os dois nos sentimos naquele momento reconfortados como não nos sentíamos talvez desde o dia em que ela caíra nas escadas lá de casa e fizera em três a rótula de um dos joelhos.

Guardo comigo ainda hoje a folha de papel que o vento nos trouxe e posso mostrá-la a quem a quiser ver e ler.

Diz o povo na sua imensa sabedoria que “presunção e água benta cada um toma a que quer”. Garanto-vos que nós acreditámos sinceramente que foi uma forma transcendente de conforto divino naquele que estava a ser um momento bastante problemático para os dois. Tenho lido e acredito que os desígnios de Deus são insondáveis e se revelam sempre das formas mais subtis bastando estarmos atentos para os sentirmos e compreendermos no mais íntimo do nosso ser. Naquela hora, no âmago de uma tristeza imensa, senti, em toda a acepção da palavra, ter sido tocado por algo imaterial porém muito explícito, tendo em conta a subtileza de como aconteceu.

E quanto bem me fez, bendito Deus. Inexplicável, mesmo.

Ponderada hoje toda a situação a frio e passado já bastante tempo é justo reconhecer humildemente que nada houve que nos pudesse ter feito duvidar fosse do que fosse, mas que, pelo contrário, muito houve e haverá ainda para agradecer até ao fim das nossas vidas. Tendo sido transportada de imediato para o hospital, teve a Manuela a sorte – teria sido apenas a sorte? – de ser atendida e a seguir operada por um dos melhores ortopedistas do país – omito propositadamente o seu nome por respeito e consideração a todos os demais – que casualmente ali prestava serviço e naquele dia estava de atendimento ao banco de urgências, o qual, com toda a perícia e competência que lhe dão enorme e justa fama, conseguiu unir com grampos e fios metálicos os três fragmentos de osso e reconstruir tão completa como eficazmente a rótula estilhaçada. De tal forma o fez que não ficou qualquer sequela pós-operatória para além da enorme e indisfarçável cicatriz.

Tudo não passou de meras coincidências, dirão alguns.
Talvez sim, ou talvez não, digo eu.
Nem sempre à luz dos factos coincide a luz da fé.
Cada um que fique pois, como é justo, com aquilo em que acredita.

José Coelho in Histórias do Cota