domingo, 21 de outubro de 2018

Esta nôte ninguém drome...

O Guarda António Bizarro comigo no CIP/Portalegre em 1987


Um dos flagelos que atormentava as populações dos povoados mais afastados de Nisa era o roubo frequente de fios de cobre das linhas telefónicas que cruzavam o interior das matas para levarem as comunicações aos seus habitantes. Rara era a semana em que não desapareciam misteriosamente algumas centenas de metros de várias dessas linhas, deixando incomunicáveis as aldeias e causando toda a uma série de transtornos para além de nos deixar também constantemente a nós, autoridades locais, num embaraço que muito me confrangia e perturbava. 

Cada vez que isso acontecia sentia como se fosse algo de minha propriedade que havia sido vandalizado.

Passei a nomear mais patrulhas nocturnas em prejuízo das diárias, algumas noites até mais do que uma, onde eu me incluía também.  Andámos nisso mais de três meses e nada de resultados. Na verdade, conseguimos apenas que a frequência desses roubos diminuísse um pouco, mas, daqui que dali e quando menos esperávamos, zás… Mais um! Despertou porém a minha atenção uma peculiar mudança. Os roubos passaram a acontecer já quase à luz do amanhecer, depois de as patrulhas recolherem, após uma noite inteira de vigilância.

Deduzi por isso que o gatuno ou gatunos seriam de Nisa e vigiavam a saída e entrada das patrulhas, coisa assaz muito fácil, dada a localização do velho posto, com a saída de pessoal, cavalos e viaturas, sempre pelo mesmo portão, bem no centro da vila. Não era por isso difícil, de qualquer ângulo ou local próximo, fazer esse controle sem se ser visto. Tive que estudar outra estratégia, recusando resignar-me àquele estado de coisas e mais empenhado que nunca em capturar e se possível em flagrante delito, o, ou os energúmenos.

Combinei com o Guarda Bizarro, um dos melhores militares do posto, Nisorro de gema, profissional cinco estrelas, homem de forte carácter e por isso mesmo o único que se prontificou a colaborar no novo plano que decidi por em acção. Consistia em ele não entrar no posto, e, sem se fardar, aguardar no seu Datsun preto a minha chegada vestindo também à civil, em local e hora previamente combinados. Nenhum outro guarda se disponibilizou, por receio que o seu carro aparecesse mais tarde danificado, por vingança. 

Eu saía do posto à civil como se fosse passear para o jardim mas ia ter ao local onde estava já o referido camarada à minha espera. Circulávamos depois toda a noite pela vila e arredores, tentando não levantar suspeitas. Enquanto isso, os jipes saíam normalmente com as patrulhas do costume, aparentando a maior naturalidade.

Não foi preciso muito tempo nem perder muitas noites. Certa madrugada, ao transitarmos pela estrada que vai de Nisa para Tolosa vimos um indivíduo vir em absoluto silêncio a rolar um rolo de fio como se fosse um daqueles arcos de ferro com que nós brincávamos quando éramos gaiatos.

Conheci-o imediatamente. Nada mais nada menos que um velho cadastrado por um sem número de furtos domésticos. Roubos de cabritos, borregos, frutas e legumes das hortas, mas não só. Como não conheceu o carro nem imaginava que fôssemos nós, não tomou quaisquer precauções.

Parámos por isso mesmo ao lado dele e eu saí do carro dando-lhe ordem para parar. Quando me reconheceu ficou perplexo, dono da mais absoluta surpresa. Só passados uns instantes, sibilou entre dentes: - Se viesses no jipe não me tinhas apanhado…

Dei-lhe voz de detenção e constituí-o arguido cumprindo todas as normas em vigor e chamei de seguida pelo rádio que trazia sempre comigo a patrulha que circulava pelas redondezas num dos jipes afim de recolher o rolo de cobre mais o detido e transportar tudo para o posto.

Foi fácil conseguir depois que confessasse todas as "espertezas" que tinha cometido e que tantas dores de cabeça nos vinha causando há uma série de meses, sem contar com o transtorno às populações afectadas que ficavam sempre depois vários dias incomunicáveis enquanto a PT não restabelecia as linhas vandalizadas.

E foi tão mais fácil ainda porque ao ver-se encurralado ele se dispôs voluntariamente a contar tudo, na condição de eu o deixar ir depois para casa. Não lhe disse logo que após de lhe ter dada voz de detenção só já um juiz o poderia libertar, porque não me convinha afugentar a sua aparente cooperação. Por isso respondi-lhe apenas: - Primeiro o senhor conta o que quer contar e eu tomo nota. Depois resolvemos esse cambalacho que propõe. Uma coisa de cada vez!

E assim fiquei a saber que era mesmo ele que roubava as linhas telefónicas. Aquele rolo com que eu o apanhei em flagrante era o produto de um dos seus últimos assaltos à própria sede da EDP de Nisa e que tinha escondido por ali nas proximidades para o ir buscar naquela noite, conforme foi.

- Mas se você não viesse naquele carro preto, nunca me ganfava! Frisou mais uma vez, veementemente.

Contou que possuía um par de garras dentadas de electricista daquelas que se aplicam nos pés para subir aos postes, cortava duas ou três linhas entre dois ou três postes, fazia aqueles rolos que escondia por perto para os ir buscar depois e levá-los para casa, onde os cortava em pedaços de 40 cm para os acondicionar numa mala de viagem. A seguir ia no expresso a Lisboa vendê-lo a determinado sucateiro de Sacavém ao preço de trezentos escudos o quilo. Como a mala de viagem levava  40 Kg, cada viagem rendia-lhe doze contos de réis. E como fazia duas viagens por semana, conseguia muitas vezes um ordenado maior que o do presidente da câmara! Disse-me isto tal e qual, com manifesta satisfação.

A máquina de escrever até deitava fumo. Ele ia falando, eu dactilografando e inquirindo mais e mais, num clima de afabilidade como se tivéssemos andado juntos à escola. Criei propositadamente um tal clima de admiração pelos seus valiosos dotes e esperteza que o indivíduo se envaideceu e confessou até onde tinha mais cobre escondido. E que em casa tinha mais algum já cortado, pronto para "emalar".

A patrulha do jipe passou o resto da noite a acarretar cobre dos esconderijos que ele ia indicando para o posto, afim de o entregarmos no Tribunal no dia seguinte junto com o detido. Era quase dia quando tudo ficou pronto. Só depois disse ao indivíduo que não o poderia libertar e que uma vez constituído arguido, só o senhor doutor juiz determinaria o que entendesse. E disse ao plantão que o conduzisse à cela.

Berrou e esbracejou furioso, acusando-me que eu o tinha enganado. E uma vez dentro da cela, começou aos pontapés na porta, ameaçando:
- S'eu nã for "dromir”prá minha cama, esta “nôte” aqui “tamém” ninguém “dróme”! E vá de dar pontapés na porta da cela com as botas de cabedal, fazendo um estrondo ensurdecedor.

Habituado ao comportamento imprevisível destes senhores, pedi ao plantão que abrisse a porta e encarei-o de frente para lhe ordenar, sem dar lugar a dúvidas, que tirasse imediatamente as botas. 

Não queria, mas tirou. Que remédio! Saí sob o seu olhar furibundo mas sem pestanejar disse-lhe ainda antes de me retirar:

- Agora já pode dar os pontapés na porta que quiser e com toda a sua força. Se achar que não faz barulho suficiente, dê-lhe também com a cabeça!


 José Coelho in Histórias do Cota
Nota: Esta é mais uma História do Cota que não vem no livro.