Final de dia pela Beirã - Foto José Coelho
"Até domingo, em Milão
Há crentes e não crentes a partilhar a mesma solidão do
Cristo no Monte das Oliveiras. Ele sabia que faltavam apenas três dias para
vencer a morte. O mundo inteiro só sabe que foi varrido por uma tristeza de
morte.
Há uma espécie de cheiro a morte no ar. De angústia que vai
crescendo, dentro de nós, devagarinho. Entrámos na semana da Paixão. E nas TV
vemos filas de caixões alinhados e hospitais de campanha. Desta vez, talvez,
pela primeira vez, nas nossas vidas, fazem-nos falta os coelhos, os ovos, as
galinhas para nos distrairem do que acontece. Para nos obrigar a não pensar no
essencial. Afinal, sem planos de viagens e férias, as festas com a família e os
amigos, as amêndoas, as flores e as iguarias, que fazemos nós fechados em casa
todos estes dias? Que raio era suposto estarmos a comemorar? A morte de um
sem-abrigo torturado e cruelmente espetado numa cruz? Não. A inesperada boa
noticia: o vencer da morte na sua ressurreição.
Agora, o mundo parou, ao mesmo tempo, para que os sinos
tocassem todos a rebate aos nossos ouvidos e não nos dessem sequer tempo para
enterrar os mortos enquanto tratamos dos vivos. Ficámos, subitamente, exaustos
só de contemplar a exaustão. E, numa negação colectiva, remetemo-nos à
lengalenga infantil do “vai passar”. Sem admitir que ou ultrapassamos o medo do
túnel da morte ou nunca encontraremos a luz do seu final. Vale a pena pensar
naquilo que somos.
Trump está à beira de fugir para o seu "bunker".
Entregou aos militares a gestão da crise. Fez do inimigo “invisível” um novo 11
de Setembro. Agora o poder está nas mãos dos generais que tomaram de assalto os
próprios hospitais. Em poucos dias, mais de 10 milhões de americanos perderam o
emprego e algumas cidades fecharam, com placards de madeira, as montras das
lojas temendo assaltos e atos de vandalismo. As ruas de Nova Yorque estão
vazias. As gôndolas de Veneza acostaram aos cais desertos. E, em plena Semana
Santa, não haverá missa nem procissões em Sevilha.
A França estrebucha e confirma a recessão. A queda da riqueza
nacional ultrapassou, no segundo trimestre, a registada no período homólogo de
68. Só em plena guerra se encontram números semelhantes. Na Grã Bretanha, o
problema deixou de ser o das consequências do Brexit. Com o primeiro-ministro
nos cuidados intensivos, a máquina vira-se para a produção de máscaras e
ventiladores. Uma espécie de novos carros de combate.
Na Hungria, Victor Orban viu, na pandemia, a sua oportunidade
de suspender, sine die, a frágil democracia. Governará, por decreto, durante o
estado de emergência que ninguém sabe quando acabará. A Assembleia Nacional
está suspensa e não poderá ter nenhuma palavra a dizer. A mordaça que já fazia
perigar a liberdade de expressão é agora oficial.
No Brasil, um louco governa enquanto a ordem nas favelas é
imposta pelos traficantes mas o “bicho com uma coroa de patas vermelhas” já
começou a atacar e não teme os homens do BOPE nem as armas dos traficantes. Os
pobres que vivem da economia informal são obrigados a escolher entre a doença
ou a fome. Perdidos por cem, perdidos por mil. Percebe-se a recusa ao
confinamento dos sem teto.
Tudo isto no mundo ao mesmo tempo? Tudo agora, aqui, nos
mesmos dias.
E todos nos perguntamos: como é possível? De repente, não nos
podemos abraçar, mas o planeta sofredor mostra-se na súbita convulsão como uma
casa verdadeiramente comum.
Nem a morte pode ser celebrada. Os moribundos, rodeados de
gente e máquinas que tentam tudo para lhes salvar a vida, acabam por morrer
sozinhos. As portas dos hospitais são entradas para uma espécie de labirinto
onde alguns se perdem sem garantia de encontrar saída. Seguirão nus,
hermeticamente fechados, em sacos de plástico, directos para o forno
crematório. Ninguém poderá passar-lhes a mão na face gelada numa última
carícia. A família não poderá vê-lo uma última vez. Até o luto se tornou mais
difícil e cruel e parece que o chão foge. As Igrejas fecharam as portas. E há
uma dúvida pequenina como o virús a fazer o seu caminho: Por quê? Para quê? E,
já agora, o que deveríamos estar a celebrar?
O condenado morto na cruz para gáudio da soldadesca Romana e
sossego das elites dirigentes. Desprezado pela populaça e abandonado pelos
amigos. Desacreditado. Volta-nos à memória.
Sem coelhos nem galinhas ou ovos para caçar que nos
distraiam. Parece que o mundo inteiro entrou numa agonia lenta mergulhado num
ambiente precoce de Sexta-feira Santa. E sem esperança na Ressurreição tememos
que o Domingo não chegue ou venha demasiado tarde.
Isto vai passar! Mas o Domingo está longe, longe demais.
Tememos que não chegue.
Há crentes e não crentes a partilhar a mesma solidão do
Cristo no Monte das Oliveiras. Ele sabia que faltavam apenas três dias para
vencer a morte. O mundo inteiro só sabe que foi varrido por uma tristeza de
morte.
As TV debitam estatísticas e cada vida é um número: mais de
um milhão de infectados, centenas de milhares de mortos. Entre a azáfama dos
médicos e dos cânticos solidários às varandas uma imagem retemo destes dias. Um
velho vestido de branco, cambaleante a atravessar a praça de São Pedro deserta,
batida pela chuva e pelo vento a subir uma escadaria em direção à mesma imagem
do crucificado a que os romanos pediram com fé que livrasse a cidade da
peste.Conseguiram.
No verdadeiro Calvário, há dois mil anos, só ficaram os
cépticos que lhe prolongavam a agonia com desafios humilhantes: “Salvou os
outros e não consegue salvar-se a si próprio?”, os guardas, algumas mulheres e
o discípulo João a quem Jesus entrega a sua mãe. Pedro que o tinha negado fugiu
com os outros dez. Judas que o tinha entregue abandonou-o também em desespero.
O Papa Francisco, o velho de branco, sucessor de Pedro,
levava às suas costas as nossas dúvidas que Cristo partilhou na sua agonia.
Pai, Pai, porque Me/nos abandonaste. E depois permaneceu sozinho em oração. Na
praça fria, escura, debaixo de chuva. Curvado perante o próprio Deus presente
na Custódia do altar.
Lembrou aos crentes o infinito poder da oração. Atravessou
depois sozinho a catedral vazia levando com ele a presença real de Cristo entre
nós. “Nas tuas mãos entrego o meu espírito” foram as últimas palavras do
crucificado que a Páscoa nos recorda. E o velho solitário vestido de branco é
uma imagem que representa bem a fragilidade de cada um de nós. Crentes em Deus,
em deuses ou em nada.
As Igrejas estão fechadas. Mas Domingo às 18 horas, no You
Tube, o mundo vai poder unir-se pelo canto em oração. Andrea Bocelli estará
sozinho na catedral de Milão a cantar para Deus. Não cantará apenas. Rezará
também emprestando-nos a sua própria voz. E seremos milhões. E os cristãos
saberão que no próximo Domingo não seremos apenas “dois ou três reunidos em seu
nome” na catedral vazia. Milão vai pulsar em uníssono com o coração do mundo".
Graça Franco
08.abr.2020
RRenascença