O Guarda António Bizarro comigo no CIP/Portalegre em 1987
Um dos flagelos
que atormentava as populações dos povoados mais afastados de Nisa era o roubo
frequente de fios de cobre das linhas telefónicas que cruzavam o interior das
matas para levarem as comunicações aos seus habitantes. Rara era a semana em
que não desapareciam misteriosamente algumas centenas de metros de várias
dessas linhas, deixando incomunicáveis as aldeias e causando toda a uma série
de transtornos para além de nos deixar também constantemente a nós, autoridades
locais, num embaraço que muito me confrangia e perturbava.
Cada vez que isso
acontecia sentia como se fosse algo de minha propriedade que havia sido
vandalizado.
Passei a
nomear mais patrulhas nocturnas em prejuízo das diárias, algumas noites até mais do
que uma, onde eu me incluía também. Andámos
nisso mais de três meses e nada de resultados. Na verdade, conseguimos apenas
que a frequência desses roubos diminuísse um pouco, mas, daqui que dali e
quando menos esperávamos, zás… Mais um! Despertou porém a minha atenção uma peculiar
mudança. Os roubos passaram a acontecer já quase à luz do amanhecer, depois de
as patrulhas recolherem, após uma noite inteira de vigilância.
Deduzi por isso que o gatuno ou gatunos seriam de Nisa e vigiavam a saída e entrada das
patrulhas, coisa assaz muito fácil, dada a localização do velho posto, com a
saída de pessoal, cavalos e viaturas, sempre pelo mesmo portão, bem no centro da
vila. Não era por isso difícil, de qualquer ângulo ou local próximo, fazer esse
controle sem se ser visto. Tive que estudar outra estratégia, recusando
resignar-me àquele estado de coisas e mais empenhado que nunca em capturar e se
possível em flagrante delito, o, ou os energúmenos.
Combinei com o Guarda Bizarro, um dos melhores militares do posto, Nisorro de gema, profissional
cinco estrelas, homem de forte carácter e por isso mesmo o único que se prontificou a colaborar no novo plano que
decidi por em acção. Consistia em ele não entrar no posto, e, sem se fardar, aguardar no seu Datsun preto a minha chegada vestindo também à civil, em local e hora previamente combinados. Nenhum outro guarda se disponibilizou, por receio que o seu carro aparecesse mais tarde danificado, por vingança.
Eu saía do
posto à civil como se fosse passear para o jardim mas ia ter ao local onde estava já o referido
camarada à minha espera. Circulávamos depois toda a noite pela vila e arredores, tentando não levantar suspeitas. Enquanto isso, os jipes saíam normalmente com as
patrulhas do costume, aparentando a maior naturalidade.
Não foi preciso
muito tempo nem perder muitas noites. Certa madrugada, ao transitarmos pela
estrada que vai de Nisa para Tolosa vimos um indivíduo vir
em absoluto silêncio a rolar um rolo de fio como se fosse um daqueles arcos de
ferro com que nós brincávamos quando éramos gaiatos.
Conheci-o imediatamente.
Nada mais nada menos que um velho cadastrado por um sem número de furtos
domésticos. Roubos de cabritos, borregos, frutas e legumes das hortas, mas não
só. Como não conheceu o carro nem imaginava que fôssemos nós, não tomou
quaisquer precauções.
Parámos por isso
mesmo ao lado dele e eu saí do carro dando-lhe ordem para parar. Quando me reconheceu ficou perplexo, dono da mais absoluta surpresa. Só passados
uns instantes, sibilou entre dentes: - Se viesses no
jipe não me tinhas apanhado…
Dei-lhe voz de
detenção e constituí-o arguido cumprindo todas as normas em vigor e chamei de seguida pelo rádio que trazia sempre comigo a patrulha que circulava pelas
redondezas num dos jipes afim de recolher o rolo de cobre mais o detido e
transportar tudo para o posto.
Foi fácil
conseguir depois que confessasse todas as "espertezas" que tinha cometido e que tantas
dores de cabeça nos vinha causando há uma série de meses, sem contar com o
transtorno às populações afectadas que ficavam sempre depois vários dias
incomunicáveis enquanto a PT não restabelecia as linhas vandalizadas.
E foi tão mais fácil ainda
porque ao ver-se encurralado ele se dispôs voluntariamente a contar tudo, na
condição de eu o deixar ir depois para casa. Não lhe disse logo que após de
lhe ter dada voz de detenção só já um juiz o poderia libertar, porque não me
convinha afugentar a sua aparente cooperação. Por isso respondi-lhe apenas: - Primeiro o
senhor conta o que quer contar e eu tomo nota. Depois resolvemos esse cambalacho que propõe.
Uma coisa de cada vez!
E assim fiquei a
saber que era mesmo ele que roubava as linhas telefónicas. Aquele rolo com que
eu o apanhei em flagrante era o produto de um dos seus últimos assaltos à própria sede da EDP de Nisa e que tinha escondido por ali nas proximidades para o ir buscar naquela noite,
conforme foi.
- Mas se você não
viesse naquele carro preto, nunca me ganfava! Frisou mais uma vez,
veementemente.
Contou que possuía um par de garras dentadas de electricista daquelas que se aplicam nos pés
para subir aos postes, cortava duas ou três linhas entre dois ou três postes,
fazia aqueles rolos que escondia por perto para os ir buscar depois e levá-los para casa,
onde os cortava em pedaços de 40 cm para os acondicionar numa mala de viagem. A seguir ia no expresso a Lisboa vendê-lo a determinado sucateiro de Sacavém ao preço de trezentos
escudos o quilo. Como a mala de viagem levava
40 Kg, cada viagem rendia-lhe doze contos de réis. E como fazia duas
viagens por semana, conseguia muitas vezes um ordenado maior que o do presidente da
câmara! Disse-me isto tal e qual, com manifesta satisfação.
A máquina de
escrever até deitava fumo. Ele ia falando, eu dactilografando e inquirindo
mais e mais, num clima de afabilidade como se tivéssemos andado juntos à escola. Criei propositadamente um tal clima de admiração pelos seus valiosos dotes e
esperteza que o indivíduo se envaideceu e confessou até onde tinha mais
cobre escondido. E que em casa tinha mais algum já cortado, pronto para "emalar".
A patrulha do
jipe passou o resto da noite a acarretar cobre dos esconderijos que ele ia
indicando para o posto, afim de o entregarmos no Tribunal no dia seguinte junto
com o detido. Era quase dia quando tudo ficou pronto. Só depois disse ao
indivíduo que não o poderia libertar e que uma vez constituído arguido, só o
senhor doutor juiz determinaria o que entendesse. E disse ao plantão que o
conduzisse à cela.
Berrou e
esbracejou furioso, acusando-me que eu o tinha enganado. E uma vez dentro da
cela, começou aos pontapés na porta, ameaçando:
- S'eu nã for "dromir”prá minha cama, esta “nôte” aqui “tamém” ninguém “dróme”! E vá de dar
pontapés na porta da cela com as botas de cabedal, fazendo um estrondo
ensurdecedor.
Habituado ao
comportamento imprevisível destes senhores, pedi ao plantão que abrisse a porta
e encarei-o de frente para lhe ordenar, sem dar lugar a dúvidas, que tirasse imediatamente
as botas.
Não queria, mas tirou. Que remédio! Saí sob o seu olhar furibundo mas
sem pestanejar disse-lhe ainda antes de me retirar:
- Agora já pode
dar os pontapés na porta que quiser e com toda a sua força. Se achar que não faz barulho
suficiente, dê-lhe também com a cabeça!
Nota: Esta é mais uma História do Cota que não vem no livro.