Um dos nossos unimog's atingidos no Belize
Em
jeito de adenda ao texto que publiquei ontem quero completá-lo um pouco melhor com
mais alguns dados que nunca antes mencionei.
Nessa
narrativa referi o ataque dos guerrilheiros do MPLA à nossa ambulância quando
esta regressava carregada de feridos numa emboscada e referi também aquele camarada
– para mim herói – que por ceder o seu lugar na ambulância a outro camarada, acabou
morto à queima-roupa em virtude desse seu generoso gesto. Só não referi outros
camaradas que também estiveram sistematicamente cara a cara com a morte durante aqueles dois anos inteiros mas a quem nada de grave aconteceu. Entre eles, o condutor
da ambulância, o camarada soldado Lopes que infelizmente já não se encontra
entre nós, embora não tivesse sido vítima da guerra.
Devo
esta narrativa ao seu filho João Gregório porque quero que ele saiba o quão
generoso e valente foi o seu pai, muito antes de ele nascer. Tomei esta decisão ontem, quando vi um like do João Gregório cair naquela narrativa acabada de publicar. E imediatamente pensei:
-
Não imaginas tu amigo João Gregório quem esteve no meio daquele perigo tantas vezes!
O teu falecido pai, a acudir aos camaradas feridos…
E
decidi contar tudo. Pedi-lhe, obviamente, a devida autorização que imediatamente me concedeu.
Então
aqui vai:
Para
todos nós, amigo João Gregório, o teu pai era o camarada Lopes. Nome de guerra.
Quem foi militar sabe que na tropa não há Zés, nem Joões. Só o apelido também
denominado “nome de guerra”. Camarada capitão Serra, camarada sargento Antunes,
camarada cabo Rodrigues ou camarada soldado Lopes. Nada mais. Nesse tempo a
palavra camarada não conotava com politica mas com algo muito mais fraterno. Irmãos d’armas.
Formámos Batalhão em Estremoz onde nos conhecemos. Eu de Marvão ele de
Arronches. Eu cabo de transmissões ele soldado condutor-auto. Na guerra tocou-lhe
ser nomeado condutor da ambulância.
Todas
as vezes que houve que socorrer camaradas debaixo de fogo lá ia o camarada
Lopes para o olho do furacão. Sem hesitar, num generoso espírito de acudir, de
ajudar, de tirar daquele inferno os camaradas horrivelmente feridos, às vezes. Por
isso assistiu a muitos horrores. Ajudou a salvar muitas vidas no transporte de dezenas
de camaradas estropiados, alguns dos quais não resistiam ao percurso e morriam
na ambulância pelo caminho. Sempre foi assim de semblante sério e fechado. E de
poucas palavras. Sei isso muito bem, porque a ambulância era escoltada por outras
duas viaturas de apoio com duas secções de atiradores, e sempre, mas
sempre mesmo, um operador-rádio.
Era um excelente camarada o teu pai, João Gregório.
Um verdadeiro amigo, alguém com quem se
podia sempre contar. Tu sabes que eu sei o que digo porque sei também que ele falava muito de mim e da guerra onde andámos os dois.
Quis
o a sorte a vida ou o destino que regressássemos a casa sãos e salvos, apesar de tudo o que por lá vivemos. E rumámos cada um à sua terra e família. Voltámos a encontrar-nos só dez anos depois em Nisa, eu já sargento para comando do posto da GNR daquela Vila, ele soldado de cavalaria do efectivo do mesmo. As voltas que a vida dá.
Obviamente a amizade e cumplicidade adquiridas na guerra fizeram
com que entre nós se estabelecesse uma confiança ainda mais forte. Ele tinha um filho. Tu, o ainda pequenito João Gregório. Curiosamente da
mesma idade do meu filho Manuel que tinha também um mano mais novo, o Pedro.
Depressa
se estabeleceu entre vocês os três essa boa amizade que prevalece desde então
até hoje. Os bons amigos são para sempre. Entretanto eu ascendi na carreira em 1992 e saí de Nisa. O camarada amigo
Lopes e senhor teu pai atingiu o tempo de serviço e reformou-se. Mas não chegou,
por ironia ou fatalidade do destino, a desfrutar da sua merecida aposentação.
Passou por tantíssimos perigos, encarou a morte tantíssimas vezes naquele
inferno que foi para nós o Maiombe, para súbita e inesperadamente deixar a esposa, o filho, a restante família e os amigos, caído numa horta, o entretém onde
decidiu passar os seus dias e onde foi encontrado já sem sinais de vida.
Acompanhei-o
à sua última morada com tristeza e mágoa na companhia do meu filho e teu amigo
Manuel. Quisemos confortar-te a ti e à senhora tua mãe com a nossa estima e
solidariedade nesse negro momento de dor. A vida dá voltas inexplicáveis. Por
mais que vivamos nunca seremos capazes de a entender. Que descanse em paz. No meio de todas as suas virtudes e também humanas imperfeições era um bom
camarada, um bom amigo, um guerreiro corajoso que com a maior generosidade muitas vezes
expôs a sua própria vida para ajudar a salvar a de outros. No fundo aquilo que tu fazes hoje também generosamente como bombeiro, João Gregório. Quem sai aos seus...
Orgulha-te muito, por tudo isso, do
teu falecido pai. Sei, porque te conheço desde miúdo, que és tão boa
pessoa e tão generoso como ele. Que Deus te proteja e guarde sempre. Desejo para ti tudo
aquilo que desejo também para os meus filhos. Que sejam felizes. E conta sempre, mas mesmo sempre, connosco...
José Coelho
10 Jun’19