Foto José Coelho
Gosto da minha casa. Mal o dia começa a clarear por volta
das cinco e meia, imediatamente uma suave penumbra se espalha por todas as divisões. Estrategicamente
concebida pelo senhor meu pai com as frontarias traseira e dianteira voltadas a
nascente e a poente respectivamente, ficaram por isso as sólidas empenas voltadas uma
a norte e a outra a sul para melhor resguardo dos frios de neve ou ventos
suões. Mais tarde, quando a comprei e ampliei, fiz também questão de, como ele, aproveitar ao
máximo a luminosidade do dia e planeei amplas janelas que a inundam de luz de
ponta a ponta.
Por isso desde nasce o sol até que o lusco-fusco o apaga e apesar das sólidas venezianas nas janelas, todo este meu reino de paz e harmonia é abençoado pela sua luz bendita, fonte de toda a vida. Nem as persianas, nem
os cortinados, conseguem impedi-lo de entrar. E a sua luz assim filtrada cria uma semi-obscuridade, um ambiente de tranquilo e agradável aconchego. Cada pormenor da
pequena casa original foi imaginado e concebido pelo meu pai, cada pormenor do casarão
em que se transformou na sua inevitável ampliação, foi imaginado por
mim.
Por isso lhe assenta tão bem o nome que lhe dei de Toca dos Coelhos em honra do seu
original “arquiteto”prontamente aprovado pelos meus filhos, seus herdeiros
legítimos. Nada na minha vida foi alguma vez por acaso. Nada. Tudo teve sempre
um motivo, uma razão, uma causa, um sentido. Nem sequer ficar com esta casa foi
ideia minha. Quando o meu pai se apercebeu que eu andava em vias de negócio com
outra no bairro novo da aldeia, chamou-me à parte para me perguntar:
- Que andas tu a fazer?
- Ando a ver de casa para comprar, Pai! Respondi-lhe.
- A tua casa vai ser esta! Afirmou convicto.
E prosseguiu.
- O teu cunhado – disse o nome – já se mostrou interessado em
ficar com ela, mas eu disse-lhe logo que não, porque quero que a casa seja para
ti.
Fui completamente apanhado de surpresa. Nunca havíamos
falado tal coisa e muito menos imaginava que havia até já um candidato à
aquisição dos parcos bens, porquanto os seus queridos proprietários tinham ainda muita
vida pela frente. Jamais fora equacionada sequer tal hipótese.
Ainda assim, contestei:
- Pai fico-lhe muito grato pela sua preferência mas não posso ficar à
espera que o Pai e a Mãe morram, para ter a minha casa. Moro numa do Estado à
qual tenho direito pelas funções que desempenho, mas, no dia em que deixar de as exercer, perco o direito de lá morar e dão-me trinta dias para de
lá sair. Quando esse dia chegar, quero ter já a MINHA para me acolher, à minha mulher e aos meus filhos...
- E por isso mesmo, ando à procura.
Entendeu o meu Pai, perfeitamente, as minhas razões. Mas não
desarmou da sua ideia e no mesmo momento decidiu o que iria quanto antes fazer.
E fez. Convocou um jantar de família com os quatro filhos, os três genros, a
nora e todos os netos, para, literalmente, determinar o que tinha na ideia. Trespassar
a casa ao filho pelo valor de 600. 000$00 – seiscentos contos – o qual teria que dar
a cada irmã a quantia de 150. 000$00 – cento e cinquenta contos – ficando, obviamente com a sua parte. Para ele Pai e para a nossa Mãe, só punha como
condição morarem connosco enquanto vivessem. Todas as condições foram apenas
verbais. Na nossa família valeu sempre mais a palavra dada do que qualquer
escritura de notário.
Assim se disse, assim se cumpriu.
Nenhuma das minhas irmãs ou cunhados se opôs às decisões e
condições do tão querido como respeitado patriarca, e, em poucas semanas, foram
marcados os actos oficias necessários à escritura para mudança de proprietário.
Foi assim que, sem nunca sequer ter imaginado tal coisa, me tornei no novo dono
das paredes que assistiram ao meu nascimento e ao das minhas duas irmãs Maria da
Luz e Joaquina Maria – porque a Adelina já tinha nascido quando a casa ficou
pronta – assim como foi também entre as mesmas que o Avô Faustino Coelho, ele
próprio meu querido Pai, bem como a Mãe da minha Mãe a Avó Amélia, partiram para a sua última viagem.
Aqui se mantêm por isso guardadas as minhas mais valiosas
memórias e por isso tive o cuidado de não tocar numa só pedra das divisões
originais da casa quando se procedeu à sua ampliação. Aqui se escreveu grande
parte da minha vida e dos meus entes queridos. Se depender de mim aqui quero terminar
algum dia também o percurso que iniciei numa fria madrugada de um já distante Março.
Mas isso é de todo imprevisível nos tempos que correm...
José Coelho in Lar, doce lar
(republicado com ligeiros acertos)