sábado, 22 de outubro de 2016

Mais... Coisas minhas.


 


Não foi um lacrau, foi um bicho...


Ainda não andava na escola, teria por isso menos de 6 anos. Consigo no entanto reconstituir perfeitamente a cena, recordar o local, o que aconteceu, e até a minha tia a trazer-me ao colo para casa. Por conseguinte, não devia ser nem muito grande ainda, nem muito pesado, pois a distância era considerável e o caminho pedregoso.

Aconteceu na tapada da Lagem Alta hoje coberta de giestas e de mato mal se vislumbrando já o chão, mas, naquele tempo, não havia pedaço de terra que não fosse cultivado por estas bandas. Por isso, aquela tapada, como todas as outras confinantes, tinha sido semeada. Nas zonas mais altas e mais quentes, de milho de massaroca para debulhar na eira. E dos dois lados da barroca, onde a terra era mais fresca, de feijão frade para venda e consumo no resto do ano.

A minha mãe, a tia Marizé Meia e a ti Ana Seco (que Deus já chamou) afadigavam-se, de sacho na mão, na monda do viçoso milho, enquanto eu, descalço, – porque as sapatilhas só se calçavam nos domingos – brincava um pouco mais acima, fora da zona semeada e pulando de uma pedra para baixo. Subia, pulava, voltava a subir e voltava a pular. De onde estava, a minha mãe ia avisando prudentemente:

- Não andes a pular nas pedras que é capaz de haver para aí “alacraus”…

Mas eu – como sempre – ignorei os avisos de quem sabia o que estava a dizer e continuei alegremente no meu pula-que-pula. Tanto pulei que, às páginas tantas… Zás… Uma aguda ferroada no dedo gordo de um pé.

Até vi estrelas…

E...

Agora nós! Comecei aos berros como um desalmado:

- Mãããeee... Ó mããããeee…

Não sei o que me assustava mais. Se aquela forte dor no dedo ou se aquela impressão esquisita de formigueiro a subir pela perna acima...

As três mulheres largaram imediatamente os sachos e correram para mim a ver o que me tinha acontecido ao mesmo tempo que exclamavam:

- Ah cabrão que já te ferrou algum “alacrau”…

Sabia lá eu o que era um alacrau ou o seu tamanho e por isso respondia-lhes aflito berrando cada vez mais alto:

- Nããããooo! Nã’foi um alacrau! Foi um bicho…

A primeira coisa que a minha mãe fez foi esgaravatar com um pau de giesta a terra toda sob a base do pedregulho e não tardou a encontrar o energúmeno que me havia ferrado o dedo. Pudera! Eu estivera a destruir-lhe minuciosamente a toca com os meus pulos e ele zangou-se! E calhou tão bem que até estava descalço, com uns apetitosos dedos mesmo à mão de semear para o furioso artrópode se vingar. Nunca mais ferrou ninguém, porque foi esmagado de seguida pelo pé da minha mãe que não sei com quem estava mais zangada. Se comigo por nunca fazer caso dos avisos dela, se com o lacrau por me ter picado.

Entretanto a ti Ana Galinhas foi-se ao cesto da merenda e à falta de outro remédio para acalmar as minhas dores assim como o inchaço no dedo, cortou uma fina fatia de toucinho cru e envolveu com ela a zona picada, atando-a em seguida com um trapo para a "mézinha" ali se manter sem cair.

De nada resultou, coitada, mas valeu a intenção! Quem já foi picado por um bichinho daqueles sabe que se seguem algumas horas de uma dor intensa e latejante com a sensação de formigueiro em redor da zona ferrada. Foi por isso um resto de dia a chorar sentado à sombra de um sobreiro e tão quieto quanto as dores  o permitiam. Como é que um bicharoco tão pequeno produz um veneno tão assanhado e que tanto dói? 

Naquele dia não havia mais nada a fazer porque a minha mãe não podia dar-se ao luxo de perder a jorna de um dia de trabalho por causa da minha estouvadice. Coitada da tia Maria José Meia que ao sol posto, quando largou por fim o sacho com que todo o santo dia sachou, ainda teve que me trazer ao colo até casa conforme me prometera várias vezes:

- Cala-te já, filho! Olha, se não chorares mais, logo levo-te ao colo para casa…

E trouxe mesmo. Já velhinha, comenta às vezes, sorrindo com a lembrança: 

- E o tal alacrau que não era um bicho? 

Sempre foi terra de muitos lacraus, a nossa. Basta levantar uma pedra aqui ou ali e lá está um ou dois deles, de ferrão em riste na ponta da cauda. Mal as noites começam a refrescar no final do verão, princípios do outono, é ouvi-los em coro no seu monótono cricar, logo que escurece: - Cri-cri! - Cri-cri! Suponho, porque não volta a ouvir-se nunca mais em todo o ano, que será a época de acasalamento e aquele seu cricar mais não será que um milenar ritual nupcial para atrair as fêmeas.

Sorrio melancolicamente algumas vezes ao ouvi-los, não pelas saudades da ferroada que levei mas porque me fazem lembrar o tempo indelével da minha feliz meninice. 

Muito mais feliz, tenho a certeza, do que a velhice que já vem chegando...


José Coelho in Histórias do Cota

* Excerto