domingo, 30 de outubro de 2016

Coisas minhas... (das tais)

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A rolita que era tão bonita...


Adoro animais. Sempre adorei. Talvez porque os meus pais sempre tiveram cães, gatos, galinhas, enfim, a bicharada dita doméstica. Gosto tanto de todos eles que não consigo sequer matar uma galinha ou um coelho manso para consumo de casa. Acabei com o galinheiro, o pombal e os coelhos porque me afeiçoava aos bichos e depois era um problema para os abater. Tive que me deixar disso e comprá-los no talho porque assim já não tenho que passar por esses sarilhos.

Vem mesmo a propósito de mais uma das minhas historias de gaiato. Aconteceu nas férias escolares que em criança ia às vezes passar com os meus primos em Espanha. Ainda hoje, quando um desses meus primos, o Raimundo, vem das Astúrias onde vive com a sua mulher e os seus três filhos visitar-me, se ri com gosto e fala naquela divertida peripécia.

Mas é melhor começar pelo princípio, não?

Pois bem...

Os meus pais viveram três anos no Monte das Amendoeiras, uma Casa Agrícola junto ao rio Sever, onde exploraram “de meias” com o lavrador e proprietário, uma várzea de vários hectares, no plantio e colheita de pimentos morrones, mas não só, ao quais eram destinados, alguns deles à indústria de conservas de Santo António das Areias para produção de pickles ou de massa de pimentão, enquanto os outros iam para a secagem em estufas a lenha chamadas de “secadeiros”, sendo posteriormente moídos nas duas fábricas da Herdade do Pereiro e transformados no famoso pimentão “Flor do Pereiro” de que muita gente por aqui ainda se recordará.

As Amendoeiras eram de um senhor que já faleceu e que cedia a moradia de todos nós, o terreno, as plantas e os fertilizantes assim como a água do regadio, enquanto os meus pais e dois dos meus tios, a Maria José (a tal que me deu colo quando me picou o lacrau) com o marido Joaquim (irmão da minha mãe) e ainda o primo Raimundo espanhol que fora contratado pelo meu pai, faziam tudo o resto. Lavravam, semeavam, plantavam, regavam, sachavam, colhiam e carregavam toneladas e toneladas de pimentos que iam sendo transportados diariamente na carroça do lavrador para as referidas indústrias da Firma Nunes Sequeira.

Eu devia ter uns 8/9 anitos. Todos os dias tinha que calcorrear a pé os cerca de 7 quilómetros pela manhã para vir à escola na Beirã acompanhado pela minha irmã Adelina, e à tarde, depois da escola, outros tantos no regresso às Amendoeiras. Umas vezes debaixo de chuva, outras vezes debaixo de sol, mas não morri, e cá estamos até hoje, eu e a minha mana mais velha, para vos podermos contar as nossas aventuras.

Do outro lado do rio, era (e ainda é)  a Espanha. E na “Finca de las Gagas”, algo lonjita das Amendoeiras junto ao rio Alburrel, vivia com a sua família o meu tio Joaquin Lorenzo, um dos irmãos do meu avô e que era cabreiro de um rebanho de “centenares” de cabras, como ele dizia. Tinha quatro filhos. A mais velha a Maria, seguida do Raimundo, e mais dois rapazotes um pouco mais velhos do que eu. O Joaquin e o Antonio com quem eu me dava muito bem e por isso ia para lá passar as férias escolares sempre que me deixavam.

Lembro-me como se fosse hoje daquele socho enorme coberto de piornos e xaras que fazia de cozinha e de sala de jantar onde comíamos castanhas secas cozidas em leite de cabra, uma perfeita delícia. E do outro socho mais pequeno onde dormíamos. Felicidade das felicidades, o meu tio e primos espanhóis tinham uma panóplia de animais amestrados que vinham comer à nossa mão e faziam parte da família! Uma cegonha que se chamava Adriana. Um corvo que se chamava Vicente. Um mocho que se chamava Carrilho. Não sei quantos gatos e cães. Rolas bravas. Cabras e cabritos. Era um paraíso para mim, tudo aquilo.

E foi quando me preparava para regressar a casa no fim de umas dessas férias que o meu tio Joaquin - que Deus o tenha - por ver que eu tinha tanto afeto à bicharada, foi buscar uma rolita nova que ainda quase nem voava e me a ofereceu dizendo:

 - Toma! Lleva-la contigo e toma-te cuenta della...

Louco de felicidade, agarrei a pobrezita e apertei-a contra o peito dando pulos de alegria. Em seguida fui ter com o meu primo Raimundo que tinha lá ido buscar-me para me acompanhar no regresso a casa e mostrei-lhe o presente adorado exclamando no meu portunhol de aprendiz:

 - Mira, mira, la rolita que tu padre me dió, que bonita...

Qual não foi o meu espanto quando a cabeça da rola tombou inerte. Estava morta. De tanta alegria e felicidade que senti, apertei com tanto carinho e tanta força a pobre ave que a sufoquei. Escusado seria dizer-vos que passei todo o caminho das  Gagas até às Amendoeiras a chorar desconsolado enquanto o Raimundo se ria a bandeiras despregadas e repetia olhando-me divertidíssimo:

- Oooohhh! Mira, mira, la rolita tan bonita…

E ria, ria, como um desalmado. Ainda este ano em Agosto veio de novo visitar-me como faz regularmente todos os anos há muitos anos, e voltou a falar disso com o riso do costume: 

- Pobrecita la rolita Josémanué...

É caso para dizer, como diz o ditado:

Tanto bem quer o diabo à mãe, que lhe tira os olhos!

Assim aconteceu comigo...


José Coelho in Histórias do Cota