quarta-feira, 1 de abril de 2020

#euficoemcasa

 Foto José Coelho

Gosto da minha casa. Mal o dia começa a clarear por volta das cinco e meia, imediatamente uma suave penumbra se espalha por todas as divisões. Estrategicamente concebida pelo senhor meu pai com as frontarias traseira e dianteira voltadas a nascente e a poente respectivamente, ficaram por isso as sólidas empenas voltadas uma a norte e a outra a sul para melhor resguardo dos frios de neve ou ventos suões. Mais tarde, quando a comprei e ampliei, fiz também questão de, como ele, aproveitar ao máximo a luminosidade do dia e planeei amplas janelas que a inundam de luz de ponta a ponta.

Por isso desde nasce o sol até que o lusco-fusco o apaga e apesar das sólidas venezianas nas janelas, todo este meu reino de paz e harmonia é abençoado pela sua luz bendita, fonte de toda a vida. Nem as persianas, nem os cortinados, conseguem impedi-lo de entrar. E a sua luz assim filtrada cria uma semi-obscuridade, um ambiente de tranquilo e agradável aconchego. Cada pormenor da pequena casa original foi imaginado e concebido pelo meu pai, cada pormenor do casarão em que se transformou na sua inevitável ampliação, foi imaginado por mim.

Por isso lhe assenta tão bem o nome que lhe dei de Toca dos Coelhos em honra do seu original “arquiteto”prontamente aprovado pelos meus filhos, seus herdeiros legítimos. Nada na minha vida foi alguma vez por acaso. Nada. Tudo teve sempre um motivo, uma razão, uma causa, um sentido. Nem sequer ficar com esta casa foi ideia minha. Quando o meu pai se apercebeu que eu andava em vias de negócio com outra no bairro novo da aldeia, chamou-me à parte para me perguntar:

- Que andas tu a fazer?

- Ando a ver de casa para comprar, Pai! Respondi-lhe.

- A tua casa vai ser esta! Afirmou convicto. 

E prosseguiu.

- O teu cunhado – disse o nome – já se mostrou interessado em ficar com ela, mas eu disse-lhe logo que não, porque quero que a casa seja para ti.

Fui completamente apanhado de surpresa. Nunca havíamos falado tal coisa e muito menos imaginava que havia até já um candidato à aquisição dos parcos bens, porquanto os seus queridos proprietários tinham ainda muita vida pela frente. Jamais fora equacionada sequer tal hipótese.

Ainda assim, contestei:

- Pai fico-lhe muito grato pela sua preferência mas não posso ficar à espera que o Pai e a Mãe morram, para ter a minha casa. Moro numa do Estado à qual tenho direito pelas funções que desempenho, mas, no dia em que deixar de as exercer, perco o direito de lá morar e dão-me trinta dias para de lá sair. Quando esse dia chegar, quero ter já a MINHA para me acolher, à minha mulher e aos meus filhos...

- E por isso mesmo, ando à procura.

Entendeu o meu Pai, perfeitamente, as minhas razões. Mas não desarmou da sua ideia e no mesmo momento decidiu o que iria quanto antes fazer. E fez. Convocou um jantar de família com os quatro filhos, os três genros, a nora e todos os netos, para, literalmente, determinar o que tinha na ideia. Trespassar a casa ao filho pelo valor de 600. 000$00 – seiscentos contos – o qual teria que dar a cada irmã a quantia de 150. 000$00 – cento e cinquenta contos – ficando, obviamente com a sua parte. Para ele Pai e para a nossa Mãe, só punha como condição morarem connosco enquanto vivessem. Todas as condições foram apenas verbais. Na nossa família valeu sempre mais a palavra dada do que qualquer escritura de notário.

Assim se disse, assim se cumpriu.

Nenhuma das minhas irmãs ou cunhados se opôs às decisões e condições do tão querido como respeitado patriarca, e, em poucas semanas, foram marcados os actos oficias necessários à escritura para mudança de proprietário. Foi assim que, sem nunca sequer ter imaginado tal coisa, me tornei no novo dono das paredes que assistiram ao meu nascimento e ao das minhas duas irmãs Maria da Luz e Joaquina Maria – porque a Adelina já tinha nascido quando a casa ficou pronta – assim como foi também entre as mesmas que o Avô Faustino Coelho, ele próprio meu querido Pai, bem como a Mãe da minha Mãe a Avó Amélia, partiram para a sua última viagem.

Aqui se mantêm por isso guardadas as minhas mais valiosas memórias e por isso tive o cuidado de não tocar numa só pedra das divisões originais da casa quando se procedeu à sua ampliação. Aqui se escreveu grande parte da minha vida e dos meus entes queridos. Se depender de mim aqui quero terminar algum dia também o percurso que iniciei numa fria madrugada de um já distante Março.

Mas isso é de todo imprevisível nos tempos que correm...

José Coelho in Lar, doce lar
(republicado com ligeiros acertos)