quarta-feira, 15 de abril de 2020

Tudo, menos dinheiro...

Foto rara que juntou quase toda a minha família materna

O meu desporto favorito foi sempre andar a pé. Caminhar de cara ao sol nascente embora prefira as cores do poente. Desde menino. Talvez porque os meus pais nunca tiveram dinheiro para me comprar nem ao menos uma bicicleta rasca, quanto mais uma motorizada daquelas que tinham os outros rapazes da minha idade. Nesse tempo os carros eram coisa só de ricos. Ia por isso mesmo a todo o lado umas vezes caminhando e outras vezes andando. Não tinha outro remédio. Obviamente também para o trabalho, ainda que algumas vezes ele fosse a muitos quilómetros de distância.

Da Beirã para o Porto de Espada - 15 km para cada lado diariamente - aquando do "enroncamento" da estrada municipal que liga actualmente a aldeia dos Galegos ao Porto da Espada construída na segunda metade da década de 60, obra em que o meu pai foi um dos subempreiteiros a meter o rachão e a brita (uma espécie de alicerce antes levar o alcatrão) por conta do engenheiro Ventura. O mesmo aconteceu depois da Beirã para a Portagem para as margens do rio Sever onde andámos vários meses também a rasgar as fundações para implementar os alicerces daquela que é desde então a fresca e belíssima zona de lazer e enorme piscina natural, nas margens e no leito do rio.

Saíamos de casa às cinco da manhã a calcorrear velhos trilhos pela serra para podermos estar no local de trabalho às oito. Regressávamos pelo mesmo caminho para outras três horas de caminhada ao fim de cada jornada de oito duras horas de pá e picareta nas mãos. Quase nunca por estrada. Havia nesse tempo veredas e atalhos um pouco por toda a parte e o percurso fazia-se maioritariamente por "atravessos" entre canchos e castinceiras. Só não sei muito bem se isso encurtava o nosso caminho ou se ainda nos cansava mais por termos que subir e descer tanta pedra e saltar tantas paredes. De vez em quando, nos troços em que tínhamos mesmo que caminhar pelo alcatrão, lá passava na sua carroça algum conhecido que nos convidava (ou não) a subir. Era uma sorte rara, mas quando acontecia que bem nos sabia podermos descansar um pouco pernas e pés.

Assim me fiz homem atrás do meu pai com quem trabalhei quase sempre até ir voluntário para a tropa. Foi um tempo duro. Muito duro. Mas não raro sinto saudades desse tempo. Éramos tão mais felizes naquela simplicidade de vida. Não havia cansaço que conseguisse tirar-nos o riso da boca. E o meu pai já ia nos seus cinquenta avançados, dado que, quando eu nasci, já ele passava dos quarenta. Nunca mais voltaríamos a trabalhar juntos porque quando regressei da guerra o país estava de pantanas com a revolução dos cravos. E se quis arranjar algum trabalho tive mesmo que rumar às Minas da Panasqueira de onde transitei depois para a minha profissão definitiva, a GNR. Entretanto, o meu velho e querido companheiro de tantas jornadas, estava já na reforma.

- Aaahhh... Apetece-me tantas vezes dar um grito!

- Porque é que só avaliamos a felicidade depois de ela ter passado?

Habituei-me, por força das circunstâncias, a não temer distâncias, fosse para ir às festas do São Marcos a Santo António das Areias, à feira do São Lourenço a Castelo de Vide ou a algum bailarico pelas redondezas, onde, como todos os rapazes do meu tempo, sempre fui  arranjando algum namorico. Vezes houve em que a namorada morava numa aldeia ou lugar mais ermo e distante. Lá ia eu a meio da tarde nos domingos ter com elas para namorar, regressando noite dentro pelas veredas dos contrabandistas que eu conhecia tão bem. Fosse em noites enluaradas de verão ou naquelas mais escuras e tempestuosas do inverno, nunca o tempo, a distância ou os locais ermos por onde tinha de passar, me intimidaram.

Fui inquestionavelmente um rapazito e adolescente muito alegre e feliz. Nunca me senti inferiorizado por ser quase o único moço da aldeia que não tinha bicicleta nem motorizada. Percebia sem dificuldade que o orçamento da família era magro e por isso a prioridade tinha de ser a comida para a mesa, os trapinhos para vestir e os sapatos para calçar as seis alminhas que morávamos debaixo do mesmo tecto. O meu coração aceitava sem qualquer dificuldade as nossas limitações económicas. E na minha cabeça ficou sempre tudo isso muito bem resolvido. Sem queixumes, sem problemas existenciais e sem complexos de inferioridade.

Os meus amigos juntavam-se para irem petiscar e beber uns copitos nos domingos pelas tascas da aldeia e arredores, mas eu não podia ir. Preferia que as minhas irmãs tivessem o que lhes fazia falta. Já bastava, mesmo assim, às vezes ser tão pouco. Pegava por isso num livro (emprestado por alguém) e ia procurar a sombra de um sobreiro para me sentar a ler. Vem daí este meu vício da leitura e da escrita. Tenho absoluta certeza que devo esta maneira de ser à impecável integridade moral dos meus progenitores que souberam ensinar-nos a mim e às minhas irmãs o dever de sermos felizes com o que podemos ter, sem invejar o que têm os outros. Não só guardo no coração os seus ensinamentos como os pratiquei sempre, e, desde que comecei a ser pai, transmiti-os pouco a pouco também aos meus filhos mais pelo uso do exemplo do propriamente pela retórica das palavras.

Sempre nos disseram os nossos pais que tudo o que nos ensinavam haviam aprendido dos nossos avós. Todos, sem excepção, não sabendo qualquer deles ler ou escrever, alcançaram por inigualável mérito  uma “licenciatura” em integridade de carácter, um “mestrado” em valores e princípios e um “doutoramento” em humildade e honradez, concedidos pela Universidade da Vida. Já não vai por aqui havendo muitas das pessoas que como eu os conheceram bem. Mas os poucos que ainda há, sabem a razão que me assiste quando a eles me refiro. A minha família era humilde mas muito estimada e muito respeitada. Por toda a gente. É com enorme gratidão que ouço, algumas vezes ainda, pessoas amigas ou vizinhos, falarem deles com respeito e consideração. Por isso o imenso orgulho de ser um ramo de tão sadia árvore não cabe no meu peito e transborda pelos meus sentidos, principalmente quando a saudade me faz deles dizer,  ou escrever...

José Coelho
In "Uma herança que teve tudo, menos dinheiro"
(07.06.2015)