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A taberna da ti’Arora
Lembro-me
dela, como se lá tivesse estado ontem. Era na rua da igreja como todos na Beirã
sempre lhe chamámos, ou, então, por ser mais fino, Rua Vivas de sua graça.
Situava-se muito perto da Estação de onde recebia o seu maior fluxo de
fregueses. Ferroviários e passageiros dos comboios.
Era
uma taberna pequenina com uma só divisão de 5 ou 6 metros quadrados e nela havia apenas uma mesa redonda de ferro onde os fregueses jogavam cartas; o truque, as copas ou a sueca. No vão da janela perfilavam-se duas pipas de vinho daquelas grandes e antigas em ripa de madeira, uma do branco, outra do tinto.
Tinha a toda a largura da divisão um enorme balcão, de parede a parede, em frente a uma estante
de madeira cheia de prateleiras onde se alinhavam os copos – daqueles muito antigos que
até a meio era só fundo – em vidro muito grosseiro, à mistura com garrafas
de ginja, de anis, de abafado ou de aguardente, porque os vinhos branco e tinto eram depositados em jarros de vidro com tampas de plástico, vermelha a do tinto e verde a do branco, pousados permanentemente em cima do balcão, prontos a usar. Na parede do lado e por dentro do balcão tinha como grande modernice naquela época, uma pia de marmorite com torneira de água canalizada onde
eram lavados os copos.
Atrás
do balcão, sentado num banquito de madeira, era comum encontrar-se quase sempre como taberneiro ti Afonso, já que a ti’Arora, merceeira, estava sempre mais no outro lado, na divisão contígua onde tinham também uma pequena mercearia que comunicava com a taberna por uma
porta interior.
Era
dali, daquela mercearia, que vinha quase tudo o que comíamos em nossa casa. Arroz e
açúcar avulso, massas, farinhas, banha caseira ao quilo, manteigas, azeite e
vinagre também a granel, toucinho, morcelas, chouriço e farinheiras, sal ou
bicarbonato, feijão, grão, sardinhas em lata ou atum.
A
pronto pagamento ou fiado, porque o dinheiro nesse tempo escasseava em quase
todas as bolsas. Mas nunca naquela loja se negou o avio necessário ao sustento
de muitas famílias, a minha incluída, sem necessidade de fiadores e sempre com
bons modos, confiando na certeza do completo ajuste de cada conta, logo que as jornas
fossem recebidas pelos chefes das famílias devedoras.
E
era naquela taberna que o meu pai se entretinha depois do sol-posto até à hora
da janta, onde e com os seus amigos jogava cartas ou bebia o seu copito, algumas
vezes até mais do que a conta.
Boa
gente o ti Afonso e a ti’Arora. Quer um, quer o outro. Abriam as portas às 6
da manhã com a chegada à estação do comboio sardinheiro – assim chamado porque
era nele que vinha o peixe do litoral para os peixeiros ambulantes como o ti
Carlos e a ti Perpétua venderem de porta em porta pelas aldeias ou montes - e fechavam serão dentro, normalmente depois da chegada do comboio das oito da noite.
Era
também a parteira da aldeia “quase diplomada” a ti A’rora. Toda a rapaziada que
nasceu nas décadas de 40, 50 e 60 por estes arredores - salvo algumas normais
exceções que sempre as houve - caía nas suas mãos mal deixavam o ventre materno. Por isso era “a
comadre Arora de uma infinidade de mulheres – incluindo a minha mãe – pois era uso e costume assim ficarem a chamar-se, nesse tempo, as mulheres
parturientes com aquelas que faziam de parteiras, na hora de trazerem os filhos
ao mundo.
Estava a ti'Arora ainda também habilitada a dar injeções a quem precisava de as levar, com grande
perícia e sabedoria. Não havia posto de saúde permanente na Beirã. Vinha cá o
falecido Dr. Machado uma vez por semana, esse extraordinário homem que era tudo
em um porque exercia medicina geral, parteiro às vezes em partos mais
complicados, e era ainda também dentista, entre outras “especialidades”. Dava
consultas numa dependência da antiga sociedade recreativa preparada para esse efeito mas os tratamentos por ele prescritos eram feitos em casa de cada um
e por isso lá se tinha que ir à ti Arora muitas vezes para ela dar as injeções receitadas pelo
senhor doutor.
Todas
estas “qualificações” que tinha eram, suponho eu, em
grande parte devidas ao facto de ser uma das poucas pessoas do seu tempo e do
seu extrato social que sabia ler e escrever, pois isso, parecendo que não, era
uma mais-valia que lhe dava acesso a alguma formação, para além, evidentemente,
do carisma, bondade e jeito muito seus, para desempenhar todas as funções
descritas e que a constituíam num precioso auxílio em toda a aldeia e arredores para quem delas necessitava.
Não
tenho dúvidas em afirmar que, quer pelo comércio por eles exercido, quer pela forma inexcedível como eram assim prestáveis para toda a gente, este casal e a sua casa
comercial merecem fazer parte da memória coletiva da nossa Beirã pese embora
ainda ninguém se tivesse dado ao trabalho de enaltecer o seu contributo.
Aqui
fica então, humildemente e com muito respeito pela sua memória, esta modesta homenagem aos
dois.
José
Coelho in Histórias do Cota