domingo, 2 de outubro de 2016

Coisas que escrevo...

Hoje é uma estrada alcatroada mas já foi caminho de terra batida percorrido todas as noites por muitos contrabandistas. Foto da minha autoria


Contrabandistas


Onde há raia houve de certeza contrabando e contrabandistas. E houve também, como não podia deixar de ser, muitas histórias contadas pelas pessoas que no escuro da noite caminharam pelas veredas existentes por entre matos e canchais em direção à fronteira, a qual, na nossa freguesia, é toda limitada pelo rio Sever.

Tive a sorte de conhecer muitos desses valentes, alguns da minha família mais próxima, por sinal homens respeitáveis, sérios, de poucas falas e ainda menos sorrisos. Sei muitas histórias que deliciado ouvi, narradas por essa gente simples e pura que deliberadamente infringia as leis sim, mas com a única e julgo que aceitável intenção de ganharem o sustento das numerosas proles de seis, sete, oito e às vezes mais filhos a seu cargo, e, por isso mesmo, sem qualquer intenção malévola premeditada ou criminosa de desafiarem à toa a autoridade do estado.

Para eles, transportarem aquelas pesadas cargas às costas no escuro da noite, debaixo de bom tempo ou de invernia, terem ainda que atravessar as correntes e enchentes do rio Sever semi-nus com carga e roupa sobre a cabeça para não as molharem, mais não era que uma “profissão” bastante arriscada, e que, por isso mesmo, era muito mais bem paga do que qualquer outro serviço rural que pudessem desempenhar por estas terras pobres onde a agricultura foi quase sempre de subsistência.

Eu próprio e a minha irmã mais velha fomos também contrabandistas ainda que em pequena escala e por conta exclusiva dos nossos pais que nos mandavam levar para Espanha certos produtos – 3 ou 4 dúzias ovos por exemplo – em   troca de coisas que trazíamos na volta para cá, essencialmente comida, como, por exemplo, latas de azeite, toucinho a granel ou pão. Também uma boa parte dos enxovais das minhas irmãs – louças de pirex, esmaltes, sertãs e outros utensílios de cozinha – vieram de Espanha por essa via. Aos poucochinhos. Hoje trazíamos o tacho, para a semana a cafeteira, depois a frigideira…

Porém, os profissionais das madrugadas caminhavam curvados pelo peso de, no mínimo, 30 kg de carga, acompanhados sempre pelo receio de serem detetados pelos guardas fiscais portugueses ou pelos guardias-civis espanhóis. Com os olhos tinham que vigiar o caminho e com os ouvidos escutar atentamente qualquer ruído que os pudesse alertar da proximidade dos fardados para que não lhes saltassem ao caminho, pois, se tal acontecesse, era largar a carga, desatar a fugir e esconderem-se logo que pudessem. Perdiam o fôlego, perdiam a carga, perdiam a jorna da noite, perdiam também o esforço de muitas horas de caminho. Mas outras viriam! O que interessava era não se deixarem “ganfar” pelos guardas porque seriam imediatamente presos e teriam mesmo problemas muito sérios.

Era assim por todas estas aldeias e lugarejos da raia! Beirã, Cabril, Bica, Pereiro, Barretos, Vales, Vale de Milho, Ranginha, Cabeçudos, Relva da Asseiceira, Aires, Tapadão de Mato e muitos outros, porque nesse tempo era tudo habitado onde quer que houvesse uma casinha, por mais isolado que fosse o lugar. Ao escurecer formavam-se os grupos no local de encontro que só eles sabiam, traçavam-se os percursos, vigiavam-se os movimentos dos guardas e desaparecia-se na noite para se ganhar o preço previamente negociado.  Assim que os mais novos tinham forças para “alombarem” com as cargas e pernas para caminharem as longas distâncias, entravam para o grupo. Era assim com eles, porque assim tinha sido com os seus pais e avós, assim seria provavelmente também mais tarde com os seus filhos quando os tivessem.

Mulheres contrabandistas também as havia e muitas, se bem que com cargas mais leves. E também elas atravessavam rios e ribeiros nas noites de chuva ou de bom tempo para ajudarem no sustento das casas se fosse preciso. Muitas vezes vi a minha mãe e as minhas tias enrolarem-se em peças da “pana” a que hoje chamamos bombazina para assim passarem, debaixo da roupa, metro a metro, peças inteiras do tecido que iam trazendo aos poucos das lojas do outro lado do rio, como a loja do Batão, a do Bravo, ou a do Pinadas, e que assim eram fornecidas diretamente aos alfaiates das aldeias para as transformarem em calças, casacos ou fatos completos muito apreciados nesse tempo por serem mais quentes e durarem muito mais tempo que os tecidos portugueses.

Vi também, com os dois olhos que Deus me deu e a terra irá comer, alguns vizinhos guardas fiscais e até alguns guardias-civis espanhóis também, a ajeitarem um quilo do café em grão “Guapa” em cada um dos bolsos laterais do casaco da sua farda, na loja do sr. João Batista e na loja da Ti Zabel, minutos antes de embarcarem nos comboios que iam patrulhar entre a estação da Beirã e a de Valência de Alcântara. Eles próprios faziam também contrabando – eu vi, como já afirmei, ninguém me contou – provavelmente porque os seus ordenados não seriam por aí além muito famosos.

Contrabandeava-se um pouco de tudo nesse vaivém constante pela raia. Mas o contrabando puro e duro eram as cargas de volfrâmio – nas barreiras do rio Sever perto do Matinho ainda se podem ver os buracos deixados pela exploração desse minério – de especiarias como a canela e os cominhos, de relógios de pulso, de tabaco, de papel de fumar, de máquinas de costura e até de gado, sendo essas práticas as que estavam sob a mira mais atenta das autoridades.

É preciso não esquecer que esta comunhão entre os dois países, não fez passar apenas pela raia cargas às costas, fez também passar todo o tipo de contactos e intercâmbios pessoais e culturais. A minha sogra nasceu na aldeia de S. Pedro da comarca de Valência de Alcántara em Espanha e casou com o meu sogro, natural dos Barretos-Beirã-Portugal. Os irmãos do meu avô materno são todos espanhóis pois só ele casou por cá com a minha avó. Mas também a toponímia e a linguagem ganharam pronúncias próprias porque muitas palavras portuguesas "espanholaram-se" enquanto muitas palavras espanholas se "aportuguesaram". Foi até a gastronomia que misturou sabores do lado de cá e do lado de lá da fronteira.

O contrabando foi ainda, como já disse, feito de muitas histórias. Cada contrabandista, cada guarda-fiscal, cada guardia-civil e cada caminho percorrido por estas gentes tem as suas. De dia era uma terra de camponeses, à noite de contrabandistas. Na mesma aldeia viviam guardas fiscais e contrabandistas, as duas faces antagónicas do contrabando. Conviviam e ocupavam os mesmos espaços, quer nas aldeias, quer nos caminhos percorridos. Espreitavam-se com astúcia e engenho tentando cada um, na defesa do seu mister, enganar o outro.

Ambos conheciam esses caminhos, - muitos guardas fiscais, eram destas zonas, filhos mesmo de contrabandistas também e, na sua adolescência, antes de ingressarem naquele organismo, teriam andado por aí com algumas cargas às costas sabendo, por experiência própria, muitos truques e estratagemas que agora lhes eram úteis, mas por motivos diferentes. Assim, enquanto uns vigiavam atentamente caminhos e veredas, os outros percorriam-nos conseguindo ludibriar sorrateiramente tal vigilância, trazendo e levando mercadorias que alimentavam o comércio de ambos os países. Curiosamente, esses caminhos eram o sustento de todos. De uns e dos outros.

Hoje, já não há contrabando, pelo menos o praticado nos moldes aqui referidos porque deixou de haver necessidade de vigiar a fronteira. Os guardas fiscais foram extintos, os contrabandistas envelheceram e os caminhos deixaram de ser percorridos, nada mais restando desses trilhos. O silêncio da noite por esses canchais só é perturbado agora pela actividade dos javalis, dos saca-rabos e das raposas que por aí vagueiam em busca de alimento.

Acabaram-se pois as aventuras e as histórias. Inevitavelmente, as memórias de tudo isso, ir-se-ão perdendo. E são essas memórias comuns a todas as nossas aldeias, a todos os lugares desta zona raiana onde existiu o contrabando, que foi acima de tudo, o pão que alimentou muitas bocas e onde existiram os contrabandistas, protagonistas desse período não muito distante da nossa história colectiva, que seria justo preservar. 

José Coelho in Histórias do Cota